segunda-feira, outubro 17, 2016

Carlos Pereira, Marítimo, ao Expresso: "“Pinto da Costa é o Papa, Bruno de Carvalho um barril de pólvora e não sei se Vieira percebe muito de futebol”

Em grande entrevista, Carlos Pereira, o presidente do Marítimo fala dos outros e dele, dos tempos em que o futebol era paixão, dos ralis, da alcunha Pirata, do hotel Savoy, da PIDE, de Alberto João e dos cruzeiros que ainda quer fazer. E de Pinto da Costa, Bruno de Carvalho, Luís Filipe Vieira e Pedro Proença. Está a favor ou contra Pedro Proença como presidente da Liga? Estou muito contra o Pedro Proença e muito contra a Liga. A Liga hoje não tem razão de existir. Face ao que é o passivo da Liga, face àquilo que são os custos da Liga, tenho muitas vezes dito em Assembleia Geral que a Liga hoje não tem razão de existir. A Liga perdeu tudo o que tinha: arbitragem, disciplina, sponsorização. Só ficou com a organização de jogos, o que podia ser feito por uma secção da Federação Portuguesa de Futebol. A Liga está toda hipotecada, a Liga não gera receitas para pagar o seu passivo. Os clubes é que irão suportar... É um parente pobre do futebol e não tem razão de existir. Nem Pedro Proença vai dar conta daquilo. Ele que me desculpe, mas tenho de ser frontal. Estive a favor da Liga, mas agora não faz sentido, hoje é uma feira de vaidades e um custo insustentável. A Federação faria o mesmo com muito menos custos.

É verdade que fez um leilão na venda do Marega e do José Sá? Não é verdade, não fiz um leilão. É verdade que havia um direito de opção do Sporting que não foi exercido aquando da venda do Danilo e que o Marega e o Sá estiveram praticamente vendidos ao Sporting. Era uma vontade de Jorge Jesus, porque tínhamos falado nisso. É verdade que me disseram que o negócio estava fechado, com o selo de garantia de Álvaro Sobrinho. Depois o presidente do Sporting deu o dito pelo não dito como aconteceu em relação ao Danilo. E o negócio não se concretizou. Não houve leilão. Foi o tempo mais que suficiente para o negócio ser feito e que não foi feito por única e exclusiva responsabilidade do presidente do Sporting. No caso do Danilo, fiz questão de dizer que não ia esperar mais e que um euro a norte era igual a um euro a sul. Se há um responsável chama-se Bruno Carvalho.
O que pensa de Bruno Carvalho, Luís Filipe Vieira e Pinto da Costa? São três personagens completamente diferentes. A experiência, a credibilidade e a maturidade de Jorge Nuno Pinto da Costa, quer se queira, quer não, pode estar num momento menos bom, é... Como que lhe vou chamar? Não queria chamar-lhe o Papa, mas é o Papa do futebol. O Luís Filipe Vieira é uma personagem que apareceu e que eu conheci ainda como empresário dos pneus, que depois foi para o Alverca e tem uma visão mais larga, que fez a transformação que se vê no Benfica. Eu não sei se ele conhece muito de futebol, mas conhece muito de negócio e soube rodear-se de uma figura que não se conhece que é o Domingos Soares de Oliveira e de uma outra figura que é o Paulo Gonçalves, que têm feito de Luís Filipe Vieira um grande presidente. Do Bruno Carvalho é difícil de descrever porque nunca sabemos amanhã o que é que ele é. O Bruno de Carvalho alterna o bom com o mau com uma facilidade enorme, dá o dito pelo não dito com uma facilidade enorme. Foi assim nas reuniões da Liga, nas Assembleias da Liga e tem sido assim no relacionamento com as pessoas. A surpresa para mim é que, sendo um barril de pólvora, como é que ainda não explodiu.
Há negócios obscuros no futebol? Se há, não os conheço.
