“Dia e noite, o navio português "Figueira da
Foz" patrulha toda a zona a sul de Málaga e Almería (cerca de 240 milhas),
numa das zonas mais visadas pela imigração ilegal, no Estreito de Gibraltar. Os
clandestinos, "desesperados de fome e sem nada a perder", saem de
países como o Mali, Senegal, Mauritânia, Camarões ou Burkina Faso. E têm de
pagar a viagem a máfias locais ou a redes terroristas poderosas, como a
Al-Qaeda in the Islamic Maghreb. Em agosto de 2014, o Expresso acompanhou uma
das patrulhas do "Figueira da Foz", reportagem que agora republicamos
depois de um fim e início de semana trágicos nas águas do Mediterrâneo, onde
morreram mais de 700 pessoas nos últimos dias. Para os lados de Marrocos, muito antes das casas brancas
de El Hoceima ou das montanhas escuras do Rife, o radar avista um ponto perdido
no mar. Sábado, 9 de agosto de 2014. Ninguém ousa fazer a pergunta em voz alta,
mas a dúvida subsiste entre a tripulação por longos minutos: será mais uma
patera carregada de imigrantes ilegais? Dentro do navio, a respiração fica em
suspenso. Uns potentes binóculos passam de mão em mão para confirmar as
suspeitas.
Dias antes, o navio de guerra português "Figueira da
Foz" - que durante agosto de 2014 vigiou uma parte da costa espanhola,
numa missão internacional - tinha ajudado a detetar e a socorrer três destas
pequenas embarcações à deriva no Mediterrâneo, com um total de 43 clandestinos
a bordo. A primeira a ser encontrada vinha carregada só com homens, que tinham
saído da Argélia. A última das três, ainda a navegar em zona marroquina, foi
intercetada com 17 pessoas depois de um telefonema anónimo feito para Espanha a
alertar que o pequeno bote a motor estava a deixar entrar água: "Deram as
coordenadas aproximadas, de modo a garantir que as equipas de salvamento e
resgate espanholas fizessem a recolha da embarcação. É um fenómeno muito comum,
para desviar as atenções das autoridades. Podem estar a passar droga noutra
área", revela o tenente Pereira Roxo, um dos oficiais portugueses com
maior experiência nesta missão coordenada pela agência europeia Frontex, que
controla as fronteiras terrestres e marítimas do espaço Schengen.
Apesar do auxílio prestado pelos portugueses, nenhum dos
43 clandestinos chegou a ser transportado para o interior do "Figueira da
Foz", o único navio da frota internacional com capacidade de prestar ajuda
humanitária a bordo. "Só os recolheríamos se a vida de algum destes
imigrantes estivesse em risco. Isso nunca aconteceu", acrescenta o
comandante do navio, o capitão-tenente Correia Guerreiro.
Foi a Guardia Civil e o Salvamento Marítimo espanhóis que
acabaram por levar nas suas lanchas e helicópteros estes 43 homens e mulheres
para os centros de detenção em Almería ou Modril (perto de Málaga). Ninguém se
atirou ao mar ou tomou alguma medida mais desesperada para ter a certeza de que
seria resgatado pelas equipas de salvamento e levado para terra, como tem
acontecido em casos semelhantes.
Anos para chegar à costa
O navio português, construído há poucos meses nos
estaleiros de Viana do Castelo, ainda cheira a novo. Tem tecnologia de ponta,
motores topo de gama e muito mais espaço do que outras embarcações do género.
Com 83 metros de comprimento, não é difícil para um novato desorientar-se nas
dezenas de corredores labirínticos e escadarias de metal. Em cada esquina há um
extintor, luzes e avisos de segurança. Não fosse o balançar das ondas, que
chegam a assustar quem nunca tira os pés de terra firme, as noites seriam
santas. Há camas de hotéis menos confortáveis do que os beliches
milimetricamente alinhados lado a lado.
Dia e noite, o "Figueira da Foz" patrulha toda
a zona a sul de Málaga e Almería (cerca de 240 milhas), perto do local onde se
trava um dos mais duros combates à imigração ilegal dos últimos tempos, no
Estreito de Gibraltar. Esta semana mais de mil clandestinos foram aí
intercetados em frágeis botes de borracha. Alguns traziam crianças e bebés.
