“O trator está estacionado à beira de uma estrada perto do bairro de
Vale Geão em Vila Nova de Poiares, distrito de Coimbra. Cai agora uma chuva
miudinha que hoje já caiu mais forte. A viatura tem um depósito atrelado do
qual saem mangueiras que o funcionário da Câmara Municipal coloca num depósito
de cimento enterrado no solo. "Todas as semanas temos de vir aqui despejar
a fossa", conta. "Em menos de uma semana, fica cheia." Neste
local, que concentra os despejos de prédios no limite da vila, ninguém é
desassossegado pela operação. "Mas há casas, nas aldeias, onde é
necessário retirar a janela [sic] para colocar as mangueiras, atravessar a sala
de jantar e limpar a fossa", assegura o trabalhador que faz a extração.
Aqui, apenas 20% do município está coberto por esgotos - a maioria da
população, até mesmo na sede do concelho, depende do trator da Câmara para a
cíclica limpeza das fossas. Os que as têm
chegam a pagar mais pelo serviço do que os cinco euros mensais cobrados
na fatura da água aos que têm esgotos.
Um dos municípios mais desequilibrados do ponto de vista financeiro, com
cerca de 20 milhões de euros em dívida, Vila Nova de Poiares é um local sui
generis. Tem piscina municipal, centro cultural, parque de desportos radicais,
uma imponente "Alameda" onde se realizam eventos ao ar livre, uma
enorme cruz no centro da localidade, um jardim com estátuas que evocam
profissões tradicionais da região e um sem número de outras coisas vistosas.
Mas não tem saneamento básico. Em média, cada um dos 7200 habitantes deve 2776
euros mas a Câmara só recolhe receitas de 890 euros por munícipe. Por isso,
quase todos os impostos locais e taxas estão no máximo. Para Alfredo Pinto, do
PCP de Coimbra, falta apurar as responsabilidades da antiga gestão. "Porque
no fundo, é o povo que paga o descontrolo das câmaras".
Face à situação, este é um dos primeiros municípios a recorrer ao Fundo
de Apoio Municipal, o programa do Governo para acudir às autarquias falidas.
"Não estamos a fazer qualquer tipo de investimento ou quaisquer obras. Só
temos os trabalhadores necessários à manutenção dos serviços mínimos
essenciais. Poupamos até na luz: a partir das cinco horas, cortamos a
iluminação pública", nota o presidente da Câmara, João Henriques, eleito
pelo PS em 2013, depois de 37 anos de gestão do social-democrata Jaime Marta
Soares.
Preparados para 50 anos
Cerca das 10 da manhã de uma quarta-feira. Em frente a uma bica, Carla
Pedroso de Lima, representante do PS na Assembleia Municipal, lembra que
durante o último mandato de Jaime Marta Soares a sua bancada era tratada pelo
então presidente da Câmara como "o infantário". "Durante as
reuniões, tratava-nos por 'acéfalos', 'animais'. Um dia perguntou-se se eu
estava a falar para um fardo de palha", relata a deputada municipal,
professora do Instituto Politécnico de Bragança. Artur Santos, atual
vice-presidente da autarquia, acrescenta: "Éramos das poucas autarquias em
que nas reuniões da Assembleia Municipal estava presente um polícia
municipal..."
Em 2011, os inspetores das
Finanças notaram que a informação contabilística do município era insuficiente,
subestimando o passivo e inflacionando os resultados. Segundo a auditoria, o
município "violava todos os limites legais de endividamento". O
documento notava ainda que o recurso ao Programa de Regularização
Extraordinária de Dívidas do Estado, de 2009, ao abrigo do qual o município
obtivera 4,6 milhões de euros, tinha resultado na "duplicação do
endividamento em montante significativo". Entre 2007-09, sublinham os inspetores,
"assistiu-se a uma prática sistemática de realização de despesas acima da
efetiva capacidade financeira". Por isso, em 2010 o município teve de
recorrer a um financiamento de longo prazo de 7,3 milhões de euros junto de um
sindicato bancário. O spread da maior fatia, da CGD (4 milhões), foi
estabelecido em 6% ao ano. Esta semana,
a autarquia deve receber uma resposta em relação ao seu pedido de uma verba
urgente de 850 mil euros.
Em entrevista ao jornal i, Jaime Marta Soares, atual presidente da
Assembleia-Geral do Sporting, não reconheceu qualquer responsabilidade embora
tenha governado Poiares quase quatro décadas. "Soubemos fazer uma gestão
com engenharia financeira para responder aos nossos compromissos",
justificou-se. Nesse mesmo artigo, gabava-se: "Mesmo que duplique a
população, todas as infraestruturas em Poiares estão preparadas para 40 ou 50
anos."
