Sabemos que a Covid-19 está a
propagar-se por todo o mundo desde 11 de março de 2020. Já decretar o seu fim
pode ser bem mais complicado
“Quando é que a
pandemia acaba? Vai ser muito parecido àqueles filmes em que, depois da palavra
‘fim’, ainda demora uma série de tempo até passarem todos os créditos…”. A
imagem que nos é revelada por Carlos Matias Dias, médico de saúde pública e
coordenador do departamento de epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Dr.
Ricardo Jorge –INSA, representa na perfeição a resposta à pergunta que ecoa nas
nossas cabeças há algum tempo. Perante uma doença infecciosa que se dissemina
por todo o mundo, saber quando é que uma pandemia acaba é a resposta que todos
procuram. Os exemplos da história dão uma ajuda, mas…
Sabemos, antes de mais, que nem vale a pena pensar que já dura há uma eternidade, sobretudo quando a realidade insiste em devolver-nos um retrato pior a cada dia. O mais avisado, repetem-nos especialistas e indicadores matemáticos, é prepararmo-nos para pelo menos mais ano e meio de máscaras, álcool-gel e distanciamento social. Já os menos otimistas apostam que, ao ritmo atual de infeções, arriscamo-nos a ter pandemia para os próximos dez anos.
A grande questão é
que, agora tal como ao longo dos tempos, foi sempre muito mais rápido e fácil
determinar quando se está perante um agente infecioso que se espalha por todo o
mundo. Declarar o seu fim, isso, pode ser bem mais complicado. As dúvidas são
mais do que muitas. Isto acaba quando o vírus perder força ou será só quando
houver vacina? E se isso não chegar a acontecer?
Diz que é uma
espécie de terrorismo sanitário
Há anos que a OMS,
e outros especialistas e interessados no tema, como Bill Gates, avisavam para o
cenário de uma pandemia, um inimigo que o filantropo comparava a um tipo de
terrorismo que, se negligenciado, seria muito mais difícil de deter. Um aviso
não foi propriamente levado a sério – ou pelo menos foi menos escutado do que
poderíamos imaginar. Agora que a Covid-19 já cá está, oficialmente, há sete
meses, e as populações começam a acusar a fadiga de viver com restrições
constantes, a pergunta ainda sem resposta começa a fazer um eco constante e
regular. Afinal, quando é que isto acaba?
Oficialmente, há
duas maneiras de descrever o fim de uma pandemia. Uma é a erradicação clara,
permanente e completa de um agente infeccioso – mas nisso poucos acreditam,
como o médico de saúde pública do INSA. “Provavelmente, vai tornar-se sazonal,
tal como aconteceu com outros coronavírus conhecidos”, acrescenta Carlos Matias
Dias, a lembrar que, segundo esta definição, uma pandemia termina quando o
vírus já não é predominante em todo o mundo – ou em múltiplos países.
A outra, a tão
almejada imunidade de grupo, essa, obriga a um processo que é bem mais moroso e
complicado. “Sabemos que há imunidade quando uma boa percentagem da população
já não desenvolve – nem transmite doença”, segue o especialista, sublinhando
que é também por isso que damos tanta atenção ao valor do Rt, como se tornou,
entretanto, conhecido o risco de transmissibilidade – e aí, remata, “o ideal é
que esteja abaixo de 1. Neste momento, por exemplo, há regiões do país com um
Rt de 1.3, muito perto do 1.4”.
Valores certos
sobre a percentagem da população que já contactou com o vírus ainda ninguém
sabe ao certo. Uma perspetiva muito otimista foi anunciada há uns meses –
segundo o modelo matemático de Gabriela Gomes, epidemiologista na Liverpool
School of Tropical Medicine, a imunidade de grupo atinge-se quando 10% da
população tiver sido infetada. Agora, o valor mais consensual entre
especialistas situa-se entre os 40 e os 60%, embora haja quem considere que é
preciso que o vírus chegue a 75% da população… E nós, como acrescenta ainda
Ricardo Mexia, o epidemiologista que é também presidente da Associação de
Médicos de Saúde Pública, estamos ainda nos 3%, segundo os dados dos testes
serológicos já realizados.
10 anos também é
manifestamente exagerado
Alcançar a
imunidade de grupo para fazer corta-mato e decretar o fim da Covid-19 mais
rapidamente foi, alegou-se já por diversas vezes, a estratégia de países como a
Suécia, em que o vírus circulou de uma forma mais livre. Mas perante o receio
de um colapso sucessivo dos sistemas de saúde, concordam os especialistas, o
mais razoável será aguentar a respiração mais um bocadinho (e não deixar o
vírus alastrar à sua vontade…) até chegar a dita vacina. Anunciada já para o final
de 2020, início de 2021, esta terá, ainda assim, mais uma série de obstáculos a
ultrapassar.
“Por exemplo,
mesmo meses depois, ainda podemos estar longe do fim da pandemia. O mais
expectável é que haja uma eliminação – ou redução de atividade – progressiva”,
considera Carlos Matias Dias, que lembra o caso da varíola, a última doença
pandémica considerada erradicada pela humanidade há 40 anos. A última pessoa a
contraí-la foi um cozinheiro de um hospital na Somália em 1977, mas só em 1980
se considerou o seu fim. “Vai parecer muito aqueles filmes em que, depois da
palavra ‘Fim’, ainda demora uma série de tempo até acabar o genérico…”, compara
aquele epidemiologista – não falando da ironia de o tal cozinheiro, de seu nome
Ali Maow Maalin (com direito a página na Wikipédia e tudo), depois de
recuperado por completo, ter acabado por morrer de malária em 2013, com perto
de 60 anos.
É que, a
dificultar ainda mais o processo, há ainda a já conhecida mutação periódica
deste tipo de coronavírus, o que pode obrigar a que a vacina também tenha de
ser regularmente atualizada. E será que depois as pessoas aderem à vacinação?
Esse é mais um receio de quem estuda estes processos – afinal, o crescendo de
movimentos anti-vacinas não é propriamente despiciente. “Veja-se o caso da
gripe. Nem nesse caso, relativamente pacífico, a população adere em
massa”, remata Matias Dias, o que
explica as campanhas públicas anuais a apelar à vacinação. Agora também deduzir
disto tudo que nem daqui a dez anos nos livramos do SARS-CoV-2 é, aos olhos
daquele médico de saúde pública, “algo manifestamente exagerado” (revista Visão)
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