terça-feira, julho 16, 2019

Guilherme Silva (Correio dos Açores) defende revisão constitucional para reforçar poderes das regiões

Correio dos Açores: Por nomeação do Presidente do Governo Regional da Madeira, é o Presidente da Comissão Executiva das Comemorações dos 600 da Madeira. A sua vinda aos Açores insere-se nesta condição e qual a importância dos eventos desenvolvidos para as duas regiões e para as comunidades insulares?
Guilherme Silva (Presidente da Comissão Executiva das Comemorações dos 600 anos da Madeira): As actividades tiveram início em 2018. Foi decidido que o ciclo das comemorações não seria fixado num ano só. Isto porque a ilha do Porto Santo foi descoberta em 1418 e a ilha da Madeira no ano seguinte. Para contentar um pouco os historiadores, devido à controvérsia das datas, estendeu-se a data das comemorações até 2020. No ano passado, deu-se uma maior atenção ao Porto Santo, e este ano foi para a Madeira, sendo que nesta ilha privilegiamos o Machico porque foi na baía que os navegadores desembarcaram, ou seja, é o concelho que está mais conotado com a ilha em 1419. A ideia central das comemorações é chamar a atenção para a nossa memória coletiva pois uma comunidade que não tenha o registo do seu percurso está aquém dos seus valores que foram sendo construídos ao longo de 6 séculos. Não é uma comemoração que se restringe unicamente à descoberta e povoamento, mas também ao percurso do arquipélago nestes 600 anos. 
A presença dos Açores nas comemorações está relacionada com uma vertente extremamente importante neste percurso. Temos muitos madeirenses a residir fora do arquipélago, logo era impensável celebrar esta efeméride sem ter a presença da diáspora, desde a mais próxima, que é o caso do arquipélago açoriano até à mais longínqua como a Austrália e outros países onde existem comunidades de madeirenses. No caso particular dos Açores, existe uma comunidade pequena com cerca de 300 madeirenses. E mesmo estando a “dois passos” da Madeira, quiseram ter [ Casa da Madeira nos Açores] a sua própria intervenção nas comemorações, o que é gratificante. Daí a minha presença no arquipélago. Apesar de termos madeirenses que estão a 1h30 de distância do arquipélago, associaram-se e quiseram ter aqui (nos Açores) as comemorações dos 600 anos. É necessário aperfeiçoar a presença destas instituições e das que estão espalhadas pelo mundo, nas nossas comunidades, e dar-lhes o estatuto necessário para que façam estas iniciativas. A Madeira tem um sentido cosmopolita que construiu de um lado, pelo turismo, e de outro pelo “vai e vem” de comunidades que levam e trazem saberes ao longo destes séculos. Esta é a nossa identidade, é a nossa cultura.

Qual a mensagem primordial que a Comissão quer imprimir?
O que a Comissão quer é chamar as entidades internas e externas, da sociedade civil, a participar nas Comemorações e nós irmos ao encontro das suas actividades, tornando-se ainda mais enriquecedor. Temos eventos de cariz cultural, desportivo, inclusive publicações e a preocupação é articular todos eles. Por exemplo, realizamos um grande evento “600 Anos/600 Músicos” no Estádio dos Barreiros, que mobilizou todas as bandas filarmónicas da Madeira. Todos os concelhos estavam ali representados, na espontaneidade com o povo que integrava aquelas bandas, com o registo secular das nossas músicas. 
Estas comemorações têm que ser tomadas como uma busca das raízes que nos dê uma nova força para o futuro. Muitos jovens têm participado nos nossos eventos e é com eles que temos de contar para o futuro, relativamente no que se refere à autonomia regional e sua evolução e nos desafios das próximas décadas. É preciso ir ao passado, tirar as lições e procurar as soluções para um futuro de maior esperança e de realização para todos. 
Foi deputado da Assembleia da República, teve vários cargos políticos e a sua intervenção foi muito grande ao longo dos anos. Na sua perspectiva, ao longo deste tempo todo, houve marcos importantes tanto na Madeira como nos Açores em relação a Lisboa e houve, também, combates políticos muito intensos, devido ao chamado centralismo. Neste momento, em 2019, com a direita insular e a dizer que Lisboa continua a ser centralista, como vê esta Autonomia?
