domingo, março 08, 2009

Opinião: "Não é essa a questão, no entanto..."

"O caso do Pico Petrolífero nunca foi acerca do esgotamento [imediato] do petróleo. Referia-se ao colapso de sistemas complexos numa economia mundial confrontada pela perspectiva de nenhum novo crescimento alimentado pelo petróleo. Foi decerto um choque para muita gente ter sido a banca o primeiro sistema complexo a fraquejar, mas o processo é óbvio: a falta de crescimento significa a falta de possibilidade de pagar juros pelo crédito… fim da história, como costumava dizer Tony Soprano. Na década passada surgiu uma teoria popular na comunidade dos Peak Oilers: o mundo entraria num período de “planalto ondulante” quando a economia global fosse derrubada pelo pico do petróleo, depois ressuscitaria quando a “destruição da procura” fizesse baixar os preços do petróleo, e depois seria de novo derrubada quando os preços do petróleo disparassem como resposta – numa série de repetições, em que cada uma delas deitaria as economias cada vez mais abaixo – sendo o único resultado imaginável uma espécie de tranquila tendência para o equilíbrio. Este cenário não funcionou como se esperava. Baseava-se na premissa errada de que todos os sistemas manteriam um certo tipo de elasticidade operacional quando se afundavam. De qualquer modo, o sistema bancário foi ferido de morte no primeiro round e o mamute está agonizante. O ultimo acto desesperado do sistema bancário perante a equação de 'acabou o crescimento' do Pico Petrolífero foi engendrar espécies de títulos transaccionáveis que poderiam produzir riqueza a partir do nada ao invés da actividade produtiva. Foi esta a sopa de letras das fraudes derivadas dos algoritmos com nomes vagos e confusos tais como credit default swaps (CDSs), collateralized debt obligations (CDOs), structured investment vehicles (SIV's) e, claro, o recheio básico, títulos suportados por hipotecas. O sistema bancário está agora a morrer engasgado com estes manjares. O problema é que o pelotão SOS que apareceu para socorro do sistema bancário – ou seja, os governos – não consegue remover essas obstruções da garganta do paciente. Eles não querem afogar-se num poderoso vómito da sopa de letras. Na verdade, o colapso de sistemas complexos baseia-se na ideia de que os sistemas cobririam mutuamente os fracassos uns dos outros. É agora fácil de ver como o colapso da banca (ou seja, tanto da concessão de empréstimo como o serviço da dívida) levou ao colapso do comércio e da manufactura. Os próximos sistemas a seguir serão provavelmente a agricultura, os transportes e os próprios mercados petrolíferos (que constituem o sistema para atribuir e distribuir os recursos energéticos mundiais). À medida que estas coisas forem sendo apanhadas, o sistema final que se seguirá será a governação, pelo menos aos níveis mais altos. Se tivermos sorte, os problemas humanos acabarão por se reorganizar a uma escala mais baixa de actividade, de governação, de civilidade e de economia. Cada semana que passa, a incapacidade de reconhecer a natureza da nossa difícil situação empurra-nos ainda mais para o território desconhecido da adversidade. A tarefa do governo neste preciso momento não é apoiar sistemas condenados nas suas actuais escalas de falência, mas preparar o público para reconstruir os nossos sistemas a uma escala menor. O efeito líquido das falências na banca é que muita gente tem menos dinheiro do que esperava ter um ano atrás. Isto já é muito mau, dados os nossos hábitos e práticas da vida moderna. Mas o que acontecerá quando a agricultura entrar em colapso? A perspectiva disso está mais próxima do que a maioria julga. O modo como produzimos a nossa comida foi organizado a uma escala que tem consequências ruinosas, uma delas a sua dependência do capital. Agora que a banca entrou em colapso, o capital vai ser extremamente escasso. Ninguém nas cidades lê as notícias agrícolas, ou ouve as notícias agrícolas na rádio. Mas imaginem: estamos a entrar na estação dos plantios. Vai ser interessante saber quantos agricultores “lá longe” no cinturão Cheez Doodle não vão poder arranjar empréstimos com garantia para as culturas deste ano. A minha previsão é que este ano a perturbação na agricultura vai ser muito grave, principalmente se alguns dos locais mais produtivos do mundo – Califórnia, norte da China, Argentina, o cinturão de cereal australiano – forem apanhados por secas rigorosas a acrescentar à escassez de capital. Se o governo dos EUA vai tentar uma política