sexta-feira, agosto 13, 2010

Opinião: "As mulheres estão a dominar o mundo??? Nem por isso"

"A revista "The Atlantic" gerou polémica com o artigo "O fim dos homens", onde constata a ascensão das mulheres na maioria dos sectores da sociedade norte-americana. Isto pode fazer sentido nos EUA, mas não no resto do mundo. Prova disso foi a necessidade de criar o UN Women. O comediante norte-americano Stephen Colbert - o mesmo que anunciou em 2007 a sua candidatura à Presidência dos Estados Unidos - fez a pergunta que muitos homens trazem na cabeça: "Nós, homens, ainda somos precisos para alguma coisa?". A questão dirigia-se à sua convidada, a jornalista Hanna Rosin, que recentemente escreveu um artigo para a revista The Atlantic intitulado The End of Men. No artigo - que foi tema de capa -, Rosin traça o retrato de uma América na qual os homens estão a ficar para trás em muitos domínios, incluindo nas universidades e no mercado de trabalho. À pergunta de Stephen Colbert, a jornalista responde que sim - num tom entre o trocista e o maternal - que a situação ainda não é assim tão má; que os homens ainda são precisos. Colbert atalha, resignado: "Por causa da nossa semente...". O público ri-se e a entrevista acaba com o humorista a pedir a Hanna Rosin que, quando as mulheres dominarem o mundo - qual exército programado para destruir os homens -, que ela se lembre que ele era "dos bons". O público volta a rir, mas a dúvida instala-se: será que as décadas de lutas feministas estão finalmente a dar frutos, a ponto de os homens andarem hoje reduzidos a uma pálida imagem do estereótipo do macho-alfa que sai da caverna para providenciar alimento para a tribo? A pergunta parece saída do computador leviano de Carrie Bradshaw, mas após a leitura do artigo The End of Men estas dúvidas começam a fazer algum sentido. Senão vejamos: Hanna Rosin escreve que hoje em dia, e pela primeira vez na história da América, a fatia da população trabalhadora entre os 30 e os 44 anos conta com uma maior percentagem de mulheres com estudos superiores que homens. Algumas escolas privadas estão mesmo a levar a cabo processos de discriminação positiva a favor dos rapazes, a fim de manterem um maior equilíbrio entre os dois sexos. Este "segredo à vista de todos" está, aliás, a merecer as atenções da Comissão norte-americana para os Direitos Civis, que já fez saber que irá investigar estes casos. Mesmo no mercado de trabalho, as mulheres começam a ficar em vantagem. Rosin escreve: "A economia pós-industrial é indiferente ao tamanho e à força dos homens. Os atributos que são hoje em dia mais valorizados - a inteligência social, a comunicação franca e a capacidade de um trabalhador ficar sossegado e concentrar-se num assunto - são, no mínimo, características que não predominam nos homens". Dito por outras palavras: nesta década de crise, em que os empregos na indústria estão a desaparecer de todo o mundo e a migrar para Oriente, os rapazes norte-americanos que não se dão bem nos estudos estão a ficar sem nada para fazer. Os músculos já não são sinónimo de trabalho garantido. A mesma jornalista indica ainda que os homens dominam apenas duas das 15 categorias de trabalhos que se prevê que venham a crescer mais na próxima década. A saber: contínuo e engenheiro informático. "E se, simplesmente, a economia do século XXI for mais adequada para as mulheres e respectivas capacidades?", questiona Rosin.
Este women empowerment transborda igualmente para a vida pessoal. Elas casam-se menos, têm menos filhos e tornam-se donas e senhoras do seu tempo e dinheiro. Se em 1970 84 por cento das mulheres americanas com idades compreendidas entre os 30 e os 44 anos estavam casadas, em 2010 essa percentagem baixou para 60 por cento. As imagens mentais que fazemos deste tipo de mulheres norte-americanas desinibidas e aos comandos da própria vida chegam-nos há vários anos via TV por cabo. As fab four de O Sexo e a Cidade -- cujas vidas avançam entre relações casuais e a compra de sapatos Louboutin - e, mais recentemente, Cougar Town [exibido em Portugal no canal SET], a cidade onde a actriz Courteney Cox caça as suas jovens presas. O termo cougar (puma) já entrou, aliás, no léxico internacional - Hollywood não é estranha ao fenómeno -, reflectindo uma tendência actual: mulheres mais velhas - e endinheiradas - que se relacionam com homens mais novos. Começa, aliás, a haver destinos específicos para este segmento turístico, chamemos-lhe assim.