Não houve sequer uma tentativa? Abordagens há muitas, mas nunca fui vocacionado para ser comissionista. Há abordagens de todos os feitios, mas no dia em que ceder fico na mão dessas pessoas. Não caminho nessa direção.
E vai continuar à frente do Marítimo? Imagina-se sem o Marítimo? Imagino. O tempo é ocupado rapidamente.
Não vai sentir saudades do clube Provavelmente.
Está para breve? Já comprei o camarote ao lado da tribuna para o dia em que deixar a presidência, mas ainda faltam dois anos para o fim do mandato. Daqui a dois anos logo se vê. Eu não preciso de eleições para dizer as pessoas que, se tiverem melhores ideias e se acharem que têm condições para levar o barco a bom porto, estou disponível para sair. Tenho é que tirar as responsabilidades pessoais que tenho e quem vier tem que fazer aquilo que eu fiz, fazer grandes financiamentos ao clube, ter a tal capacidade de assinatura, que a Banca acredite para fazer os financiamentos. Esta obra está feita a expensas próprias do clube e do presidente. Só é preciso fazer isso. Até me faria bem, teria tempo para uma futebolada, para fazer uns passeios nas levadas e para fazer uns cruzeiros que eu adoro. Sou casado há 45 anos com a minha mulher e se calhar esta longevidade deve-se ao Marítimo. Como estou pouco em casa, discutimos pouco. O Marítimo foi vantajoso até no casamento. E foram os conhecimentos que tinha através do Marítimo que permitiu ajudar a resolver um problema de saúde gravíssimo que a minha mulher teve em 1987. Quero com isto dizer que o Marítimo não me deve nada, sou eu que devo muito ao Marítimo. Não precisei do Marítimo para me promover. Quando cá cheguei já era empresário e sem precisar da política, embora seja do PSD desde sempre.
Como veio parar à bola? Vim parar à bola porque desde tenra idade estou ligado ao futebol. E vim parar à bola porque uma família, a Quirino Rodrigues de Sousa, que era cliente do meu pai e dirigia o Andorinha, ao ver um jovem que já dava uns pequenos toques, me convidou para jogar no Andorinha. Tinha 14 anos, jogava a defesa direito.
Antes disso jogava na rua? Na rua como tantos outros miúdos e no velhinho campo Almirante Reis, que é o berço do futebol no Funchal, onde nasceu o Marítimo. Deu-se o caso de ser também o meu quintal porque eu morava em São Filipe e São Filipe é paredes meias com o liceu e do liceu ao Almirante Reis é um instante. Era o meu quintal. Tudo se fazia ali – jogar à bola, andar de bicicleta e de mota. No verão passávamos o dia todo no campo, no inverno também, menos quando havia mau tempo no mar e todos os barcos ocupavam o Almirante Reis. Perto do Natal ainda ficávamos com menos espaço, que era quando montavam as diversões, era um misto de tristeza com alegria. Todos os cantinhos eram aproveitados para jogar futebol e todos os cantinhos eram aproveitados para colocar lá as diversões. E lembro-me perfeitamente do cinema ao ar livre. É uma coisa que vamos reeditar aqui no estádio dos Barreiros.
Vai promover cinema ao ar livre aqui nos Barreiros? Vou fazer no próximo ano, nos 40 anos da subida do Marítimo à primeira divisão. Vamos reeditar futebol, filme e fado para lembrar os tempos do Almirante Reis, que é o berço do Marítimo, é o meu berço e o é o berço de muita gente, de várias gerações.
Jogava no Andorinha e era adepto do Marítimo? Sempre fui adepto do Marítimo, a sede era mesmo perto da minha casa e isso fez-me ver as cores vivas do clube.
Lembra-se da primeira vez que viu um jogo do Marítimo? Os jogos que mais me recordo são os torneios de infantis do Almirante Reis com o Vasco da Gama, o Belenenses, o Santa Maria, o Pátria, o Braga. No estádio havia os jogos entre o Marítimo e o Sporting da Madeira, que era o principal rival nos anos 60, ainda mais do que o Nacional e o União. Lembro-me de uma transferência de um jogador do Sporting para o Marítimo que foi notícia de primeira página no Diário de Notícias da Madeira. Foi o Arnaldo Gonçalves.