de remedeio seja para o que for, é melhor começar pela agricultura, para promover a agricultura a uma escala menor, usando métodos que sejam muito menos dependentes dos subprodutos do petróleo e das injecções de capital. Claro que isso exigirá uma redistribuição de terras adequadas ao cultivo de alimentos. Os mecanismos do nosso mercado de imobiliário podiam permitir que isso acontecesse, mas não sem um consenso coerente de que é imperativo fazê-lo. Se o agro-negócio tal como praticado actualmente não se afundar com a escassez de capitais, de certeza que vai entrar em colapso com as roturas dos mercados de petróleo. O presidente Obama pelo menos iniciou uma marcha na direcção certa ao propor eliminar mais subsídios aos agricultores acima do nível de 250 mil dólares. Mas a situação é muito mais grave. De certeza que o Departamento de Agricultura americano já sabe disso, mas o público pode não se mostrar interessado senão quando as prateleiras do supermercado estiverem vazias – e nessa altura, claro, vão ficar malucos. A recente enorme descida dos preços do petróleo deixou mais uma vez o público convencido de que o mundo está a nadar em petróleo – o que falta é obrigar as desonestas companhias petrolíferas a vendê-lo a preços razoáveis. Há décadas que o público tem vindo a ser sistematicamente enganado quanto a isto. O que tem faltado até agora é que o presidente dos EUA retrate a realidade da situação num discurso televisivo sobre este tema. Sei que muitos de vocês pensam que Jimmy Carter tentou isso e não conseguiu impressionar ninguém (e entretanto arruinou a sua presidência). Garanto-vos que Obama terá que fazê-lo nos próximos anos, quer lhe agrade ou não, e seria bem avisado se o fizesse mais cedo do que tarde demais. E com isto não me refiro apenas a vagas alusões à "independência energética" ou a "renováveis" em discursos dedicados a muitas outras questões. Refiro-me a dizer ao público a verdade nua e crua de que nunca poderemos compensar o esgotamento do petróleo e a resposta inteligente é fazer todos os possíveis para mudar para cidades onde se possa andar a pé e em transportes públicos, e não sustentar o insustentável. As alternativas – ou seja, o que estamos a tentar agora – é convencermo-nos mais ainda de que podemos deslocar-nos ao WallMart e aos subúrbios por outros meios que não o petróleo. Apesar dos nossos investimentos nessas coisas, não conseguiremos lá chegar por outro meio qualquer, e seria melhor que surgissem as notícias sobre isso antes que um tremendo desapontamento se transforme numa raiva titânica. Se os americanos acham que foram ludibriados por Goldman Sachs e Bernie Madoff, esperem até eles descobrirem em que é que a fraude do chamado "Sonho Americano" da vida suburbana se vai transformar. Nesta segunda-feira de nevasca nos centros pobres da América, as atenções estão fixadas no fiasco infindável da AIG – uma companhia cujo produto principal andou à volta dos credit default swaps, e agora está sufocada por eles. Conselheiros irresponsáveis nos bastidores da finança andam a profetizar o raio de uma reunião de sanguessugas dos mercados em queda nos mercados de acções seguida por um mergulho para o Dow 4000 ou ainda mais baixo. Eu próprio reclamei um Dow 4000 há dois anos – mas estava obviamente um tanto adiantado no tempo. Tudo isto é bastante perturbador. Mas enquanto a nossa atenção está virada para o Rick Santelli [1] no pregão da Bolsa de Chicago, ou para Larry Kudlow [2] , à procura desesperadamente das "sementes de mostarda" do novo crescimento na finança, tentemos desviar os olhos para o horizonte onde estes outros complexos sistemas estão a trabalhar nas suas próximas jogadas. A agricultura. Os mercados petrolíferos. São estes os próximos teatros de alarme e de aflição".
* por por Jim Kunstler, Março de 2009 (aqui)
N.T. [1] Rick Santelli: jornalista da CNBC, faz reportagens ao vivo no pregão da Bolsa de Chicago. Concentra-se principalmente em taxas de juro, câmbios e no Federal Reserve. Mostrou-se indignado com a ideia de ter que pagar a hipoteca dos vizinhos, principalmente se eles compraram casas acima das suas possibilidades. [2] Larry Kudlow: economista, comentador na televisão e colunista em jornais. Traçou a analogia das sementes de mostarda que, sendo das mais pequenas, dão origem a uma planta muito grande. Defende que, apesar da deterioração dos principais indicadores económicos, está para breve uma recuperação económica.

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