A subida contínua das mortes de doentes com
covid-19 em Portugal surpreendeu os peritos por não estar alinhada com a
descida de novos casos que acontece há já três semanas. Tendo o pico de
infeções sido registado a 25 de novembro, era expectável que o mesmo tivesse
acontecido com os óbitos duas semanas depois. Só que as mortes ainda mantêm uma
tendência ascendente, sobretudo nas regiões de Lisboa e do Centro. Este
aumento, que configura um caso quase único na Europa, está agora a ser
investigado e já levou a equipa de peritos da Faculdade de Ciências da
Universidade de Lisboa a atualizar a estimativa de mortes covid de um total de
6000 ou 6500 para cerca de 7300 até ao final do ano.
“Chegámos a projetar um pico um pouco acima
de 100 óbitos por dia que depois reajustámos para um valor mais baixo porque a
incidência de novos casos desacelerou e o pico ficou à vista. A certo momento
pareceu que íamos entrar no pico dos óbitos, mas voltaram a aumentar. Esta
continuação da subida surpreendeu-nos e está agora sob investigação”, indica
Manuel Carmo Gomes, professor de Epidemiologia na Faculdade de Ciências da
Universidade de Lisboa (FCUL) e um dos peritos que têm monitorizado a evolução
da epidemia em Portugal.
Para já, o que se sabe com certeza é que as várias regiões do país têm evoluções diferentes do número de óbitos. Enquanto que a curva da mortalidade já está a descer no Norte, tanto Lisboa como o Centro continuam a subir, aponta Carmo Gomes. “O Norte desceu em média sete óbitos por dia, mas o Centro tem em média mais oito mortes diárias e Lisboa mais dez. Somados superam a descida no Norte em 11 mortos a mais por dia”, aponta.
Com muita incerteza, a equipa de
especialistas da FCUL estima que na próxima semana se possa atingir o pico. Já
as projeções dos investigadores do Instituto de Saúde Pública da Universidade
do Porto (ISPUP) apontam para que o pico esteja já a ocorrer nestes dias,
partindo do pressuposto que os óbitos ocorrem “cerca de 20 dias após a
infeção”, como explica Milton Severo. Além de sublinhar a heterogeneidade da
evolução das mortes entre as várias regiões do país, o investigador do ISPUP
frisa que “o maior conhecimento da doença e a possibilidade de antecipar
algumas complicações podem ter contribuído para alargar o tempo que medeia
entre a infeção e a morte, arrastando o pico para mais tarde”. E face à
evolução atual também estimam que o total de óbitos devido à covid-19 fique
“mais próximo dos 7 mil” no final do ano.
Entre as duas últimas quartas-feiras, a
média de óbitos diária foi de 87, tendo sido atingido no domingo o número mais
alto (98). Entre as várias hipóteses levantadas pela equipa de Manuel Carmo
Gomes para explicar esta subida contínua esteve um pico de frio no Norte. Mas
rapidamente a ideia foi afastada quando se percebeu que o problema não estava
nesta região. Apesar de continuar a ter uma incidência elevada de novos casos e
um grande número de concelhos em risco extremo, o Norte do país já atingiu o
pico de óbitos. Óscar Felgueiras, matemático e professor da Faculdade de Ciências
da Universidade do Porto (FCUP), explica que a “queda acentuada” de novos casos
entre os mais idosos refletiu-se nessa expectável diminuição da mortalidade. “A
queda desses casos ocorreu há cerca de três semanas e até já é visível um menor
número de internamentos na última semana.”
CASO QUASE ÚNICO NA EUROPA
Os óbitos continuam a ocorrer sobretudo nos
grupos etários mais avançados. Até agora, 88% dos doentes que morreram com
covid-19 em Portugal tinham mais de 70 anos, sendo que 67% tinham acima de 80.
Nos últimos três meses, houve um aumento do número de casos entre pessoas mais
idosas e o facto de a mortalidade continuar a subir na região de Lisboa e do
Centro levou os peritos a focar a atenção na possibilidade de ser um aumento de
surtos em lares. “Nos últimos meses, a média de idades dos casos notificados de
infeção passou dos 42 para os 48 anos, o que se deve a uma maior incidência nos
grupos etários mais avançados. No entanto, tendo em conta que o elevado número
de casos diários registados poderá ter diminuído a capacidade de rastreio de
contactos, os casos nas faixas etárias mais jovens podem estar a ser
sub-reportados”, afirma Milton Severo, investigador do ISPUP.
Olhando para a Europa, Portugal é
praticamente caso único nesta ‘demora’ em ver o número de óbitos descer.
Bélgica, Reino Unido, França, Alemanha, Espanha ou Países Baixos têm neste
momento um número de óbitos ocorridos nos últimos 14 dias, por milhão de
habitantes, mais baixo do que Portugal. Na Bélgica, ao fim de pouco mais de
duas semanas de ter ocorrido o pico de casos registou-se o pico de óbitos, com
uma descida significativa: de 238 mortes por milhão de habitantes para 104, um
mês depois. Por cá, o país passou de 94 mortes por milhão de habitantes há três
semanas para 111 esta semana. Só países como Itália, Croácia, Grécia ou Suíça
têm agora uma mortalidade acima de Portugal.
O cenário é bem mais grave nos Estados
Unidos, com um total de 300 mil mortes desde fevereiro. O agravamento recente
foi tão grande que, na última semana, segundo os dados da Universidade de Johns
Hopkins, morreu uma pessoa com covid a cada 40 segundos.
“SITUAÇÃO MUITO FRÁGIL”
Em Portugal, a diminuição dos doentes
internados em cuidados intensivos é uma boa notícia, tendo esta semana descido
abaixo dos 500, o que não acontecia desde o final de novembro (ver gráfico).
Mas a epidemia continua a abrandar muito lentamente. O número médio de pessoas
que cada infetado contagia (Rt) está ligeiramente abaixo de 1 a nível nacional,
mas esse indicador de transmissão do vírus nas regiões de Lisboa, Centro e
Alentejo ainda não está abaixo dessa linha. A única zona do país que está a
descer mais depressa do que todas as outras é o Norte, depois de ter atingido
uma incidência tão elevada que foi considerada “invulgar”.
“A atualização das nossas estimativas
aponta para que, na altura do Natal, tenhamos entre 3000 e 3100 novos casos por
dia. Quando decorreu a reunião de especialistas no Infarmed, no início deste
mês, achávamos que chegaríamos a essa altura com menos casos. Só que começámos
a deslocarmo-nos ‘de lado’, num planalto muito pouco inclinado. Estamos numa
situação muito frágil agora”, alerta Carmo Gomes. “É arriscado manter a
abertura de restrições no Natal e podemos contar com um ressurgimento em
janeiro, com uma dimensão que não sei qual será, embora espere que não seja tão
elevada como em outubro e novembro, mas não é possível ser mais preciso nas
previsões. Nunca passámos por uma época de Natal como esta e sabemos que é uma
altura muito influenciada por um fator de comportamento social difícil de
antecipar.” (Expresso, texto das jornalistas ISABEL LEIRIA e RAQUEL
ALBUQUERQUE)
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