Fez coleções de cromos? Nessa altura era quase obrigatório fazer a coleção de cromos. Era um futebol de que se gostava muito e dá muitas saudades desse futebol. Hoje é um futebol comercial, não é um futebol de paixão, não é um futebol de coração.
Não é um futebol de rua como aquele que jogou? Até o futebol da rua tem objetivos comerciais. Os pais estragam tudo com a 'cristianomania', porque todos têm que ser como o Cristiano Ronaldo, mesmo que se saiba que talentos como o de Cristiano Ronaldo só aparecem uma vez na vida. Não é este o futebol que eu gosto, mas é o futebol em que tenho que estar inserido, é o futebol que permite fazer investimentos. Tenho que estar pela parte comercial, mas se me perguntar se é aquele que eu gosto, digo logo que não. O que eu gosto é aquele em que se beijava o emblema e se sentia o clube; era quase como dar um beijo à nossa mãe. Hoje pensa-se no emblema, mas como é que este nos vai projetar financeiramente para o futuro. São coisas completamente diferentes.
Nesse caso, viveu intensamente o dia 15 de Maio de 1977, quando o Marítimo subiu à primeira divisão? Essa memória vai perdurar no tempo como uma coisa única da paixão pelo futebol. A paixão clubística, uma paixão que foi vivida numa união muito forte do desporto na Região. Nesse dia, o Nacional subiu à segunda divisão e houve festa coletiva. Não me coibi de festejar porque foi um momento de afirmação da Madeira. E eu guardo em casa duas camisolas de dois jogadores da equipa do Marítimo: uma do Ângelo e outra do Eduardinho. Andámos a noite inteira com os atletas do Marítimo, fizemos diabruras desde ir ao aeroporto esperar o Nacional, passar pela sede e levar a bandeira do Nacional.
Nessa altura já fazia parte da claque? Não havia claques organizadas, era assim um grupo de amigos que apoiava o clube. Era um apoio espontâneo, mas tínhamos lugar reservado na central. Não tínhamos nome, mas todos iam dar ao lugar certo na central e todos traziam aqueles instrumentos para fazer barulho.
Qual era o seu? Era uma corneta, uma antiga buzina de um carro. Foi comprada em leilão, no 'Ferrolho', e custou o triplo do que valia, mas como eu precisava da corneta para dia seguinte o preço foi pouco relevante. Era uma buzina dos táxis antigos, aqueles que paravam no cais, era de um carro americano, um Chevrolet americano.
Enquanto jogava à bola e apoiava o Marítimo, fez a sua a vida, estudou. Há pouco disse que o seu pai tinha um negócio, que tipo de negócio? O meu pai tinha um negócio de comercialização de areias, mas eu pouco ou nada trabalhei nisso antes do meu pai morrer. Eu comecei a trabalhar aos 14 anos no Hotel Savoy.
E o que é que fazia no hotel? Fui mandarete no hotel Savoy e no Hotel Atlântico, hoje Pestana, e quando deixei a hotelaria era responsável pela manutenção no Madeira Hilton, depois Madeira Palácio. No Madeira Palácio fiz de tudo: portaria, receção, piscina. Aprendi muito, a gestão do hotel era internacional – americana e inglesa e muito exigente. Na hotelaria, no entanto, comecei como o rapaz das voltas e usava orgulhosamente aquela farda branca. Trabalhava e estudava à noite na Escola Industrial e depois fiz o curso comercial no Externato Comercial Jofre Ramalho.
O que é que o rapaz das voltas fazia? Fazia de tudo dentro do hotel desde bagagens até ir ao Funchal fazer entregas. Uma das nossas funções era ir entregar a relação de entrada de hóspedes no hotel à PIDE, mas a princípio não tinha a noção do que era aquilo.
