“Como se tratam os feridos no meio de um
desembarque sob fogo? Muitas vezes só há tempo para deixar uma etiqueta atada
ao dedo do soldado informando o estado dele a quem vier depois. É esta a
história dramática que contam os objectos da II Guerra agora expostos no Museu
da Farmácia. Muitos morreram antes mesmo de sair dos
barcos. Outros ainda saltaram para a água mas morreram afogados, arrastados
pela corrente.
Sob fogo cerrado dos alemães, os primeiros
soldados que desembarcaram nas praias da Normandia – Omaha, a “sangrenta”,
ficou a mais famosa – tinham escassas hipóteses de sobrevivência e uma
esperança de vida de poucos segundos. No meio destes homens iam alguns com uma
missão muito específica: os paramédicos. Tinham armas e combatiam para
sobreviver, mas tinham como principal tarefa identificar os feridos e ajudá-los
naquilo que fosse possível. O que, numa praia cheia de obstáculos montados pelo
Exército alemão, e sob uma chuva de balas disparadas em rajadas de posições
mais altas, era quase impossível. Em cima da mesa de trabalho de João Neto,
director do Museu da Farmácia, em Lisboa, estão duas pequenas bolsas
verde-tropa com uma alça para usar a tiracolo. Não era possível aos paramédicos
que acompanhavam a linha da frente transportar muito mais do que isso. Entre
outras coisas, levavam nas bolsas um caderno de cor azul-desmaiado, com
etiquetas e, em baixo, um conjunto de fios.
“As etiquetas para os feridos foram uma
invenção das guerras napoleónicas”, explica João Neto. Era uma forma de dar uma
informação muito sucinta sobre o estado do ferido que, em princípio, seria
encontrado por outros médicos quando os combates acalmassem, e que, na maior
parte dos casos, não estaria em condições de falar. Mas, debaixo de fogo, não
seria fácil preencher uma ficha com tantos elementos. Os paramédicos
limitavam-se a escrevinhar alguma coisa sobre os ferimentos e o estado do
soldado, e atavam essa etiqueta a alguma parte do corpo.
O livro azul-pálido com as etiquetas é uma
das peças que vão estar em exposição no Museu da Farmácia para assinalar os 70
anos do desembarque na Normandia. “Em 2008 houve em Munique um grande leilão
com peças de uma colecção de dois irmãos franceses que viviam na zona da
Normandia e que durante muito tempo reuniram tudo o que encontravam ligado à II
Guerra Mundial”, conta João Neto.
A colecção chegou a ser apresentada num
museu, mas o Estado francês não quis ficar com ela, e as peças acabaram
leiloadas. Foi nesse leilão que o Museu da Farmácia comprou as duas bolsas,
cujos conteúdos estão agora em exposição, juntamente com os 18 minutos iniciais
do filme O Resgate do Soldado Ryan, de Steven Spielberg, que mostra
precisamente o desembarque dos soldados americanos na praia de Omaha no dia D.
Sendo este um Museu da Farmácia, o que
interessa a João Neto é contar a história desses homens que levavam as bolsas
verdes e que tinham de cuidar dos feridos. O conteúdo das bolsas, espalhado
sobre a mesa, parece desesperantemente escasso para a tarefa. “Ligaduras e
material para fazer os garrotes eram essenciais. O mais importante era estancar
as feridas, para impedir que os homens sangrassem até à morte, e tapá-las,
porque no campo de batalha não havia tempo para as coser”, explica o director.
Os alfinetes-de-ama, que aparecem aqui também, serviam para segurar essas
ligaduras.
Mas antes disso era preciso tentar combater
as infecções. “Na I Guerra Mundial, grande parte das mortes deu-se não pelas balas
mas pelas infecções provocadas pelos ferimentos.” Por isso, aprendida a lição
da guerra anterior, nas bolsas onde também transportavam analgésicos – à base
de ópio, por exemplo – os paramédicos levavam pequenos tubinhos de vidro com
pós de sulfonamidas, que deitavam sobre as feridas.
Só que “as sulfonamidas não resolviam
tudo”, e é então que entra em cena aquela que João Neto descreve como “um dos
grandes segredos da II Guerra”: a penicilina. “A penicilina não era usada na
linha da frente, mas apenas nos hospitais de campanha.” Era uma descoberta
recente, cuja produção foi acelerada precisamente por causa da guerra. No
entanto, era ainda claramente insuficiente para fazer face às necessidades.
“Por ser tão escassa, iam muitas vezes recuperá-la através da urina dos
pacientes.”
O museu mostra também na sua exposição
permanente um molde com uma cultura de penicilina que tem, atrás, uma
assinatura de Alexander Fleming. Foi este cientista britânico quem, em 1929,
descobriu que determinados bolores que acidentalmente tinham contaminado uma
cultura patogénica a inibiam, e assim chegou à penicilina, descoberta que
partilhou depois com os cientistas americanos, que a puderam desenvolver em
larga escala.
Um ano depois de ter comprado as duas
bolsas no leilão em Munique, João Neto chegou, por uma coincidência, ao
contacto com um dos paramédicos que tinham estado no desembarque na Normandia.
Melvin Lieberman tinha 82 anos em 2009, quando trocou mensagens com o Museu da
Farmácia, e enviou algumas fotos tiradas durante a guerra, e que estão agora
também em exposição. É ele o jovem que aparece numa delas junto a uma tenda
médica, num acampamento militar. Outras imagens mostram os feridos deitados
em macas junto a tendas. E outras ainda, que não estarão na exposição mas que
João Neto guarda no seu computador, mostram o dia em que o jovem paramédico
entrou no campo de concentração de Buchenwald, em Abril de 1945. No interior
havia mais de vinte mil prisioneiros, e, entre as imagens que Melvin Lieberman
fez, vêem-se os corpos esqueléticos empilhados daqueles para quem, apesar de
todos os esforços, a libertação chegou já demasiado tarde” (reportagem da
jornalista do Público, ALEXANDRA PRADO COELHO, com a devida vénia)