Na primeira vez, Chiara Giovannini ficou encantada com a imensidão do oceano, a suavidade do clima, a amabilidade das pessoas, a harmonia com a natureza. Da segunda vez, gostou “ainda mais” da ilha do Porto Santo. “Quando me reformar, vou morar aqui”, pensou. Não se mudou de repente. Terminara a carreia de administrativa havia três anos quando se atreveu a fazer um teste de um ano. “Vou ver como é...” Nada a prendia a Itália. O marido morrera. Não tem filhos nem netos nem irmãos nem sobrinhos. Estava livre para escolher onde viver os seus últimos anos.
O Porto Santo não promete vida mais longa, apesar das propriedades terapêuticas das suas águas (ricas em iodo, cálcio e magnésio) e das suas areias (ricas em magnésio, cálcio, fósforo, enxofre e estrôncio). A Região Autónoma da Madeira até tem uma esperança média de vida à nascença abaixo da média nacional. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, no triénio 2020-22, estava nos 78,7 anos, menos dois anos e dois meses. Chiara “estava óptima de saúde”. Não se pôs a pensar nas maleitas que a idade havia de lhe trazer. “Queria viver perto do mar e sentia uma harmonia completa” naquela ilha, que é reserva da biosfera. Já lá vão oito anos, contava ela 65, vendeu o apartamento que tinha perto de Florença e comprou casa aqui.
Estes anos deram para perceber como funciona o Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira (Sesaram). Em 2022, foi-lhe diagnosticado um cancro numa mama. Teve de se submeter a análises, exames, uma cirurgia, uma série de sessões de radioterapia. Vai às consultas de oncologia à Madeira. No princípio, apanhava um avião, com bilhete reservado e pago pelo serviço público. Seguia numa carrinha do aeroporto, em Santa Cruz, para o hospital, no Funchal. Ultimamente, marcam-lhe viagem no ferry. Nos dois meses de radioterapia não andou cá e lá. O serviço suportou as despesas da estada. "É mais ou menos como em Itália", conclui, num encolher de ombros. "Em qualquer lado se pode adoecer."
Peso de estrangeiros duplicou numa década
A vinda de reformados oriundos de outras partes do país e do estrangeiro acelera o envelhecimento na ilha, até porque esta também não está a ser capaz de reter grande parte dos seus jovens. Em 2021, somava 582 menores de 18, menos 236 do que dez anos antes. E 969 maiores de 65, mais 238 do que dez anos antes.
De acordo com a Estatística da Madeira, o Porto Santo é um dos municípios do arquipélago em que a população estrangeira mais se nota: o seu peso relativo passou de 4,6% em 2011 para 8,5% em 2022. Tirando os jovens de São Tomé e Príncipe que vêm estudar Hotelaria e Restauração e colmatam alguma falta de mão-de-obra, são quase todos reformados.
Diz a experiência do agente imobiliário Francisco Velosa que quando alguma pessoa mais velha procura casa para comprar nesta ilha se multiplicam as perguntas sobre o acesso a cuidados de saúde. É uma informação relevante em qualquer idade, mas sobretudo nas mais avançadas.
O presidente da câmara, Nuno Batista, começa por atribuir este aumento de estrangeiros à atractividade intrínseca, desdobrando-a no clima, na segurança e na “forma como a comunidade integra estas pessoas”. Refere depois o subsídio de mobilidade ao residente no Porto Santo para a Madeira, o aumento das ligações aéreas, a melhoria no acesso aos cuidados de saúde saúde.
"A pessoa quando compra o bilhete para a Madeira já só paga a sua parte", esclarece. "O subsídio de mobilidade são 25 euros. A viagem de barco fica a dez e a de avião a 50." Nos meses de Janeiro e Fevereiro não há ligações áreas para o continente. No mês de Janeiro nem há ferry para a Madeira, só avião. O autarca desdramatiza. "São dois meses para descansar, recuperar forças." Lá para Março, tudo recomeça.
No centro de saúde, há cinco médicos de família para os 5158 residentes. Incorpora unidade de cuidados paliativos e unidade de diálise e assegura pequenas cirurgias e urgências básicas – os casos mais graves são transportados pela Força Aérea para o Funchal. Há cerca de um ano e meio, na sequência da pandemia de covid-19, médicos de 20 especialidades começaram a deslocar-se à ilha para dar consulta ao sábado, num sistema de rotatividade, o que evita algumas idas ao Funchal.
Antes, só havia equipa médica de intervenção rápida na época alta. Em 2023, a ilha passou a contar com uma equipa o ano inteiro. "Em situações mais complicadas, são apoio ao serviço de urgência." Lá para 2025, haverá uma unidade local de saúde, com urgência, internamento, consulta externa, medicina física e de reabilitação, hemodiálise e cuidados continuados.