Não sabia o que era a PIDE? Não. Lembro-me de, um pouco mais velho, ter estacionado em frente da PIDE, de ter sido desobediente com o porteiro porque o lugar era só de passagem. Eu decidi parar porque era novo e rebelde e ainda mandei uma boca à saída. No dia seguinte estavam no hotel à minha espera para me deter. Valeu-me o meu quintal ter sido o Almirante Reis e conhecer o chefe da PIDE, o amigo Anatólio, que também era daquela zona e que me avisou para não voltar a fazer, que era desobediência ao Estado. Eu só percebi o que era mesmo a PIDE depois do 25 de Abril, nessa altura era 1º cabo na secção de Justiça do quartel-general, no Palácio de São Lourenço. Ai sim fiquei a conhecer o que era verdadeiramente a PIDE. Fui eu que fui buscar o espólio da PIDE, na Rua da Carreira para o guardar no Forte de São Tiago.
Teve nas mãos os registos da PIDE na Madeira? Li muitas das histórias que constavam dos relatórios e documentos. Já não senti o medo porque aquilo tinha acabado, mas percebi o que era cair ali, estar na mão daquelas pessoas. Aquilo era sinistro, muito mau.
Lembra-se então de como foi o 25 de Abril, das manifestações, das bombas da Flama? Lembro-me, claro que me lembro disso tudo. Da ocupação da RDP na Rua dos Netos, da ocupação do seminário e das bombas... Havia uns rapazes que adivinhavam sempre onde é que as bombas iam rebentar...
E ninguém era da Flama? Ninguém, ninguém, mas na placa central do Sunny Bar, ali na Avenida do Mar, sabia-se normalmente onde é que iam rebentar as bombas, havia lá uns que adivinhavam sempre. Devia ser pelo som ou o vento dizia.
As pessoas tinham medo, estavam assustadas? Ninguém tinha medo de nada nessa altura e toda a gente era aventureira, toda a gente tinha uma história para contar e toda a gente tinha uma ideia para concretizar. Era o tempo em que tudo era possível.
Ficou à frente do negócio da areia, o negócio do seu pai, em 1976, ainda no período quente. Teve problemas com os funcionários? Não, não tive. Essa altura foi aquela em que mais investi. Acho que uma das razões do meu sucesso empresarial foi ter tido a coragem de dizer à minha mãe e aos meus irmãos que só saía do meu bom trabalho se me permitissem fazer aquilo que eu tinha na ideia. Ou seja, o crescimento da empresa António Pereira LTDA. E isso implicava a compra de um navio, de camiões e de uma máquina para a carregadora.
Tudo isso significava um investimento de quanto? Lembra-se? Era uma coisa para quase 10 mil contos, o que era muito dinheiro. Hipotequei o património para obter esse financiamento do Banco Espírito Santo. O meu pai só investia um escudo se tivesse um escudo no bolso. Nada de financiamentos porque tinha medo dos bancos, penso que ficou marcado pela falência da Casa Figueira e pelas consequências que teve na Madeira. Tinha medo e não investia. Lembro-me de ter chegado ao cais de Vila Franca com o meu irmão mais velho e perguntar pelo senhor João Conde, que era o proprietário do navio que eu queria. Um homem que estava a trabalhar com uma das gruas disse para esperar. O senhor acabou de trabalho e veio ter connosco e perguntou: "O que é que o menino quer?". Eu então lá disse que queria falar ao senhor João Conde porque queria comprar um navio de extração de areia. O homem respondeu-me que era o próprio João Conde e que o único navio que tinha para vender era aquele onde estava a trabalhar. Eu lá expliquei que era mesmo aquele, mas pareceu-me grande. Ele respondeu-me: “Menino, sabe que o que é grande tanto traz pouco como traz muito”. E lá me expliquei que o meu problema com o grande era o preço e ele disse que o banco que empresta 10, também empresta 20. E acrescentou: “Resolva isso e venha ter comigo que isto está um caos. Vila Franca é um desastre, os comunas estão a tomar conta disto tudo e eu quero ver-me livre do navio. Vá depressa e volte”. E assim fiz. Comprei o navio, a máquina, os camiões e tive o empréstimo. O que disse à minha mãe foi: não tinha nada, posso voltar a não ter nada, mas tenho a certeza que isto vai dar certo e vamos ficar todos muito felizes.
