Com a inflação a passar dos 0,9% registados em 2021 - o valor que serviu de referência à atualização das rendas da casa, por exemplo, bem como de aumento de salários na função pública ou de prestações sociais como as pensões de velhice - para os atuais 8% (maio), o valor mais alto nos últimos 29 anos, a vida não está fácil para as famílias portuguesas, que com praticamente o mesmo rendimento têm de fazer face a despesas muito maiores.
De acordo com a Deco Proteste, que tem vindo a acompanhar a subida de preços, a inflação deixou o cabaz de 63 produtos criado com base no consumo típico das famílias - peixe, carne, vegetais, fruta, conservas, massas, farinhas, laticínios, etc. - em média 10% mais caro. Mas há divergências consideráveis que vão da carne e do peixe, cujos preços dispararam 15% a 20%, aos legumes e às frutas, que ainda não chegam aos 2% de subida (ver infografia).
Considerando que cerca de um quarto dos trabalhadores portugueses (880 mil) recebe o salário mínimo, ou mesmo tomando os pouco mais de mil euros do salário médio mensal em Portugal (o sexto pior da Europa), mais de dez euros somados a cada 40 gastos no supermercado são difíceis de encaixar no orçamento familiar. Mesmo porque não é apenas a conta do supermercado que sobe. Tudo ficou mais caro. Com a inflação aos níveis atuais e sem que os salários se alterem - ou alterando-se, como no caso dos funcionários públicos, em menos de 1% -, o encarecimento do custo de vida já quase equivale a perder um mês de salário por ano.
"Cenário ainda pode piorar"
O quadro não é bonito e as perspetivas estão longe de ter melhoras. Economistas antecipam que os preços ainda vão subir antes de estabilizarem ou começarem a descer. Para Daniel Traça, dean da Nova SBE, a pergunta do milhão de dólares é mesmo quando termina a escalada. E a ação de bancos centrais e governos tem sido direcionada para que não se chegue a uma resposta que passe por uma recessão à força. "Neste momento, temos o efeito transversal da subida na energia e nos bens alimentares e não se sabe até quando. Se os salários não forem controlados, vai gerar-se mais inflação que obrigará a medidas muito mais drásticas, como um choque nos juros, para evitar uma espiral incontrolável", explica. O economista aponta a enorme incerteza do momento - "basta ver o que se previa há três meses para o mês de julho e onde estamos hoje" -, mas acredita que a conjuntura pode acalmar em 2023/2024. Até lá, "vamos ter de nos adaptar a viver um pouco pior".
Também João Duque não vê sinais de acalmia nos tempos mais próximos. "Os preços ainda vão subir mais", antecipa o economista do ISEG, assumindo grande receio em relação ao quarto trimestre deste ano. "É a altura do ano em que dispara o consumo de gás e diesel para aquecimento e se lá chegarmos sem que a Europa Central tenha feito o aprovisionamento necessário a prazo para o que vai precisar, vai haver problemas que voltarão a pressionar os preços", resume.
"Infelizmente, não vemos sinais sustentáveis que permitam dizer que a inflação atingiu o seu pico", admite Gonçalo Lobo Xavier, antecipando que a pressão nos preços da energia, "não apenas combustíveis fósseis, mas também gás e eletricidade, ainda se vai manter nos próximos meses". O diretor-geral da Associação Portuguesa das Empresas de Distribuição (APED) lembra o que aconteceu nesta semana com os preços em Portugal e em Espanha, apesar da entrada em vigor da medida de controlo autorizada por Bruxelas.
"A incerteza face ao conflito na Ucrânia e as medidas - necessárias mas com consequências - tomadas pela União Europeia não me permitem pensar que a inflação vai estabilizar ou sequer baixar. Temo que a pressão em toda a cadeia de distribuição se vá manter, especialmente na logística e na produção. E isto levantará dificuldades acrescidas que teimam em não ser mitigadas com as políticas até agora em vigor", sublinha o responsável.
Mais 30 euros num depósito
"A inflação está indesejavelmente alta e deverá permanecer acima da nossa meta (2%) durante algum tempo", assumiu a presidente da instituição, Christine Lagarde, já neste mês, revendo as projeções de inflação para 6,8% neste ano e 3,5% em 2023 e com isso justificando a necessidade de "dar novos passos na normalização da política monetária". E ainda que tenha adiado para julho a subida de 25 pontos-base na taxa de juro do BCE - altura em que termina também o programa de compra de ativos aos países do Euro -, a Euribor já começou a subir, puxando consigo as prestações dos créditos à habitação indexadas à taxa a seis meses (ver texto ao lado).
A pressionar ainda mais o bolso das famílias estão os preços da energia, da gasolina e do gasóleo, que já vinham em tendência de subida - por efeito da penalização dos combustíveis fósseis e da transição energética que levou, por exemplo, ao encerramento das centrais a carvão no país no final do ano passado. Ao efeito da descarbonização, que no arranque de fevereiro já empurravam a gasolina para os 1,78 euros/litro e o gasóleo para 1,63 euros/litro, somou-se a guerra. Que fez explodir os preços ao consumidor, alterando até a ordem dos fatores, com o gasóleo a tornar-se pela primeira vez mais caro do que a gasolina no final de março (2,011 euros/litro, por comparação com a média de 1,987 para a sem chumbo 95). Hoje quase não se distinguem os tipos de combustível: aos preços médios de ontem, um depósito de 50 litros de gasolina custava 111 euros, um de gasóleo 108 euros. O que significa que entre 4 de fevereiro e hoje um condutor de um carro a gasolina gasta mais 20 euros por depósito; no diesel, a diferença quase chega aos 30 euros.
Para quem é que a inflação é boa? Para a receita fiscal
Com os preços todos a disparar, há um efeito positivo óbvio: engorda o recheio dos cofres do Estado, através da maior receita fiscal. Se uma simples maçã custa mais no supermercado, a taxa de IVA que sobre ela incide tem uma base maior, logo representa mais uns cêntimos para o Fisco. Multiplique-se este efeito por tudo aquilo que compramos diariamente e é fácil entender quanto cresce a receita fiscal à boleia da inflação - desde que os níveis de consumo se mantenham. Na conta de supermercado da Rita, os 6,76 euros de IVA pagos nos 40 desembolsados passaram, nos 52 euros que gastaria hoje com as mesmas compras, a 9,6 euros em imposto (Expresso, texto da jornalista Joana Petiz)
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