A instalação de um número crescente de estrangeiros na ilha aconselha alguma atenção. “Da nossa parte, temos procurado ter actividades culturais e ambientais que facilitem a inclusão destas pessoas na comunidade”, diz Nuno Batista. “Notamos que há muitos amigos a trazer amigos e pessoas que vinham de férias e encontraram no Porto Santo o sítio para a reforma.”
Para prestar apoio social, há um centro de convívio, um centro de dia e uma estrutura residencial para idosos geridos pela Fundação Nossa Senhora da Piedade. E a Universidade Sénior, parceria da junta de freguesia com a Direcção Regional para a Administração Pública do Porto Santo.
Chiara está inscrita na Universidade Sénior, mas já só frequenta as aulas de hidroginástica. Aquela resposta foi importante para si no princípio da sua vida na ilha. Agora que tem amigas, prefere passar tempo com elas. Também se entretém facilmente a ler um livro ou a assistir um filme.
Isabela Fernandes mudou-se para a ilha pouco depois de Chiara. Natural da Madeira, deu aulas no Porto Santo antes de fixar residência no continente. “Foram quase 30 anos na loucura de Lisboa”, diz ela. Professora de História, com três filhos, não parava. “Aquela vida de andar de carro de um lado para outro... aquilo deu cabo de mim. Isto aqui é uma paz. Gosto desta paz, deste silêncio.”
Os filhos é que a aconselharam a instalar-se na casa de férias da família no Porto Santo. Com a mais nova a morar nos Estados Unidos, a mais velha no Reino Unido e o gémeo a circular entre vários países, Isabela não estava apenas cansada, estava sozinha.
“Quando dei cabo do pé, foram os vizinhos que trataram de mim”, revela, aludindo ao dia em que saltou um muro atrás de um dos seus gatos e caiu. “Arranjaram-me uma cadeira de rodas. Traziam-me o almoço e o jantar. Tratavam dos meus gatos. Se eu vivesse em Lisboa, não conhecia ninguém, ficava para ali sozinha, sem me poder mexer.”
Não se queixa do acesso aos cuidados de saúde, mas no seu discurso transparecem as delongas. “A minha cabeça não anda muito boa. Ao fim de um ano consegui psiquiatra cá. Só fui a uma consulta. À segunda consulta, faltou. Vejo que a minha memória vai piorando.”
Não perde uma oportunidade de se exercitar. Além da hidroginástica, vai à ginástica, ao walking football e ao Português da Universidade Sénior do Porto Santo. O treinador de walking football é voluntário; os outros monitores são professores destacados da Escola Básica e Secundária Dr. Francisco Freitas Branco.
Como explica a coordenadora da Universidade Sénior, Nazaré Cunha, professora de Música oriunda de Aveiro, os idosos “não são obrigados a ir a todas as actividades”. “Cada um escolhe as que gosta. Temos seis homens e 47 mulheres. A maioria anda nos 60, 70 anos.”
Algumas, como Maria José Vasconcelos, de 77 anos, experimentam ali o prazer que não tiveram na infância. “Agora é que estou a viver a vida. Sou a mais velha de 17 que a minha mãe teve. Quatro faleceram bebés, mas os outros não. Comecei a trabalhar cedo. Tinha 9, 10 anos quando fui servir para casa alheia.”
Trabalhou na fábrica de conservas, teve seis filhas, trabalhou no Hotel Praia Dourada e muitos, muitos anos no Aeroporto do Porto Santo. Uma vez reformada, restava-lhe “a vidinha de casa”, que despacha de manhã, e um barzinho, que ainda agora abre ao final do dia. “Desde que possa, gosto de comparecer na Universidade Sénior. Não estou para chumbar por faltas”, brinca.
Em 2022, pôs-se a aprender a tocar piano. “Começámos com o piano da escola. A professora disse que os interessados em continuar deviam comprar o seu. Agora não sei se vou chegar a dar algum concerto. Tendo o papel à frente, toco. Para decorar tudo, já não.”
No Natal daquele ano, tocou umas músicas lá em casa. “Alguma coisa ainda aprendi!" Preparava-se para voltar a arriscar no Natal de 2023. “A professora está ensinando a ver se a gente toca mais alguma coisa, mas não sei. O Natal é um dos dias mais assinalados. Vem a família. Conversa, comida, chega a hora de a família ir para casa e lá se foi o concerto!...”