E ficaram felizes? Foi o meu grande passo rumo ao sucesso. Esse e outro, em 1979, quando fiz um grande investimento na Madeira, ainda hoje é a maior central de britagem da Região. Quando se fala do Carlos Pereira da areia deviam antes dizer o Carlos Pereira das britas. Dei quase a volta ao mundo para comprar aquela central de britagem. Nessa altura, o financiamento foi da Caixa Económica do Funchal (antecessor do Banif), que confiou em mim e me emprestou 55 mil contos. A Brimade, que ainda existe e cujo proprietário é a Cimentos Madeira. Ou seja, eu vendi à Cimpor. Tenho tido uma vida de risco, mas um risco com muito sucesso.
Teve a sorte de viver uma época de grande investimento público, de obras públicas... Foi uma época de dificuldade. Nessa altura só houve uma empresa de construção civil que acreditou em mim.
Trabalhou nos hotéis num tempo em que os turistas faziam contraste com os madeirenses. Também ficou de boca a aberta com as estrangeiras? Muito. A mulher madeirense é muito bonita, mas as estrangeiras vestiam outras roupas, falavam uma língua diferente que nós tínhamos imenso prazer em aprender. Era o tempo dos barcos com as excursões das escolas inglesas. Os barcos – o Laconia, o Devonia e mais outro que não me lembro agora o nome – traziam essas excursões das escolas, eram rapazes e raparigas, e que chegavam aqui e revolucionavam o Funchal. Quando penso nisso, quando penso que aqueles miúdos que chegavam tinham 15, 16, 17 anos e que chegavam aqui às centenas, sozinhos. Parecia que a cidade parava para todos os miúdos das escolas estarem à entrada do cais. Eram outros tempos, outro estilo. A noite de Carnaval, a noite de Fim de Ano. As pessoas pareciam outras, elegantes, arranjadas. Hoje só se vê isso nos filmes antigos. Era uma juventude mais aventureira. Lembro-me que comecei a fazer ralis muito cedo.
Também andou nos ralis? Mas não era nada como é hoje. Era um rali da paixão, era como o futebol naquela altura. Lembro-me que num dos ralis, onde entrei com um Simca Rallye 2, o meu patrocinador foram as pastilhas elásticas Pirata. Fiquei conhecido como o Pirata. Aquilo era tudo por paixão, custava a arranjar o dinheiro, mas fazíamos de maneira desprendida. Hoje em dia, com os nossos filhos é tudo mais fácil, mas não dão o mesmo valor. Eu tenho tanta coisa e não os vejo ter a paixão que eu tinha pelas coisas que conquistava. Os meus filhos são assim, os meus netos são assim. Tudo entra pela porta dentro e até aquela tradição do Natal não é a mesma. Aquilo de acordar cedo e ir correr para o parque de diversões do Almirante Reis para aproveitar bastante, aquilo de ser obrigatório o passeio de fim-de-semana em família no carro do meu pai... éramos oito e cabíamos todos dentro de um Austin 16 e num Austin 10. Tudo isto à própria custa, sem apoios comunitários e os apoios cujos grandes beneficiados são os políticos. Nessa altura, não tínhamos política, não tínhamos nada. Tínhamos a força do nosso trabalho.