Num artigo recente do jornalista Joost Bos Banjul para a Sábado, o repórter relata a forma como a Gâmbia se está a transformar num paraíso sexual para as europeias que chegam à antiga colónia britânica em busca de sol e um parceiro sexual para a semana de férias. Nada que os portugueses já não soubessem desde que o nome Zézé Camarinha entrou no léxico nacional (e internacional). No Japão as cougars são conhecidas por outros nomes - "carnívoras" ou "caçadoras". Em sentido inverso, neste contexto de profundas alterações sociais entre os géneros, no mesmo Japão imperial, vive-se actualmente um "pânico nacional" - palavras de Rosin - perante o fenómeno dos "herbívoros": jovens adultos que estão a rejeitar os trabalhos tradicionais, semelhantes aos desempenhados pelos seus pais, para se dedicarem à jardinagem ou à organização de eventos, actuando de forma tão feminina que parecem cartoons - novamente nas palavras de Rosin - e recusando-se a ter relações sexuais.Em resumo, findo o texto de Rosin, qualquer pessoa assume com relativa tranquilidade que o mundo poderá estar à beira de um nirvana matriarcal. Poisem-se os isqueiros e os sutiãs que o trabalho está feito.
ONU cria o UN Women
O grande pecado desta visão descrita pela jornalista é o facto de ser míope à vasta maioria de países que não comungam da meta da paridade e que estão muito longe de atingir uma realidade em que é aceitável uma mulher poder estudar e trabalhar, quanto mais ter parceiros sexuais ocasionais. Adriana Bebiano, coordenadora executiva dos programas de Mestrado e Doutoramento de Estudos Feministas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e investigadora do Centro de Estudos Sociais da mesma universidade, indica ser "preocupante" a "cegueira selectiva presente [no texto de Rosin]: o artigo é escrito da posição de uma mulher de classe média-alta da economia mais forte do mundo". As estatísticas globais estão, aliás, à vista de todos (conclusões da ONU*): a maioria dos pobres existentes no mundo são mulheres; elas são vítimas frequentes de violações e crimes sexuais durante conflitos armados; há um enorme fosso entre o atendimento às grávidas e bebés nos países em vias de desenvolvimento e nos países desenvolvidos; estima-se que, na Ásia, a proporção de mulheres com o vírus da sida aumentou 19 por cento - por comparação com os homens - entre 2000 e 2008; a violência contra mulheres e raparigas continua a ser uma pandemia mundial; em 2006, mulheres e crianças totalizavam 79 por cento das vítimas de tráfico humano; elas representam cerca de dois terços de um total estimado de 776 milhões de adultos analfabetos existentes em todo o mundo; mais de 60 milhões de raparigas em todo o mundo são forçadas a casarem-se antes de atingirem os 18 anos de idade; estima-se que entre 100 e 140 milhões de raparigas e mulheres sejam sujeitas em todo o mundo à prática da mutilação genital feminina e as mulheres ocupavam, em Maio deste ano, apenas 19,1 por cento dos lugares nos respectivos parlamentos. Em Portugal, alguns dados também continuam a alarmar: só este ano os casos de violência doméstica já fizeram 14 vítimas mortais (dados de Julho); as mulheres estão mais presentes na política, mas recebem salários inferiores em muitas empresas e de acordo com o relatório sobre o Progresso da Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens no Trabalho, no Emprego e na Formação Profissional, apresentado em Junho do ano passado no Parlamento, as mulheres ainda trabalham mais 16 horas por semana que os homens em tarefas não pagas, relacionadas com a família. Prova que ainda há muito a fazer no domínio dos direitos das mulheres é o facto de as Nações Unidas terem votado favoravelmente no passado dia 2 de Julho a criação de um organismo próprio - o UN Women - com a missão de acelerar o processo de igualdade entre os géneros. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, fez saber que este novo organismo será uma ferramenta muito útil no combate às "discriminações" que ainda existem no mundo.
