Mesmo sem ter lido a carta que também lhe é dirigida, o bastonário da
Ordem dos Médicos (OM), José Manuel Silva, aplaude a “coragem” de Ricardo
Duarte, um médico de 38 anos que está “revoltado” com a falta de condições no
Hospital do Funchal onde trabalha, com o estado a que chegou o Serviço Nacional
da Saúde e com o país em que vive. Foram
essas as razões que levaram Ricardo a tornar pública a sua indignação. Num post que se tornou viral, depois de ter sido posto a circular nas
redes sociais, Ricardo vai listando e explicitando as suas queixas. Com uma
especialidade em anestesiologia, uma subespecialidade em medicina intensiva e
uma competência em emergência médica, e apesar de trabalhar “65 horas por
semana”, diz que ganha “menos de metade do que há oito anos”. Uma média de
“nove euros por hora”, enfatiza o médico, que, para receber o ordenado base
limpo, "tem de acrescentar em média 100 horas extras por mês". Ricardo lamenta com especial ênfase a falta de condições em que é
obrigado a exercer diariamente a profissão, por falta de condições financeiras:
"Trabalho num serviço de saúde onde tenho de improvisar a toda a hora
porque o fármaco x e y 'não há' (Ups… estamos proibidos de dizer que não há!).
É um facto. Onde temos vários ventiladores de 30 mil euros avariados (um deles
há mais de 1 ano!) porque 'ninguém' pagou a manutenção."
Não há, prossegue, “dinheiro para um monitor e um ventilador de
transporte para a sala de emergência de um hospital dito central e centro de
trauma certificado” numa região em que “se gastam muitos milhões em
fogo-de-artifício e marinas abandonadas”.
“Ainda não li a carta porque estou fora do país [em São Tomé e
Príncipe]. Mas ainda bem que ele faz essas críticas. Isso tem de ter
consequências”, declara José Manuel Silva, um dos destinatários da missiva que
está a ser partilhada por milhares de pessoas (foi o director do hospital que
decidiu enviar o post para o bastonário e para os responsáveis pela Saúde na
região da Madeira e os candidatos a Presidente da República, segundo a Visão).
Admitindo que este tipo de atitude (a divulgação pública da falta de
condições de trabalho no SNS) “não é habitual”, até porque os profissionais
“têm medo e são ameaçados [se o fizerem]”, o bastonário garante que vai
“endossar a carta para as entidades oficiais, que não se podem refugiar no
silêncio ou assobiar para o lado”. Sublinha ainda que a Ordem tem pedido “aos
colegas” para publicitarem o que está mal. A Ordem não faz mais nada?
“Naturalmente iremos responder”, diz o bastonário, que não se mostra surpreendido
com o valor que Ricardo diz ganhar por hora. “Por isso é que, desde o início da
crise, já emigraram mais de mil médicos”, lamenta.
Foi depois de ter ido a um centro de saúde para vacinar o único filho,
de cinco anos – “Não tenho dinheiro para pagar o infantário a um segundo que
não tenho” –, que Ricardo decidiu passar a escrito a sua revolta. “Dois dias
antes da morte do jovem nas urgências no S. José [onde David Duarte, 29 anos, morreu com uma
ruptura de aneurisma cerebral], fui com o meu filho ao centro de saúde para o
vacinar [contra a difteria, tétano e tosse convulsa], mas não consegui, porque
não havia vacinas [esta vacina tem estado esgotada em todo o país]. Ora, como é
possível que o país se levante quando, pelas mais diversas razões, não se consegue
salvar alguém, mas ninguém se indigne por não haver prevenção?", pergunta. Ricardo, que trabalhou na urgência no dia da Natal, onde foi “insultado”
pelo familiar de um doente descontente com o horário das visitas, lembra ainda
que “todos os dias” tem de tomar “decisões clínicas que determinam a vida e a
morte de pessoas" ao seu cuidado –nomeadamente sobre “hemorragias
aneurismáticas", como a que vitimou David Duarte no S. José.
O post na íntegra
"Estou desmotivado… mais! Estou revoltado!
Porquê? Tentando fugir a toda e qualquer subjetividade, vou-me
restringir a factos (sem respeitar um acordo ortográfico que assassina a minha
língua materna):
1. Tenho 38 anos, sou Médico há 15 anos. Possuo uma especialidade em
Anestesiologia, uma subespecialidade em Medicina Intensiva e a competência em
Emergência Médica. Gosto do que faço!
2. Recebo menos de metade de quando acabei a especialidade há 8 anos. É
um facto. Para receber o meu ordenado base limpo tenho de acrescentar em média
100 horas extras por mês. Trabalho assim 65 horas por semana a uma média de 9
euros por hora. É um facto.