Tem pisado palcos a sério. Em Novembro, houve um concerto no centro cultural e de congressos que juntou a cantora Cristina Claro com o Coro Infanto-Juvenil da Junta da Freguesia e com o Coro da Universidade Sénior. Era a festa de aniversário da Escola da Vila, projecto de residências artísticas e de práticas artístico-pedagógicas dedicadas à comunidade desenvolvido pela Porta 33 em parceria com o Plano Nacional das Artes. E Maria José lá estava, com um lenço vermelho ao pescoço, toda contente, a cantar, sob direcção de Nazaré Cunha e Margarida Galvão.
Uma escola para todas as idades
A antiga escola da vila está aberta a pessoas de todas as idades. Desde Outubro de 2023, a artista plástica Luísa Spínola trabalha nela a tempo inteiro – trata da organização a da comunicação e orienta ateliers de desenho. Aos 61 anos, pediu mobilidade à administração pública, no Funchal.
Passava férias aqui desde a infância, Luísa. “Antes era um ‘caminhar até’ e agora é o ‘estar’. Só estando cá a viver é que senti que esta ilha tem um tempo que agora é o meu tempo. O tempo da ilha não é tão acelerado, devido ao isolamento, ao território em si, à luz, ao calor. E eu queria desacelerar. E desacelerei.”
Os co-directores da Porta 33, Maurício Pestana Reis e Cecília Vieira de Freitas, ambicionavam criar uma actividade regular para que a Escola da Vila não fosse apenas um lugar ao qual se vai a propósito de uma residência artística, um workshop, uma exposição. Desejavam que a escola que idealizaram como um laboratório das artes e do pensamento fosse um lugar de permanência.
“É um retorno”, resume Luísa. “Esta era uma escola e continua a ser uma escola no sentido lato, de lugar onde se aprende, mas acima de tudo de lugar onde se sente a alegria da aprendizagem”. As crianças vêm ao sábado ao final da manhã e os adultos às terças e às quartas ao final do dia, mas podem misturar-se. “Tanto uns como os outros estão a aprender. Estamos todos a aprender.”
Planeia ficar, pelo menos, até se reformar. “O objectivo é terminar [a vida laboral] de uma forma prazerosa.” Começou a trabalhar aos 18 anos. Passou por vários lugares da administração pública. A arte sempre foi, para si, “um porto seguro”. Agora, tudo convergiu. “Volto outra vez ao tempo. Há um tempo para cada coisa. Às vezes, estamos desalinhados, mas há.”
Pode ser um lugar apaixonante, a ilha. Que o diga o casal polaco Izabela Bielicka e Arkadiusz Panasiuk. Da primeira vez, em 2019, fizeram uma viagem de um dia. Estavam de lua-de-mel na Madeira e apanharam o ferry de manhã para o Porto Santo, regressando ao final do dia. Da segunda vez, em 2020, iam ficar dois meses. Por causa da covid-19, ficaram quatro. Começaram a imaginar-se a viver aqui.
Ainda não são idosos. Izabela conta 53 anos e Arkadiusz 56. Ela é artista e professora e ele um militar reformado. “Na Polónia, como em Portugal, trabalhámos muito. A nossa vida é como um limão que vai sendo espremido pelo sistema”, diz ela, meio em inglês, meio em português. “Decidi há dez anos fazer tudo para deixar de trabalhar aos 50. Temos dinheiro para a habitação e para o pão e isso é suficiente.”
Outras ideias, porém, emergem. Frequentam aulas de Português. Aproveitam o mar e a serra, tratam da casa e do jardim. Arkadiusz começa a imaginar-se a ensinar navegação à vela. Quão difícil seria abrir uma escola de vela no Porto Santo? “Sei que isto é Portugal e que toda a gente gosta é de futebol, mas, com este tempo fantástico, este vento fantástico, é um desperdício.”
Talvez este seja o início de uma segunda carreira, agora com outro ritmo. Uma coisa é certa: não se arrependeram de se terem mudado para uma ilha minúscula e distante no oceano Atlântico que fica quase cortada do mundo em Janeiro. “Gostamos do ar”, diz. “O ar aqui é perfeito, é muito puro. É importante para nós o contacto com a natureza e com as pessoas. Temos muitos amigos aqui.”
“Há muitos estrangeiros”, observa Chiara. São originários da Alemanha, da Dinamarca, da Noruega, de Inglaterra, de Itália, da Polónia. “Muitos vão e vêm. Não fazem uma escolha definitiva. É como férias. Também há uns que fazem disto uma colónia. Não se relacionam com as pessoas de cá. Para mim, isso não tem sentido. Sinto-me parte dos porto-santenses.” Continua a sentir-se em harmonia com a natureza. “Às vezes, menos, mas fundamentalmente, sim. Sinto-me parte daqui. Não vou pensar no futuro. Claro que um dia vou morrer, mas em qualquer lugar se morre" (Publico, texto da jornalista Ana Cristina Pereira)
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