Na verdade, nas próximas cinco décadas grande parte delas não vão ser
usadas: os três centros educativos do concelho custaram 4,8 milhões de euros e
só têm 15 das 25 salas em utilização. A piscina municipal coberta, construída
em leito de cheia e cuja cave, no inverno, inunda, está fechada e o tanque
principal rachou. A "Alameda" de três hectares onde se realizam
eventos ao ar livre fica às moscas. O parque radical (skating) é usado aos fins
de semana. As terraplanagens na serra do Bidoeiro, onde o anterior presidente
pretendia construir um aeródromo, não passam de uma carecada num monte deixado
ao abandono. E as quatro grandes salas do centro cultural têm neste momento uma
exposição de um pintor francês, Noel Fignier, que vive no concelho, e ocupa
apenas o hall de entrada.
Sem dinheiro para salários
António Leitão Amaro, secretário de Estado da Administração Local, é o
responsável pela troika dos municípios. O Fundo de Apoio Municipal (FAM) é o
instrumento criado para fazer face aos 1,8 mil milhões de euros de dívida das
43 câmaras mais endividadas do País - destas, 20 estão no grupo das
superendividadas (ver mapa). O Fundo, com 650 milhões de euros, foi subscrito a
meias pelos municípios e pelo Estado central.
"Ao criarmos este programa, acabamos por criar uma rede de
segurança para todos os municípios. Será vantajoso também para os que não
precisem do dinheiro, pois com esta rede os juros dos empréstimos têm tendência
para diminuir. É uma espécie de seguro de crédito", realça o governante.
A grande diferença para o programa de ajustamento da República é que o
FAM prevê a negociação com os credores. Este primeiro passo é essencial para um
município assegurar o acesso ao dinheiro do "resgate", que terá juros
próximos dos que o Estado português paga nos mercados internacionais. "Os
credores podem alongar os prazos de pagamento, perdoar juros de mora, baixar as
taxas ou perdoar capital em dívida", nota o secretário de Estado. "Se
os contribuintes fazem este esforço, é natural que os credores também o façam
e, se calhar, é melhor receber 70% agora do que 100% daqui a três anos",
sublinha.
"Sem o FAM, os municípios perdem a autonomia - alguns não teriam
sequer dinheiro para pagar salários", defende António Leitão Amaro. O
município de Aveiro foi dos primeiros a assegurar um financiamento de urgência
ao abrigo do FAM, precisamente para pagar os ordenados dos 760 funcionários.
"Sem a ajuda de emergência [de cerca de 11 milhões de euros], não
poderíamos pagar aos funcionários em novembro e dezembro", testemunha
Ribau Esteves, presidente da câmara de Aveiro, eleito em 2013 por uma coligação
PSD-CDS.
Com 70 mil habitantes, Aveiro é a única capital de distrito entre os 20 municípios
mais endividados. A autarquia deve cerca de 150 milhões de euros, a maioria à
banca. Anualmente, tem receitas na ordem dos 40 milhões. Algumas dívidas a
fornecedores têm mais de 10 anos. "Para nos pormos em ordem, vamos
precisar que o FAM nos empreste entre 70 a 90 milhões de euros", estima
Ribau Esteves. Parte desse dinheiro, defende o presidente, deve ser canalizado
para o programa de rescisões amigáveis com trabalhadores do município, pois a
autarquia "precisa de metade do atual número de trabalhadores".
Os turistas que no final de setembro contemplam os moliceiros a flanar
nos canais poucas queixas terão da embaraçosa situação financeira do município.
Mas basta sair das ruas mais turísticas para os problemas surgirem. Na zona sul
do polo universitário, a Rua do Crasto parece ter sido bombardeada, tantos são
os buracos desta via que circunda a universidade. André Reis, presidente da
Associação Académica, junta ao mau estado das estradas a falta de apoio para a
realização da semana académica: "Deixámos de receber os quase 20 mil euros
que a Câmara nos atribuía", nota o estudante.
Entalados no autocarro
Faltam cinco minutos para as oito da manhã. No centro de Eirol, em
frente do adro da igreja, há um saco de pão pendurado à porta. Nesta freguesia
(agora fundida com a do Eixo), a 13 quilómetros do centro de Aveiro, ainda há
uma ambiência rural. As árvores em redor do cemitério estão cheias de pássaros
chilreantes. À porta do único café aberto, um magote de homens que trabalham na
construção civil tomam um copo. ?E agora, começam a chegar as crianças.
Vitor Marques traz a filha numa carrinha. "Até ao ano passado,
tínhamos um transporte apenas dedicado às crianças que vão para a escola",
nota. Este ano, devido à situação financeira da Câmara, o transporte passou a
ser feito numa carreira regular. "Despediram os motoristas. Hoje, não há
uma rede de transportes que sirva o concelho", acusa o pai de Marta, 8
anos, que frequenta a escola na vizinha localidade do Eixo.
O autocarro já vem cheio. Dentro da viatura, os garotos seguem como
farinha num saco. À saída do autocarro, já em frente da escola básica integrada
do Eixo (do 1.º ao 3.º ciclos), os alunos são por fim desempacotados. Uma
funcionária aguarda com uma cadeira de rodas um rapaz deficiente que veio no autocarro. "Hoje, muitos dos
pais têm medo de enviar os filhos no transporte público e preferem trazê-los de
carro", sublinha, furioso, Vítor Marques, que contou 72 crianças no
autocarro, à chegada à escola. Ele é o promotor de um abaixo-assinado que recolheu
a maioria das assinaturas dos pais de 15 crianças de Eirol, que exigem a
reposição do transporte escolar. Eduardo
Feio, vereador do PS em Aveiro, responsabiliza "o sistemático
desinvestimento nos transportes, a redução de carreiras e a passagem para uma
empresa privada de parte dos circuitos" pela situação.