Portugal tem uma tradição centralista que vem da sua fundação e ganhou esse desígnio com maior ênfase através do império colonial que construiu e manteve durante séculos. A História (de Portugal) é o que é. Desactualizou-se e passou a encarar, como encarou a independência das colónias. Mas ficou-lhe o gosto de continuar a mandar à distância e esse gosto só podia ser feito na Madeira e nos Açores. E houve outro fenómeno que contribuiu para tal que foi o facto de Portugal ter aderido à Comunidade Europeia e há uma necessidade de poder dos países que a integram ter de ceder alguns poderes de soberania. Portanto, estes dois momentos que parecendo favoráveis à Autonomia, também tinham estes “vestígios” de resistência à mesma. Com a Constituição de 1976, deu-se um passo, que nunca se tinha dado antes, de passar da mera autonomia administrativa para a autonomia política.
Na Assembleia da República, sempre procurei que os deputados dos arquipélagos da Madeira e dos Açores, independentemente dos partidos, tivessem uma convergência na questão da Autonomia. Sempre procurámos que as propostas fossem feitas em conjunto pois a pior coisa que se pode fazer perante o poder central é que duas regiões autónomas, que têm o mesmo figurino constitucional, estarem divididas.
Recordo que tem sido boicotada sistematicamente a possibilidade de haver uma revisão constitucional. E essa revisão é crucial e imprescindível sobretudo para as autonomias. O pior que pode haver quer para o lado das regiões autónomas quer para o lado do poder central é um conflito. Há opiniões e movimentos diversos, contudo há que perceber quer da parte dos Açores e da Madeira, existe um sentimento nacional. Ninguém quer ter uma nacionalidade madeirense ou uma nacionalidade açoriana. Queremos que percebam que construímos melhor Portugal no Atlântico se tivermos mais poder. Não traz separatismo nenhum, pelo contrário, reforça. 
A Madeira quer um regime fiscal mais favorável para os investimentos estrangeiros. Mas depois dizem que vai ser diferente do nacional.
Mas vai mesmo…
 Vai, é verdade, mas no entanto vai gerar mais investimento e mais receitas para o arquipélago. Isto não vai diminuir o contributo nacional para a região? Preferem continuar a ter um dispêndio financeiro maior? Esta solução atenta com qualquer unidade nacional ou reforça se houver uma parcela que tem um acesso melhor e que tem uma economia mais sustentável e desenvolvida? É preciso ter esta compreensão perante as regiões. E, por vezes, o preconceito prévio compromete processos muitas vezes justamente por causa disso. Por exemplo, porque é que o arrendamento há-de ser igual em Lisboa, nos Açores e na Madeira? Cada zona tem a sua situação económica específica, logo é diferente para cada uma delas. Se for melhor para as economias locais, para dar uma melhor resposta às nossas necessidades, não se compreende o que isto tem de “divisão”
Mas o que tem falhado com Lisboa? Não se consegue definir as especificidades? 
É o preconceito. A última tentativa de revisão constitucional foi sobrescrita por mim e pelos meus colegas da Madeira. Basta tentar ultrapassar dos limites fixados por nós próprios para se perceber que não querem que sejam dados passos que atentem com a unidade nacional. O que aceitamos como limite: a Representação Externa, as Forças Armadas, as Forças de Segurança, todos estes atributos da soberania do Estado, a Segurança Social, pela sua natureza tributária, os Direitos … 
E no plano geral a Educação também…
Sim, mas a Educação tem que ter as suas diferenças. Temos que preparar a nossa juventude com ensinamentos relacionados com a nossa autonomia e que não estão nos manuais do ensino em geral. Portanto, não há mal nenhum que nós tenhamos também algumas disciplinas e algumas áreas e formação na História da região. O que não queremos é que amanhã os nossos jovens não conheçam esta história e não se sintam motivados nem se identifiquem com esta
É fundamental que ambas as regiões, através dos seus representantes na Assembleia da República, de todos os partidos, consigam encontrar os patamares de convergência de forma que se faça uma frente comum e unida e que lideremos um projecto de revisão constitucional. Nos projectos que apresentamos, apresentamos soluções para a justiça, segurança nacional, saúde, ou seja, para vários sectores porque a autonomia não é só a capacidade de autogoverno, é também o direito de participação no todo nacional. É a dupla vertente de que as autonomias não abdicam. 
Entre os arquipélagos dos Açores e da Madeira, como é feito esse entendimento daquilo que é necessário fazer mais em relação ao poder central?
