sábado, agosto 07, 2010

Opinião: "O Presidente modera, não governa; sugere, mas não se imiscui"

"O sistema semi-presidencial português, após a revisão constitucional de 1982, conseguiu um equilíbrio que considero virtuoso na repartição de poderes entre o Presidente da República e o Governo. Este equilíbrio implica que, apesar de as funções governativas estarem exclusivamente reservadas ao Governo, entre o PM e o PR se deve estabelecer um circuito de comunicação permanente, em que o PM está obrigado a informar o PR das vicissitudes e objectivos da governação e em que o PR actua simultaneamente como catalisador da cooperação institucional, moderador do sistema e garante do regular funcionamento das instituições. Um PR não tem um programa de governo a apresentar ou a cumprir, tendo antes um compromisso a afirmar e a assumir, que é o que decorre do texto constitucional e da interpretação que faz dos poderes que este último lhe confere. Interpretação que não se traduz, porém, apenas num rol de princípios e de preceitos formais (estes consagrados e balizados na Constituição), mas numa prática diária que resulta de uma análise fina das circunstâncias concretas e da avaliação casuística do que, em cada caso, está em jogo. Não que isto signifique imiscuir-se na governação ou, mesmo ainda, fiscalizá-la. Ao invés, trata-se de sentir o pulsar do país e ouvir a voz dos governados e dos representados nos órgãos de soberania para melhor dialogar construtivamente com estes e contribuir para o bom funcionamento do sistema em prol do interesse colectivo nacional. Para mim, é claro que, neste quadro, em que a função executiva está atribuída ao Governo, o povo privilegia a dimensão do poder moderador e arbitral do Presidente da República no exercício da sua magistratura.
São múltiplas as formas de actuação presidencial para lá dos actos formais que executa, inúmeros os instrumentos informais de intervenção política que o PR tem à sua disposição, instrumentos que, por metáfora, se poderia chamar soft power, desde conversas pontuais com o mais variado leque de atores e agentes económicos, sociais ou culturais, a audiências expressamente solicitadas com atores especialmente importantes ou órgãos-chave da vida nacional (partidos políticos, parceiros sociais) e a audições da sociedades civil, visitas, deslocações pelo país, encontros e, claro, intervenções públicas — ou seja, em geral, a exteriorização de posições oficiais, opiniões e pontos de vista. Poderia, no plano da iniciativa, mediação ou patrocínio presidenciais, dar variados exemplos, desde a formação da COTEC ou a criação do Fórum dito de Arraiolos, à organização das presidências e iniciativas temáticas várias, à mediação que discretamente promovi, por exemplo, entre órgãos regionais e ministro da República. Esta permanente proximidade do Presidente com o país e os cidadãos é preciosa na hora em que, por exemplo, um diploma chega a Belém e lhe cabe decidir se o promulga, veta ou envia para apreciação preventiva para o Tribunal Constitucional. O Presidente dispõe, claro, do parecer fundamentado dos seus assessores, mas este nunca dispensa o conhecimento que lhe vem da experiência directa, do conhecimento que a prática do terreno traz e que confere ao juízo em que se baseiam as suas decisões uma certeza, uma segurança e uma rapidez únicas. Na minha interpretação do exercício — a que procurei conferir estabilidade — dos poderes presidenciais, que não é abstracto mas concreto e diário, procurei sempre ter em conta e/ou aplicar, consoante os casos, alguns princípios essenciais da actuação presidencial, a saber:
– a determinação em assegurar a representação do país, garantir a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições, bem como assumir cabalmente as funções de comandante supremo das Forças Armadas que incubem ao PR;
– uma procura constante do interesse geral e dele ser porta-voz, na certeza de que não se trata, por isso, de agir como um agitador ou perturbador do sistema, mas, pelo contrário, de ser um garante e uma fonte de estabilidade, mesmo quando se recorre aos actos de maior impacto político. Basta a este respeito lembrar situações tão díspares como o pedido de demissão do engº Guterres em 2001, a nomeação do dr. Santana Lopes para PM na sequência da partida para a Comissão Europeia do dr. Durão Barroso em 2004, ou ainda a dissolução do Parlamento a que procedi em 2004, poder presidencial que entendo não como um “poder-sanção” mas como um poder que faculta um relacionamento político directo entre o PR e o eleitorado e a possibilidade de dar ao povo a possibilidade de este exprimir directamente a sua vontade na superação de uma crise política. Não tenho dúvidas de que este poder só se pode utilizar com parcimónia, ponderação e senso político;
– uma efectiva proximidade com as pessoas e o território, uma vez que o PR não só os representa no sentido próprio, sobretudo no âmbito da sua actuação externa, mas também porque, no plano simbólico, encarna uma esperança de justiça e de coesão social, de defesa de causas, valores e direitos-base, funcionando como uma plataforma de diálogo e de porta aberta, quando não de serviço de urgência. Basta para isso lembrar a intensa e quotidiana correspondência que me era dirigida, expressando toda a espécie de queixas, pedidos, desânimos, anseios ou até reclamações;
– o uso sensato da ‘palavra’ e da ‘voz presidencial’, porque o PR não se pode transformar num comentador político e não tem de se pronunciar sobre tudo. A presidência também não tem notícias todos os dias, embora não possa prescindir de alimentar no bom sentido a comunicação social nem de comunicar com o país e de lhe dar voz. Sem excluir a novidade, o PR ganha em usar a previsibilidade como factor de estabilidade;
– uma ética política de actuação presidencial respeitadora das esferas próprias de cada órgão, avançando sugestões, acompanhando a governação, embora respeitando a soberania do Governo na condução política do país; a lealdade institucional que é o oposto da guerrilha institucional; a cooperação institucional; o papel superpartes do PR. Quando se é Presidente da República, todos os gestos e declarações públicas são e permanecem actos presidenciais, com um significado próprio e uma conotação que nunca são do foro pessoal nem privado. Também por isto, este é um cargo pesado e de grande exigência ética que exige um permanente sentido de Estado”. (artigo de opinião publicado hoje no Expresso, da autoria do ex-Presidente da Repúbica, Jorge Sampaio, com a devida vénia)

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