segunda-feira, julho 17, 2023

Quem manda nos dinheiros dos grupos parlamentares? Dúvidas, certezas e zonas cinzentas

Marcelo acha a lei “cinzenta”. PSD, PS e PCP acham-na clara como água. O Chega e a IL vão contra a maré. O Tribunal de Contas tem dúvidas. E o juiz que validou as buscas ao PSD viu razões para isso. Eis como o caso que pôs Rui Rio à varanda desassossegou uma gestão dos dinheiros partidários que tem barbas. O assunto não é novo, a ex-presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, Margarida Salema, há muito que denuncia práticas ilegais na gestão dos dinheiros dos partidos e dos grupos parlamentares, mas foi preciso o Ministério Público lançar uma aparatosa operação de buscas ao PSD para se estilhaçar o consenso assumido entre partidos há mais de 30 anos e segundo o qual “no pasa nada”. Trocada por miudos, a questão parece simples: de acordo com a lei de financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais, alterada oito vezes em 20 anos, cada partido recebe uma quantia anual relativa a cada voto conquistado nas últimas eleições, para financiamento partidário; e cada grupo parlamentar recebe uma subvenção por cada deputado eleito, para encargos de assessoria e para a actividade política e partidária e outras despesas de funcionamento.

De acordo com a leitura seguida e posta em prática desde os anos 80 pelos partidos com assento parlamentar, as duas verbas entram no mesmo ‘bolo’ orçamental, podendo ser geridas nas duas frentes, partidária ou parlamentar, de acordo com as necessidades. Mas o que para a classe política parecia pacífico à luz da lei, deixou de o ser. A começar para o Presidente da República que, tendo estudado o assunto na sua tese de doutoramento e embora concordando que sendo o grupo parlamentar um orgão partidário a lei parece inclinar-se para a tese do ‘bolo’ comum, veio agora apontar “zonas cinzentas” na legislação.

“Esta dupla natureza (partido, grupo parlamentar) torna muito difícil saber o funcionamento e financiamento do dia a dia”, comentou Marcelo Rebelo de Sousa, considerando que “fica uma zona cinzenta” e há “uma reflexão que vale a pena fazer para o futuro, porque não é muito fácil definir as fronteiras, entre o grupo parlamentar como órgão do partido ou como órgão do Parlamento, deve-se clarificar o que pode ser ou não pode ser”.

“Não há aqui zona cinzenta nenhuma”, respondeu-lhe Rui Rio na entrevista que deu à SICN na sexta-feira à noite, onde foi perentório a afirmar que esta é uma prática “transversal” a todos os partidos, que existe desde os anos 80, e que foi cumprida pelo próprio Marcelo quando liderou o PSD.

A tese de Rio é esta: “O artigo 5.º da lei de financiamento dos partidos políticos diz quais são as verbas que os partidos políticos têm à sua disposição para gerir. Têm duas verbas: uma porque concorreram às eleições e tiveram mais de 50.000 mil votos, outra porque têm um grupo parlamentar”, explicou. Insistindo que “Estas verbas, uma e outra, são para utilização do partido e quem trabalha no grupo parlamentar ou quem trabalha na sede (ou nos dois sítios ao mesmo tempo) está a trabalhar para o partido. Não há uma coisa que é o grupo parlamentar e uma diferente que é o partido. É tudo a mesma coisa".

O PS, onde esta também é a prática seguida há décadas, foi rápido a concordar. Pela voz do secretário-geral adjunto do partido, João Torres, chegou a total concordância com Rio: “Considero que a lei de financiamento dos partidos hoje já possibilita de forma abasolutamente clara (leia-se sem zonas cinzentas) que exista uma gestão integrada, partilhada, entre partidos e grupos parlamentares”, afirmou. Embora reconheça a conveniência de clarificar a lei, para retirar quaisquer dúvidas de que a prática seguida desde os anos 80 é a que vinga.

O PCP veio este sábado associar-se à dupla do centrão pela voz do secretário-geral dos comunistas, Paulo Raimundo, para quem “a lei em vigor permite o financiamento por duas vias: pela via do financiamento público direto aos partidos e pela via do funcionamento aos grupos parlamentares para a atividade também partidária e da Assembleia”. Logo, na sua opinião, “a lei que está em vigor é clara, e aliás é tão clara que possibilitou funcionar estes anos todos para todos os partidos, portanto, não estou a ver nenhuma neblina”.

