sábado, abril 25, 2015

A história de uma bloguista mentirosa em que todos quiseram acreditar

"Dizer que a mentira tem perna curta talvez não se aplique inteiramente ao caso de Belle Gibson, uma bloguista australiana elevada a figura pública e personalidade de mérito depois de atrair nas redes sociais milhões de seguidores. Com uma história comovente e conselhos sobre como combater o cancro através da alimentação, as suas partilhas deram nas vistas. Belle garantia ter sobrevivido a um tumor maligno no cérebro graças à dieta seguida, mesmo descartando os tratamentos tradicionais, e recordava como iludira a sentença de morte recebida quando (em 2009) os médicos lhe disseram restar quatro meses de vida. Durante quase dois anos, ninguém duvidou. Será, por isso (ainda) um murro no estômago ler a entrevista que a revista "The Australian Women's Weekly" publica esta quinta-feira, com a mentora de  "The Whole Pantry" a assumir, finalmente: "Não, nada é verdade". Tudo começou na internet. O sucesso das suas partilhas - em 2014 tinha mais de 200 mil pessoas atentas ao seu Instagram - catapultou-a para a fama: um livro de receitas publicado pela Penguin, uma 'app' apadrinhada pela Apple, dezenas de entrevistas nos media e até prémios pela relevância do seu trabalho nas diferentes plataformas digitais. Elogiavam-lhe o espírito empreendedor, a personalidade cativante, a coragem.
Caridade, nem vê-la
A reviravolta aconteceu recentemente, a propósito da alegada doação de milhares de dólares para associações benéficas. Belle anunciou que reservaria 25% dos lucros obtidos com o seu "negócio" para apoiar instituições e solidariedade, afirmando ter doado 300 mil dólares australianos em 2014 (cerca de 216 mil euros), o que se percebeu ser mentira quando várias das instituições nomeadas garantiram desconhecer a intenção ou ter recebido um cêntimo que fosse. Só então os jornalistas começaram a investigar a história da bloguista e a descobrir-lhe as imensas pontas soltas. Para começar, a idade. Segundo os seus primeiros posts, o cancro ter-lhe-ia sido diagnosticado em 2009, aos 20 anos, o que - feitas as contas - a deixaria agora com 23. Ora, uma declaração de finanças entretanto recuperada dá conta de ter nascido há mais tempo e ter já completado os 26. Um pormenor, dada a escala da efabulação. Com o cerco apertado, Belle Gibson tornou-se evasiva, recuou em algumas das "memórias" e começou a alegar não se lembrar de muitos pormenores anteriormente partilhados. Entre essas manobras de marcha-atrás, veio admitir ter recebido falsos diagnósticos em relação aos tumores secundários de que falara, no útero, sangue e no baço, mantendo ser verdade que um médico (nunca identificado) e um curandeiro lhe tinham detetado o cancro no cérebro.
Sobre o facto de ter estado morta durante quase três minutos durante uma cirurgia ao coração, em Perth, apenas muitos engasgos. O único que parece certo é ser mãe de um menino de quatro anos, que aparece em algumas das fotos partilhadas. Na entrevista à "Australian Women's Weekly", que a revista tem promovido nos últimos dias, apesar de a versão integral só ser colocada nas bancas esta quinta-feira, Belle refere uma infância difícil e uma dificuldade permanente em distinguir a verdade da ficção. Diz ter saído de casa aos 12 anos, sem explicar porquê, explica que nunca teve uma boa relação com os pais, que abandonou a escola, que a mãe lhe mudou o nome por cinco vezes em pequena, sem que saiba o motivo.
Sobre o castelo de cartas que construiu reconhece a farsa, sem a justificar completamente. "Não quero perdão. Acho apenas que vir admitir publicamente é a única coisa responsável a fazer. Acima de tudo, quero que as pessoas digam 'ok, ela é humana'".
"Boa fé" e "mea culpa"
Além da deceção sentida pela comunidade que a aseguia e respeitava, com a agravante de ter alimentado falsas esperanças a pessoas doentes que viam nas suas receitas a possibilidade de uma cura milagrosa, a queda em desgraça de Belle Gibson teve outros efeitos devastadores. A editora de "The Whole Pantry", o livro de receitas best-seller que também a Europa e os Estados Unidos se preparavam para lançar, veio reconhecer que nunca fez nada para confirmar a autenticidade das alegações da sua autora. Representantes da Lantern Books (do grupo Penguin) escudam-se na "boa-fé" e no facto de se tratar de um livro de receitas, enquanto muitas das revistas que fizeram de Belle capa e um exemplo optam por assumir um "mea culpa". É o caso da "Cosmopolitan" australiana. A revista recorda o prémio que lhe atribuiu em 2014, na categoria "Mulher divertida e destemida" e descreve pormenores sobre a sessão de fotos realizada.
"Recordo-me da sua simpatia e de como nos emocionou com o discurso, ao receber o prémio", conta a jornalista que assinou a reportagem. No caso das fotografias, "aceitou ter um gelado na mão, embora se mostrasse preocupada sobre se tinha de o provar". Parecia genuinamente preocupada com as questões da alimentação e justificou-se, segundo Lauren Sams, com o dever de não defraudar os seus seguidores. A frase soa agora irónica: "A minha comunidade espera que seja autêntica" (texto da jornalista do Expresso, Mafalda Ganhão, com a devida vénia). Leia também esta história publicada no ABC.