A maioria dos infetados não contagia ninguém, mas 10% dão origem a quase todos os casos. O K mostra-o. Aletra que mais protagonismo ganhou desde o início da pandemia de covid-19 foi o R. É o nome dado ao indicador que mostra quantas pessoas é que, em média, cada infetado contagia. Se um não infetar ninguém e outro transmitir o vírus a 30 amigos numa festa, o R diz-nos que cada um deles infetou, em média, outras 15 pessoas. Só que a realidade é mais complexa e os cientistas sabem agora com mais certeza que o SARS-CoV-2 se transmite de forma muito mais desigual do que a gripe ou outros coronavírus, porque as suas características potenciam a ocorrência de grandes surtos ou eventos de supertransmissão. E é aqui que entra uma outra letra, o K, que é precisamente a medida usada pelos epidemiologistas para retratar como é que um vírus se dispersa na população.
Pelo mundo inteiro há muitos exemplos de situações em que um só doente
contagiou mais de metade das pessoas com quem partilhou um espaço fechado
durante algumas horas. Estima-se que 10% dos infetados sejam responsáveis por
80% dos casos, enquanto que a esmagadora maioria dos doentes não chega a
infetar ninguém. E isso retrata uma grande desigualdade na dispersão deste
coronavírus, o que se traduz num fator K muito abaixo de 1, pois quanto mais
desigual é a propagação de uma doença, mais baixo é o K. Na covid-19, este
valor rondará os 0,1 — muito abaixo da gripe (1) e de outros coronavírus como o
SARS (0,16) ou MERS (0,25).
As características da transmissão do SARS-CoV-2 ajudam a explicar a diferença. Tanto o facto de as pessoas serem altamente infecciosas quando ainda nem sabem que estão doentes, como o potencial de o vírus ser transmitido através de aerossóis ou gotículas aumentam a probabilidade de ocorrerem eventos de supertransmissão.
“O fator K não é necessariamente mais importante do que o R, mas dá-nos
mais informação sobre a dinâmica da transmissão. Se o K for igual ou acima de
1, isso significa que a doença se dissemina de forma equilibrada na população, como
acontece no caso da gripe (cada pessoa normalmente contagia outra). Mas se o K
for inferior a 1, então a doença transmite-se através de clusters”, explica ao
Expresso Müge Çevik, investigadora em doenças infecciosas na Universidade de
Saint Andrews, na Escócia, e coordenadora de um estudo recentemente publicado
na revista “The Lancet”. “Isto não quer dizer que a maioria dos eventos que
geram contágio sejam causados por situações de supertransmissão, mas apenas que
há uma grande variabilidade individual de infeção. Há pessoas que não infetam
ninguém e outras que infetam muitas.”
O fator K não é mais importante do que o R, mas dá-nos informação sobre
a dinâmica da transmissão”, diz a especialista Müge Çevik
Além de enriquecer e complementar a informação dada por indicadores como
o R, mostrando que a maior parte dos casos não contribuem para a expansão da
epidemia, o fator K confirma que os esforços de contenção dos eventos de
supertransmissão podem ter um enorme impacto. “Se conseguíssemos controlar
estes 10% que infetam 80%, teríamos um impacto de 80% na diminuição de casos.
Mas é preciso conseguir identificá-los”, diz Carla Nunes, diretora da Escola
Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa.
Quase todos os eventos de supertransmissão estudados até agora a nível
mundial têm pontos em comum: aconteceram em espaços interiores, mal ventilados
e onde as pessoas permaneceram algum tempo. Casamentos, aniversários, funerais
ou ensaios de coros, locais como igrejas, ginásios, bares e restaurantes, onde
as pessoas falem mais alto, cantem, dancem ou estejam sem máscara têm sido
origem de grandes focos. Em Washington, num ensaio de um coro durante duas
horas e meia, uma das 61 pessoas presentes contagiou 32. Casos semelhantes
aconteceram em minas de carvão na Polónia, em fábricas de processamento de
carne nos Estados Unidos. Em Hong Kong, um grande surto que terá começado numa
banda estendeu-se aos quatro bares onde os músicos atuavam e resultou em 106
infetados, incluindo artistas, clientes e funcionários, além dos seus
familiares, amigos e colegas de trabalho. Já na Coreia do Sul uma só pessoa deu
origem a 5 mil casos num gigantesco surto através de uma igreja, ficando esse
caso conhecido como o Paciente 31.