Está desagradado a política? Entrou para o Marítimo em 1983 para dirigir o futebol de formação e, nestes anos, o futebol teve de conviver com a política. Sim, sim. Sempre convivi bem com a política e sempre convivi bem com os políticos, mas também tive grandes divergências face aquela que era a visão estratégica. Aquilo do bairrismo é importante, foi importante porque só sentíamos o quanto éramos ofendidos quando saíamos. Isso aconteceu muito no continente. Por isso é que digo que há determinadas alturas em que temos que pôr o nosso coração de lado, a clubite de lado, para usar a razão. Tive grandes divergências com o presidente Alberto João Jardim.
Como foi essa relação? Foi de amor-ódio. Eu não obedeci a muitas das coisas que eram impostas e sempre que tinha de dizer não, dizia mesmo não, mas também tenho de dizer que foi um político de uma visão estratégica, que percebeu que era preciso dotar os clubes das condições e das acessibilidades para a prática desportiva. É verdade que eram outros tempos, mas não nos podemos esquecer que, à entrada, não foi altura de vacas gordas. Tivemos grandes divergências comerciais e desportivas. Nunca deixei de o respeitar por isso e continuo a dizer que foi o meu presidente, continuará a ser o meu presidente sem desprimor para aquela que é a governação actual. A ligação foi mais próxima, mais perfeita e com essas divergências.
É verdade que teve de ir à Quinta Vigia explicar o facto de Nelo Vingada, então treinador do Marítimo, ter aparecido na campanha do PS? Nunca fui à Quinta Vigia explicar absolutamente nada. É um erro crasso alguém afirmar que alguma vez fui à Quinta Vigia receber ordens. O que eu recebia era muitos telefonemas à segunda-feira. É verdade que, tanto o Nelo Vingada como o Mariano Barreto, fizeram parte da comissão de honra de Jorge Sampaio e de Mário Soares. Também é verdade que disse ao Alberto João que estivesse descansado porque enquanto eu estivesse no Marítimo não haveria mistura de política com desporto. E assim aconteceu, assim permanece e assim vou continuar.
Tem cartão de militante? Votou nas últimas eleições internas do PSD? Votei e voto sempre, mas de forma discreta. Não tenho problema nenhum de dizer que apoiei e votei no João Cunha e Silva (candidato que ficou em terceiro nas eleições internas do PSD) . Eu assumo o que faço, mas digo sempre a política não me ajudou em nada financeiramente. Não precisei da política para ser um homem de sucesso. É preferível que precisem de mim do que ser eu a precisar.
De que lado é que estava, em 1997, quando Alberto João Jardim foi vaiado nos Barreiros por causa do clube único? Eu estava em Vancouver.
É uma resposta muito conveniente. Estaria de que lado? Com vaia e ou com a proposta de clube único? Estava do lado do clube como sempre estive. Antes desse episódio, o presidente do Governo convidou-me a mim e ao Jorge Freitas para fazermos parte de uma comissão que vinha na defesa do Marítimo. Lembro-me de ter respondido: azar o seu, eu vou sair, vou para o Alasca e o dr. Jorge Freitas vai para a Suécia, tem que segurar o assunto até à nossa chegada se quiser contar com o nosso contributo. Azar. Houve uma reunião na Assembleia Legislativa entre os três presidentes e tudo rebentou. Por isso, continuo a dizer o que disse na altura: ele estava errado. Deveria pensar num único clube e nunca num clube único. Por isso não estava do lado do presidente do Governo.
Unir os clubes num só clube... Discordo completamente. Lembro-me de dizer que, no relato, quando acabasse o jogo ainda se estava a dizer o nome do clube. Discordo completamente. A história dos clubes não se apaga. Há que pensar seriamente naquilo que é a defesa da Região, aquilo que é o investimento da Região. Não tem dimensão para tanto futebol ao mais alto nível. Digo que abdiquei da equipa de juniores na primeira divisão nacional em benefício do Nacional porque o Nacional já tinha 13 jogadores estrangeiros e o Marítimo tinha oito. Então, com este atual secretário regional, na altura diretor regional, ficou decidido que esse apoio ia para equipa B e o Marítimo abdicava com a contrapartida de que os jogadores formados na Região transitavam para a equipa B e depois para o plantel principal.