Cada uma das regiões deve ter consciência de quem têm diferenças e consequentemente não há imperativo nenhum nas soluções de que os Açores vão encontrando na sua sede legislativa seja igual à Madeira e vice-versa. Já referi, por várias vezes, que seria importante a existência de uma assessoria jurídica no Governo Regional da Madeira que acompanhasse diariamente a produção legislativa da Assembleia Legislativa dos Açores e do Governo e da Assembleia da República para duas finalidades respectivamente: observar estudos e avanços que já tenham sido feitos nos Açores e que a Madeira possa aproveitar e para ver se existem ofensas à autonomia. 
Crê que as assembleias, quer dos Açores quer da Madeira, estão esvaziadas de pensamento? 
Este é um problema da crise da democracia e um problema da decadência das instituições parlamentares que se vem arrastando na última década e meia devido aos erros dos responsáveis políticos. Entrou-se nos populismos, os partidos alinharam e o cenário é o que se vê hoje. Há, cada vez mais, um esvaziamento de valores nas assembleias parlamentares. E isso acontece em todas as assembleias, tanto como na AR e nas assembleias legislativas. Faz-se o discurso de que é preciso atrair os melhores para a política, de que é preciso atrair os jovens e este apelo está certo. Mas depois é tudo feito ao contrário pois são criadas condições de hostilidade. Se se falar em aumentar o salário de um político, neste caso, dos deputados, é um tema que é logo falado em praça pública e cruxificado. É feita a demagogia de que um deputado ganha x e o salário mínimo não aumenta. Cada coisa tem o seu espaço próprio. Temos que ter os melhores à frente das instituições, o que implica reconhecer o seu valor. 
Mas se o povo olhar para o seu representante que depois, materialmente, não consegue concretizar o seu discurso, esta comparação tem toda a lógica. Afasta cada vez as pessoas da política e longe do voto, e isso vê-se pelo números da abstenção que as regiões têm. Como se inverte esta situação?
Inverte-se quando os partidos da nossa estrutura democrata perceberem que enveredaram por caminhos errados. Hoje, a vida política desenvolve-se sobre do imediato. Quem está com responsabilidades políticas, não tem uma visão de média-longo prazo, aliás recusa ter esta visão. Isto porque está preocupado com as eleições seguintes, neste caso “o que devo fazer, que não levante ondas, que não hostilidade e que me garanta a reeleição”. Não há nenhuma sociedade que resista, em décadas, a este tipo de opção. Quem é eleito, é eleito para fazer o melhor, não o que mais agrada e esse é que é o grande equívoco dos eleitos. Têm que fazer o melhor, ainda que isso tenha custos. E o povo vai perceber, nem que seja mais tarde. Quem está eleito é o único legitimado para tomar as decisões, quer sejam boas, más, mais agradáveis, menos agradáveis. Há uma linha que tem de ser seguida.
Os partidos não se atualizaram do ponto do vista dos procedimentos no que se refere às questões novas de reincidência da comunicação com os eleitores, como o caso das redes sociais, todas estas novas tecnologias. Não fizeram as reformas e as conversões que deviam fazer para se apresentarem às novas gerações e ao eleitorado que vai evoluindo de modo a chamar os jovens. Há uns anos atrás, estar num cargo político era uma coisa honrosa. Hoje, vai um político na rua e corre o risco de ser caluniado. Não são todos iguais, não são todos corruptos. No entanto, há uma generalização da classe política e temos hoje uma democracia atacada. Não há ninguém na liderança dos partidos e do país que seja capaz de reverter a imagem que existe, de criar uma linha nova. Tem que se ter coragem para romper com isto.
Referiu a questão da corrupção. Não acha perigoso que seja a política a misturar-se com a justiça e a justiça com a política? E que haja uma pressão para que a justiça se imponha perante a política, e vice-versa?
Infelizmente, as coisas chegaram a esse ponto. Não há inocentes nem de um lado nem do outro. É tão perigoso a politização da justiça como a justicialização da política. Cada um deve ter o seu campo e o que se sente hoje são sinais preocupantes das duas coisas. Há politização na justiça e é preciso fazer qualquer coisa para que ela não aconteça. Os tribunais devem ter sempre a última palavra, distante e não partidária.
Os Açores e a Madeira reaproximaram-se politicamente, mas culturalmente mantêm alguma distância e em outros assuntos também. Como acha que se podem aproximar?
Os responsáveis das duas regiões têm que ter a capacidade de distinguir o acessório do essencial. O facto de estarem sob o domínio de dois partidos diferentes não deve ser motivo de divergência. E as questões da revisão constitucional e o aperfeiçoamento da autonomia são essenciais. E assim sendo, deve motivar a convergência das duas regiões. Para mim, é uma questão necessária (Correio dos Açores)

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