PICO DE SINTOMAS
Os eventos de supertransmissão resultam de uma combinação de fatores,
explica Müge Çevik. “Não têm a ver só com o indivíduo em si mas com o seu
padrão de contacto social. Para que um grande surto ocorra é preciso uma pessoa
altamente infecciosa, um evento em espaço fechado e um contacto prolongado com
muita gente”, descreve. “Os grandes surtos também estão ligados a pessoas com
redes de contactos muito alargadas, seja devido às condições de trabalho ou de
vida. Por exemplo, alguém que lide com o público, como um motorista de
autocarro, taxista ou funcionário de um café.”
É no comportamento das pessoas que Jocelyne Demengeot, imunologista no
Instituto Gulbenkian de Ciência, vê o maior peso para que estes eventos
ocorram. “Não há muitos progressos para saber se existem características biológicas
nas pessoas por trás desses eventos, mas já se sabe bem que há algo
comportamental, seja pelo nível de contactos ou por falta de precaução.”
Em vez de apenas procurar os casos que um infetado tenha gerado, é
preciso encontrar a origem do seu contágio”, frisa Carla Nunes
A isso junta-se o facto de haver muitas pessoas assintomáticas ou com
sintomas tão leves que não chegam a atribuir à covid-19, o que acentua o risco,
frisa Carla Nunes. “Normalmente, em situações de supertransmissão as pessoas
não sabem que estão infetadas.” E segundo o estudo de Müge Çevik, as pessoas
estão “altamente infecciosas” uns dias antes do início de sintomas e mantêm-se
“muito infecciosas” entre o primeiro e o quinto dia de sintomas (ver texto ao
lado). “Se alguém vai a um encontro de família ou de amigos no início de
sintomas, há uma elevada probabilidade de contagiar os outros. Na fase inicial
da doença, as pessoas têm uma grande quantidade de vírus no nariz e garganta.”
Perceber em detalhe as características dos eventos que geram 80% dos
casos ajudaria a implementar medidas de contenção mais cirúrgicas. “Ter esse
conhecimento requer uma investigação de surtos muito aprofundada e detalhada,
enviando logo equipas aos locais. E sabemos que as unidades de saúde pública
estão assoberbadas”, defende o epidemiologista Guilherme Gonçalves Duarte. Para
travar estes eventos seria mesmo preciso alterar o rastreamento de contactos em
Portugal, aponta Carla Nunes. “Em vez de só procurar os possíveis novos casos
que uma pessoa infetada tenha gerado, era preciso apostar em encontrar a fonte
de contágio desse infetado, numa abordagem retrospetiva.”
Foi o que fizeram as autoridades japonesas logo em fevereiro, quando
olharam para o fator K da covid-19 e perceberam o potencial para eventos de supertransmissão.
Aconselharam logo a população a evitar locais fechados com muita gente e
puseram dezenas de equipas de saúde pública a rastrear os contactos de cada
infetado nos 14 dias anteriores. Como resumiu o virologista Hitoshi Oshitani, a
estratégia do Japão, desde cedo, foi “olhar para a floresta” para perceber o
contexto. “Os países ocidentais, pelo contrário, focaram-se nas árvores.”
(Expresso, texto da jornalista RAQUEL ALBUQUERQUE e infografia JAIME
FIGUEIREDO)
Sem comentários:
Enviar um comentário