domingo, outubro 19, 2014

Opinião de António Bagão Félix: "Orçamento de risco e de ingratidão"

"Um Orçamento do Estado (OE) é sempre um documento complexo, um brutal amontoado de informações (nem sempre coerentes), mapas (nem sempre comparáveis) e artigos de uma proposta de lei (nem sempre necessários) que, desde há muito, se vêm transformando numa manta de retalhos difícil de dissecar. Este ano, com a originalidade de dois aspectos fundamentais das finanças públicas — reforma do IRS e a eufemisticamente chamada “fiscalidade verde” — correrem noutra “pista”…
Qualquer pessoa, de boa-fé, pode ver num Orçamento coisas boas e coisas más. Este, como é óbvio, não foge à regra, nos seus méritos (que os tem) e deméritos (a que não escapa). Se tivesse que sintetizar em breves palavras este OE, diria que é um programa de austeridade contida e um orçamento de risco. Há uma diferença importante neste OE quando comparado com os do período do PAEF. Antes, a economia era o estorvo e a tróica o aliado. Agora, já sem os funcionários internacionais por cá, a economia virou finalmente aliada e o Tribunal Constitucional é definitivamente o estorvo. Antes, Orçamentos contra a economia, agora Orçamento a pedir a ajuda da economia. Todavia, o Governo queixa-se, mas apanha a boleia dos desaires constitucionais. E até diz, com garbo indisfarçável, que 500 mil pensionistas não terão que suportar a CES sobre os seus rendimentos e que os funcionários públicos estão, apesar de tudo, em melhor situação. O paradoxo é que faz gala de medidas que só passarão a vigorar por causa dos chumbos do TC que tanto amaldiçoou. Mesmo assim, o Governo é ingrato. Veja-se, por exemplo, o que escreve no Relatório do OE, a páginas 37: “O TC (…) numa lógica de protecção absoluta de posições adquiridas bem como de judicialização de determinadas pré-compreensões de políticas públicas, vem estreitando assim excessivamente a acção dos poderes legislativo e executivo”.
O risco essencial deste OE relaciona-se com o optimismo das projecções macroeconómicos (e alguma contradição entre elas, por exemplo, entre a evolução do consumo privado e as importações), sobretudo tendo em conta o previsível abrandamento nas economias da zona euro e de alguns países emergentes. No Documento de Estratégia Orçamental, apresentado há poucos meses, estimava-se que o efeito global no défice dos estabilizadores automáticos (receita fiscal e despesas com o desemprego) seria de 0,8% do PIB. Entretanto, as previsões agravaram-se para os países de procura externa relevante, mas o efeito previsto no OE passa, milagrosamente, de 0,8% para 1,2% do PIB" (texto de Bagão Felix, Público, com a devida vénia)