E o que pensa de ser um único estádio? Na época passada o nevoeiro interrompeu vários jogos com as equipas grandes na Choupana. Acha que a Madeira devia ter só um estádio? Acho e fui defensor de um só estádio. Nessa altura, quando se formou uma sociedade entre os três clubes, havia já a divisão, foi aprovado o projeto e depois foi chumbado pelos dois clubes: Nacional e União. Ninguém pode acusar o Marítimo, pois esteve sempre à frente nos projetos que eram estratégicos para a Região. O Estádio dos Barreiros seria dos três clubes, fazíamos a promoção da Região e do desporto. Essa sociedade ainda existe, nunca foi extinta, mas nunca entrou em funcionamento. Há razões que a própria razão desconhece. Eu conheço a razão...
E qual é? É dinheiro? Interesses pessoais à frente dos interesses desportivos. Lamentavelmente. Discordei do presidente do Governo, que nunca devia ter permitido e devia obrigar a que aceitassem. Aí os lobies políticos falaram mais alto. E cada um seguiu o seu caminho e nenhum deles pode reclamar ou acusar o Marítimo de os ter afastado. Tentaram que o Marítimo fosse empurrado para as montanhas e o Marítimo disse sempre que não. Pelo menos sob a minha gestão, o Marítimo não saía de junto das pessoas para o deserto...
E para o meio do nevoeiro... Também, também. Aquele projeto foi-me oferecido muito antes e eu respondi: nem que me pagassem, não aceito. No entanto, outro clube foi para lá (Choupana).
Em que lugar fica o Marítimo entre as equipas grandes? É o quinto clube com mais presenças consecutivas na I Liga desde 1984. Portanto, está entre os grandes. É o maior da Madeira e um dos grandes de Portugal.
Foi fazendo alianças ao longo dos anos? Fui fazendo alianças e fui desfazendo em função dos interesses do Marítimo e da Madeira. E sinceramente também em função dos interesses dos clubes madeirenses.
Sendo a Madeira um meio pequeno, como é possível não ter dado pelo talento de Cristiano Ronaldo? Não jogou no Marítimo porque à data as razões familiares falaram mais alto, que não tem nada a ver com a família de Ronaldo. A transferência para o Nacional aconteceu num período em que me ausentei do Marítimo por causa de investimentos fora do nosso orçamento e com o quais não concordei. O aconteceu foi que houve uma disputa entre o Nacional e o Marítimo e que pesou a opinião do padrinho do Ronaldo, que era dirigente do Andorinha. O presidente do Marítimo, o Rui Fontes, não ofereceu os equipamentos ao Andorinha e o Nacional aproveitou. O Nacional também não concretizou a promessa. E costumo pensar que ainda bem que assim aconteceu, se calhar não seria o Ronaldo que é hoje. O padrinho não estava do lado do Marítimo.
Qual acha que foi o melhor jogador que passou pelo Marítimo? Vários, mas na minha gestão foi um jogador chamado Serginho Chulapa, internacional e grande referência do Brasil, e que chegou ao Marítimo e resolveu todos os problemas do Marítimo, mesmo saindo da forma que saiu. Passaram outros como o Everton e podia falar do Pepe, mas o Pepe é mais pela transferência e por jogar no Real Madrid, não pelo que fez pelo Marítimo.
É comum, na Madeira, ser-se de um clube madeirense e de um dos grandes. No seu caso é portista, benfiquista ou sportinguista? Eu não tenho dois amores. Eu tenho um amor: o Marítimo. Sou o sócio 511.
Ainda joga futebol? Agora não que não tenho tempo, mas gostava voltar a jogar. Só que tenho 12 empresas para gerir, mais o Marítimo (Entrevista do Expresso pela jornalista e correspondente, Marta Caires e fotografias do jornalista Gregório Cunha, com a devida vénia)

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