3. Este ano estive de serviço no dia de Natal, o ano passado fiz o 31 de
Dezembro. É um facto. Nesse dia de Natal fui insultado pelo familiar de um
doente que não concordou com o horário da visita do meu serviço. É um facto.
Tenho um filho com 5 anos e não tenho dinheiro para pagar o infantário a um
segundo que não tenho. É um facto.
4. Pertenço à minoria de Portugueses que paga impostos, e como sou
considerado rico o meu filho paga mais na creche que muitos outros… pelo mesmo
serviço, porque não come mais, nem come antes. É um facto.
5. Todos os dias tenho de tomar decisões clínicas que determinam a vida
e a morte de pessoas ao meu cuidado. É um facto. Hemorragias aneurismáticas,
como as do mediático caso do David, são apenas um exemplo das situações que eu
e os meus colegas temos de tratar o melhor que sabemos e podemos. É um facto.
6. Mesmo sendo médico limito-me a comentar profissionalmente situações
que são da minha área de diferenciação. A Medicina é tão vasta que se comentar
situações ou acontecimentos de outras áreas sei que vai sair asneira. É um
facto.
7. Vivo num País em que quem comenta o penalti e o fora de jogo acha que
sabe o suficiente para ditar o certo e o errado naquilo que faço todos os dias.
Em que aqueles técnicos de ideias gerais, a quem chamamos jornalistas, e os
seus amigos comentadores profissionais, se sentem à vontade para “cagar lérias”
sobre aquilo que desconhecem e não têm capacidade técnica para apreciar. É um
facto. Por mais de 9 euros à hora… Julgo eu, porque nunca me mostraram o recibo
de vencimento!
8. Trabalho num serviço de saúde onde tenho de improvisar a toda a hora
porque o fármaco x e y “não há” (Ups… estamos proibidos de dizer que não há!).
É um facto. Onde temos vários ventiladores de 30 mil euros avariados (um deles
há mais de 1 ano!) porque “ninguém” pagou a manutenção. É um facto. Eu levo o
meu carro à revisão todos os anos e pago. É um facto.
9. No dia em que o que me pagarem para ir trabalhar não for o suficiente
para a despesa da gasolina e do estacionamento (como com certeza acontece com
algumas equipas de prevenção específicas do SNS), não o farei. É um facto. Isso
não retira qualquer valor ao juramento de Hipócrates, nem a lei obriga (ainda!)
ao trabalho escravo. É um facto.
10. Se eu estiver doente e precisar de assistência prestada pelos meus
colegas no SNS tenho de pagar taxa moderadora, ao contrário de muitos outros… É
um facto. E se andar de comboio, como não sou trabalhador da CP também pago. É
um facto.
11. Eu e os meus colegas trabalhamos mais doentes que muitos doentes que
são vistos no serviço de urgência. É um facto. Vivo numa região em que qualquer
dor de dentes, grão no olho ou escaldão da praia vai para a urgência do hospital
numa ambulância de emergência médica. Muitas vezes com a família no carro
imediatamente atrás da ambulância. E sem pagar um tostão. É um facto.
12. No hospital em que trabalho existem mais de 100 camas de agudos
ocupadas com as chamadas “altas problemáticas”. Situação que se arrasta há
vários anos e legislaturas e cuja resolução (política) escapa aos mais dotados.
É um facto.
13. Vivo numa região em que se gastam muitos milhões em fogo de
artifício e marinas abandonadas, sem existir contudo dinheiro para um monitor e
um ventilador de transporte para a sala de emergência de um hospital dito
central e centro de trauma certificado. É um facto.
14. A descoberta das vacinas constitui um dos maiores avanços da
Medicina do século XX e a implementação de um plano de vacinação global para a
população é um marco histórico de qualquer civilização, contribuindo para a
redução da mortalidade infantil e aumento da esperança de vida. É um facto.
Vivo num país que já não consegue garantir uma cobertura vacinal completa e
atempada às sua crianças. Um retrocesso de gerações… um sistema podre e
decadente. Não vejo os noticiários abrirem com esta notícia. É um facto. O meu
filho não fez a vacina da difteria, tétano e tosse convulsa aos 5 anos. Não há…
Talvez para o ano. É um facto.
15. E por tudo isto estou revoltado… É um facto.
Funchal, penúltimo dia de 2015.
Ricardo Duarte. Cédula da Ordem dos Médicos 41436" (texto da jornalista Alexandra Campos, Público)
Sem comentários:
Enviar um comentário