"Muitos dos imigrantes chegam a demorar vários meses
e até anos para atravessar as rotas do deserto subsariano até à costa",
conta Pedro Perez, o oficial de ligação da Guardia Civil com a Marinha
portuguesa nesta operação. O único espanhol das 63 pessoas (oito delas
mulheres) a bordo do "Figueira da Foz" sabe do que fala.
Em outubro do ano passado esteve na ilha italiana de
Lampedusa dois dias antes do naufrágio que matou mais de 300 imigrantes que
seguiam da Líbia para a Europa. "É muito grave o que se passa em
Itália", afirma. Em anos anteriores, Pedro Perez fez também parte de
operações de vigilância ao largo das ilhas Canárias. "A política espanhola
de controlo da imigração deveria ser exportada para outros países. Estamos a
lutar contra o fenómeno logo na sua origem e não apenas à chegada",
salienta.
Os clandestinos vêm, "desesperados de fome e sem
nada a perder", de países como o Mali, Senegal, Mauritânia, Camarões ou
Burkina Faso, resume Pedro Perez. E têm de pagar a viagem a máfias locais ou a
redes terroristas poderosas, como o AQIM, sigla de 'Al-Qaeda in the Islamic
Maghreb', organização que tem prosperado com o tráfico de pessoas mas também de
armas, droga e tabaco, principalmente entre Argélia e Espanha.
"A pretexto da imigração, conseguem introduzir
cocaína na Europa, fintando muitas vezes as autoridades europeias com as
pateras", revela uma fonte policial. Vários relatórios de segurança
internacionais acusam o AQIM de estar a tentar infiltrar-se nas comunidades
muçulmanas do país vizinho. "O grupo declarou França e Espanha os seus
principais inimigos. Vários membros foram detidos" em vários países
europeus, revela um documento do Departamento de Estado dos EUA. O risco de algum terrorista vir infiltrado entre os
imigrantes é considerado por isso "muito elevado", confirmam outras
fontes contactadas pelo Expresso.
Gerir uma tragédia de cada vez
Falso alarme no sábado. Aquele ponto detetado pelo radar
na direção das águas marroquinas era afinal um pequeno veleiro que viajava sem
identificação. Os binóculos foram pousados na mesa onde se fazem os
briefings diários. Por serem tão pequenas, muitas vezes as pateras passam
despercebidas às autoridades. E não é raro serem abalroadas por navios de grande porte,
principalmente no Estreito de Gibraltar, local onde o tráfego marítimo se
assemelha a uma estrada em hora de ponta. "Há quem venha em botes
insufláveis semelhantes aos que se compram num supermercado", alerta o
tenente Pereira Roxo. Muitos saem de África em barcos um pouco maiores usados
para a pesca junto à costa, em grupos que podem ir das 5 às 60 pessoas. "São
embarcações artesanais ou estão em mau estado e não estão preparadas para
travessias que podem variar entre 12 horas até vários dias, quando se perdem e
são levados para longe com as correntes."
O reaparecimento do vírus de Ébola em alguns países
africanos é outra dor de cabeça para a tripulação do "Figueira da
Foz". Muitos dos imigrantes são oriundos das zonas mais afetadas. "No
início da missão não prevíamos o ébola. Mas não foi necessário mudar a atuação,
pois as medidas de proteção já preveem este tipo de transmissão", salienta
o tenente Modas Daniel, médico do navio português. O exercício feito no último
domingo mostrou que a tripulação parece oleada para receber a bordo pessoas
infetadas com o vírus ou com outro tipo de doenças, como a tuberculose. Mas
falta ainda o momento da verdade, quando receberem imigrantes a bordo. "Estamos todos nessa expectativa", reconhece o
médico naval. Até ao momento não se conhecem casos positivos de ébola entre os
milhares de imigrantes já intercetados e detidos no Sul de Espanha. As
autoridades estão a gerir uma tragédia de cada vez, pelo menos por enquanto”
(texto do jornalista Hugo Franco do Expresso, com a devida vénia)