Na maioria das vezes, apesar de, globalmente, os indicadores estarem a evoluir, são as mentalidades aquilo que mais custa a mudar. Tome-se o Egipto, por exemplo, o país que ocupa o 82º lugar no Social Institutions and Gender Index, uma listagem desenvolvida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) que mede a discriminação sexual e a desigualdade em 102 países. Shahinaz Abdel Salam é uma jovem egípcia de 32 anos que descreveu à Pública a sua dupla condição de mulher e activista política que, em última análise, a obrigaram a exilar-se em Paris. "Não acho que nós, as mulheres, iremos controlar o mundo. Os direitos das mulheres podem estar avançados nos países ocidentais, mas milhões de mulheres ainda vivem em opressão total no meu país", frisa Shahinaz.
"Mesmo às mulheres que têm um doutoramento é dito que só terão sucesso quando se casarem e tiverem filhos. As mulheres egípcias que queiram prosseguir uma carreira estão sujeitas a enormes pressões. Eu tive que lutar muito e, no final, tive que me mudar para Paris porque, como mulher, via-me sempre na posição de ter que defender as minhas escolhas de vida. Foi por isso que tive de deixar a minha cidade, Alexandria, e de me mudar para o Cairo para trabalhar como engenheira de tecnologias de informação. Escolhi viver sozinha e ser independente, e isso não era aceitável. Escolhi ser activista política e isso também não era aceitável. Escolhi divorciar-me e isso também não era aceitável para as mulheres", lamenta Shahinaz, que termina todos os mails com a frase: "O Egipto não é o Mubarak nem o seu regime".
A jovem conclui dizendo que os direitos das mulheres egípcias não evoluíram nos últimos 90 anos mas que, em sentido inverso, o radicalismo islâmico e as ideias que oprimem as mulheres estão em crescendo. Mesmo dentro dos EUA, as críticas ao artigo de Rosin não se fizeram esperar. The End of Men fez estalar a polémica e muitos jornalistas e defensores dos direitos das mulheres vieram destacar que a peça da jornalista parece ser uma compilação de exemplos criteriosamente escolhidos para veicularem as suas ideias pré-concebidas. Uma das críticas mais inflamadas ao artigo partiu de Katha Pollitt, que escreve artigos de opinião para The Nation e foi considerada pelo Washington Post como uma das pensadoras mais originais da esquerda norte-americana: "É preciso ter uma boa peneira que apanhe estes pedaços estatísticos e anedóticos de forma a tornar plausíveis as conclusões de Rosin que indicam que estamos à beira de nos tornarmos uma sociedade matriarcal".
Pollitt escreve que cada estatística rigorosamente seleccionada por Rosin precisa de uma boa dúzia de asteriscos: "Os homens ainda dominam nas ciências, na matemática, nas engenharias e nas tecnologias de informação (onde estão os bons trabalhos); as mulheres precisam de um curso superior para ganhar tanto como um homem com o diploma do secundário; (...) as mulheres ganham 20 a 30 por cento menos que os homens em praticamente todas as ocupações", sublinha Pollitt. Mesmo no campo da vida familiar, os Estados Unidos estão muito longe da igualdade entre sexos: as mulheres continuam a ter muito mais responsabilidades no que toca a cuidar de crianças e de idosos. Nos EUA - escreve Pollitt citando uma estatística da qual não fala Rosin - há 158 mil homens que ficam em casa a tomar conta dos filhos, por oposição ao esmagador milhão e meio de mulheres que fazem o mesmo.