Suscitada a polémica e estando o caso já na Justiça, Raimundo alinha, no entanto, com os que aceitam clarificar a lei: “Uma coisa que é evidente: se há questões a esclarecer, então que se esclareçam rapidamente, porque manter esta neblina e esta pressão não é positivo, nem para os partidos, nem muito menos para a democracia”.

PAGAR RENDAS E FAZER LEIS

Em sentido oposto, veio André Ventura. O líder do Chega defende não ser possível misturar as duas subvenções, partidária e parlamentar, e anunciou que o seu partido irá propôr na Assembleia da República uma clarificação oposta à que é defendida pelo PS e pelo PCP.

Na sua opinião, a lei “é clara - há duas subvenções e duas coisas diferentes, o trabalho parlamentar e o partidário” e querer “confundir o pagamento da renda de uma sede partidária em Bragança com a feitura de um projeto de lei na Assembleia da República” é querer ”confundir as pessoas".

No mesmo sentido, Cotrim Figueiredo, deputado da Iniciativa Liberal, defendeu em entrevista à SICN que a lei das verbas parlamentares é “clara” o suficiente para os partidos saberem que não podem estar a pagar a assessores que não têm trabalho parlamentar. Assegurando que a IL não o faz e que é bastante “fácil” não o fazer, o ex-líder do partido explica que “temos assessores parlamentares que trabalham para o Parlamento e temos assessores que trabalham para o partido”.

Sexta-feira, no Expresso da Meia Noite, o advogado Ricardo Sá Fernandes lembrou que as buscas realizadas às sedes do PSD e à casa do seu ex-líder, Rio Rio, só puderam ocorrer sob autorização de um juíz e que isso pressupõe uma leitura prévia da lei. Ou seja, se as buscas foram autorizadas é porque, de duas, uma: ou se entendeu que a gestão conjunta das verbas é ilegal ou se reconheceu haver dúvidas.

Quem não tem dúvidas e voltou à carga foi Margarida Salema, que acusa "os Parlamentos de terem deixado de ter a noção de que não estão ao serviço dos partidos”, quando, a lógica da lei é separá-los de forma a que as subvenções dos grupos parlamentares sejam apenas aplicadas em serviços dedicados ao trabalho dos deputados e não possam servir para pagar trabalhos a prestar aos partidos.

Embora reconheça que “a fronteira é ténue”, a ex-Presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos recorda que o Tribunal Constitucional tem “acórdãos e acórdãos a diferenciar actividade partidária de actividade parlamentar”, no sentido de que este último tem de estar “relacionado com o trabalho parlamentar dos deputados”.

Em termos legais, Margarida Salema defende que “os dinheiros públicos têm de ser utilizados para os fins que a lei prevê e não podem ser para outros, ainda que muito próximos. Isso também é peculato”.

O Público relembra, entretanto, que o Tribunal de Contas tem pressionado a administração da Assembleia da República para impôr exclusividade aos funcionários dos grupos parlamentares. Em 2020, lembra o jornal, o tribunal invocou um parecer da PGR que concluía que os membros dos gabinetes de apoio aos grupos parlamentares exercem funções públicas, razão pela qual prestam serviços em subordinação às regras de direito público” e, por isso, “deverão estar sujeitos a um regime de impedimentos e incompatibilidades”, na linha do que é “aplicável aos gabinetes ministeriais”.

Recorde-se que este caso nasceu de uma denúncia anónima entregue no Ministério Público em 2020, acusando a liderança de Rui Rio de usar verbas do seu grupo parlamentar para pagar despesas do partido, incluindo a um ex-chefe de gabinete reformado.

Rui Rio apareceu à varanda de sua casa, irado mas irónico com o método seguido pelo Ministério Público, que lhe entrou em casa às 7h da manhã quando a TVI já estava à porta. E na SICN foi duro, acusando o MP de estar “a destruir a democracia”. Certo é que o caso Rio veio forçar o Parlamento a revisitar a lei. Muito provavelmente, para que algo mude e tudo fique na mesma (Expresso, texto da jornalista Ângela Silva)

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