Ribau Esteves considera que "um autocarro cheio é sinal de boa
gestão" e nota que a Moveaveiro, a empresa municipal responsável pelo
transporte público, "deu o ano passado 2,2 milhões de euros de
prejuízo", sendo necessário racionalizar a rede. Também tem uma resposta
para os problemas nas estradas: "São necessários 15 milhões para as
requalificar. As obras na Rua do Crasto deverão começar muito em breve, a obra
está adjudicada." E ainda tem uma justificação para a queda das placas
exteriores do estádio Municipal, uma obra de 80 milhões de euros de que a
autarquia ainda deve 25 milhões de euros. "Uma caiu e retirámos as outras
porque não ofereciam condições de segurança", explica. "O estádio tem
um conjunto grave de problemas, houve falta de qualidade no trabalho."
Casa do avô grátis
O sol brilha na Praça Marquês de Pombal, este quadrilátero mandado
edificar depois do terramoto de 1755, em Vila Real de Santo António. Na face
nascente fica o hoje moderno edifício da Câmara Municipal, de onde o
social-democrata Luís Gomes há três mandatos governa a autarquia, também uma
das mais endividadas do País (ver mapa). Nas esplanadas, turistas ávidos pelo
sol (agora ameno) do Algarve espreguiçam--se nas cadeiras antes da hora do almoço.
"Grandes festas, projetos megalómanos e uma gestão que beneficia os
privados estão na base do elevado endividamento da Câmara Municipal",
acusa José Cruz, vereador eleito pela CDU em Vila Real de Santo António.
"O presidente da Câmara trata a cidade como se tivesse 200 mil pessoas [o
concelho tem 19 mil habitantes]", critica o eleito comunista. Segundo José
Cruz, a dívida do município será atualmente de 79 milhões de euros, à qual se
deve juntar a da Sociedade de Gestão Urbana, no valor de 48 milhões de euros.
Para estes níveis de endividamento, nota José Cruz, foram gastos "milhões
em festas, com artistas como David Brisbal e Rita Pereira". David Murta,
do PS, garante "que a dívida não cresceu por causa de investimento em
insfraestruturas: a requalificação da frente ribeirinha ficou por fazer e o
parque empresarial não saiu do papel".
Mas Luís Gomes, ouvido pela VISÃO, contraria estes dados. "A dívida
da Câmara é de 58 milhões de euros e a da Sociedade de Gestão Urbana é de 28
milhões de euros", assegura o edil. Qualquer que seja o valor certo, o
município está incluído no grupo dos superendividados. Mas como foi beneficiário do Programa de Apoio à Economia
Local, não será forçado a recorrer ao FAM. "Só o faremos se as taxas de juro
nos forem favoráveis", garante Luís Gomes. "Baixámos a nossa despesa
em 40%, agora temos uns tostões e até queremos antecipar o pagamento de algumas
dívidas", nota Luís Gomes. "Mas nunca desistiremos das nossas
políticas sociais abrangentes", acrescenta o presidente.
Uma dessas políticas consistiu no envio de idosos para tratamentos às
cataratas em Cuba. Segundo o Tribunal de Contas, entre 2007 e 2009 a autarquia
gastou 640 mil euros com 220 pacientes. Num relatório de 2009, o Tribunal
considerou o programa "ilegal" e notou que as operações em Portugal
custariam 1900 euros enquanto foram pagos 2900 euros por paciente em Havana.
"As pessoas esperavam quatro anos por uma consulta e seis por uma
operação", contrapõe, hoje, o presidente da Câmara. ?O envio de pacientes
para Cuba foi entretanto cancelado, mas um programa semelhante foi criado com
uma unidade de saúde privada, que hoje gere uma clínica instalada no pavilhão
desportivo municipal.
No município algarvio existem outros programas sociais. As famílias
carenciadas recebem um cesto de alimentos mensal. Os que não podem pagar a
renda recebem um cheque da câmara. A alguns são também pagos medicamentos e
reduzidas as tarifas da água. E os idosos têm dois centros de dia, as Casas do
Avô, nas quais podem fazer fisioterapia, aprender informática ou encenar peças
de teatro. Por estranho que pareça, isso criou um problema à Misericórdia
local. "Ficámos com metade das pessoas que costumávamos ter porque os
centros de dia da Câmara são grátis", diz o provedor, Joaquim Aguiã, que
assegura que as dívidas que a autarquia tinha para com a instituição estão a
ser pagas.
"Antes os municípios não cuidavam das contas porque havia sempre um
novo programa para os sanear. Agora, não será assim - o FAM e as suas regras
vieram para ficar", garante o secretário de Estado António ?Leitão Amaro.
Será?” (texto do jornalista Paulo Chitas da VISÃO, de 9 de outubro, com a devida venia)