"Um tempo plenamente humano"
Um dos domínios em que as mulheres estão a recuperar rapidamente, porém, é o da Educação. Estimativas da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico revelam que em 21 de entre 27 países pertencentes à OCDE, o número de mulheres licenciadas é igual ou superior ao número de homens. De igual modo, a ONU salienta que entre 1999 e 2008 a percentagem de raparigas fora da escola decresceu, globalmente, quatro pontos percentuais. Nos Estados Unidos, tal como evidencia Hanna Rosin no seu artigo, este desequilíbrio ameaça tornar-se num problema. A jornalista sugere até que pode haver uma explicação neuronal por detrás do fenómeno. Como se os rapazes estivessem prisioneiros das suas hormonas e o cérebro só começasse a amadurecer um pouco depois. A assunção parece demasiado caricatural, por isso a Pública falou com o neurologista e Grande Prémio Bial 2002 Alexandre Castro Caldas, que explicou que, efectivamente, "as hormonas sexuais influenciam o desenvolvimento do cérebro, em graus diferentes", mas que "faltam dados objectivos" para se afirmar que as raparigas terão mais sucesso escolar e profissional que os rapazes. "Há muito trabalho de investigação a fazer. Estamos ainda longe de conseguir estabelecer relações de causalidade e, sobretudo, há o risco de sermos deterministas. Isto é, dizermos "pronto, nasceu mulher, vai ser melhor nos estudos". Não se pode dizer isto! A estimulação é muito importante e, por conseguinte, o factor ambiental é preciso ser tomado em consideração, e não apenas a genética", indicou o neurologista. Independentemente das razões que possam estar por detrás de uma maior escolaridade das raparigas em muitos países desenvolvidos, o facto é que em Portugal isso já acontece há pelo menos uma década. De acordo com estatísticas compiladas pelo Pordata, em 2008 havia mais de 50 mil mulheres com um diploma do ensino superior em Portugal, um número bastante superior ao dos homens (perto de 34 mil). A diferença mantém-se - embora mais esbatida - quando se analisam os doutoramentos realizados em Portugal no mesmo período: 684 mulheres completaram este nível de ensino, contra 642 homens. Mas uma coisa é a educação e outra bem diferente é a representação das mulheres no mercado de trabalho. "Quanto ao maior sucesso das raparigas na escola, ele é indesmentível, mas os especialistas distinguem entre sucesso escolar, sucesso educativo e por fim sucesso social", ressalvou à Pública a socióloga e investigadora das questões da paridade na área do trabalho, Virgínia Ferreira. "A distribuição de ambos os sexos pelos níveis de qualificação continua a ser muito desfavorável às mulheres", prossegue a mesma investigadora, que elaborou uma série de cálculos próprios e que estarão brevemente disponíveis para consulta**. No decurso do seu trabalho, Virgínia Ferreira apurou, por exemplo, que nas profissões mais qualificadas (sector privado) os diferenciais dos salários entre homens e mulheres tem vindo a acentuar-se na última década. As mulheres são igualmente mais penalizadas em alturas de crise. O INE registava 10,2 por cento de mulheres desempregadas durante o ano passado, contra 8,9 por cento de homens desempregados. Voltando ao artigo de Rosin, Adriana Bebiano considera que aquilo que é "mais preocupante" é a justificação "darwinista" de que a ascensão das mulheres ao mercado de trabalho traria muitos benefícios para as economias nacionais e globais. "É necessário usar a economia para justificar a defesa de direitos humanos?", questiona-se a investigadora.
Adriana Bebiano admite, porém, que "os dados apresentados pela jornalista norte-americana para os EUA não deixam de ser um bom indicador de uma mudança que está a acontecer no terreno" e que algumas coisas estão efectivamente a acontecer, mesmo em Portugal que tem, pela primeira vez desde o ano passado, uma Secretaria de Estado para a Igualdade, que conta apresentar no início de 2011 a Lei da Igualdade, de acordo com declarações recentes de Elza Pais, secretária de Estado da Igualdade, ao PÚBLICO. A nível político, as coisas também têm melhorado: nos últimos três actos eleitorais que decorreram em Portugal foi já aplicada a obrigatoriedade de uma quota mínima de 33 por cento de representatividade para cada sexo."A cidadania plena para as mulheres, a paridade efectiva, terá chegado quando uma instituição destas [Secretaria de Estado para a Igualdade] já não for de todo necessária. Quando já não falarmos em relações "entre homens e mulheres" mas em relações entre "seres humanos" tout court. Quando a identidade sexual - bem como qualquer outro nível de identidade - for absolutamente indiferente para o exercício dos direitos de todos. Não quando chegar "o fim dos homens" ou o início de uma "era feminina", mas um tempo plenamente humano", conclui Adriana Bebiano
" (pela jornalista do Publico, Susana Almeida Ribeiro)

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