domingo, janeiro 22, 2023

DN-Lisboa (2ª parte): Os "erros" e "medos", os "drogados pagos" para votar e o líder que não quis ser "candidato a presidente"

Regionais 2023 - Dez líderes e todos falharam. Jardim vê, agora, no PS dos "snobs" e dos "gajos ricos" uma novidade: um líder diferente e que "não precisa da política para viver". Mota Torres lembra os "erros" iniciais; líderes recentes reivindicam vitórias e lamentam as últimas derrotas. O PSD responde às acusações de que condiciona o voto: eles já pagaram a delinquentes e alugaram charters. E depois a velha questão: "Espelho meu, espelho meu, quem é mais autonomista do que eu?"

Domingo, 1 de setembro de 1974. O grupo "dinamizador" liderado por Gil Martins, fundador do PS e que tinha regressado, em junho, do exílio em Itália, faz a "inscrição oficial dos aderentes" que cria o "núcleo regional do PS".

Sexta-feira, 8 de novembro de 1974. É publicado, pelo PS, um documento em defesa da "descentralização" do "poder político e da autonomia financeira e administrativa". Porém, comenta um antigo dirigente, Gregório Gouveia, no livro Madeira: tradições autonomistas e revolução dos cravos, em "algumas expressões nota-se uma certa secundarização regional na medida em que o interesse regional pode ser limitado quando contrariar o interesse nacional".

Sábado, 1 de março de 1975. Rua Câmara Pestana. O velho e desocupado edifício do banco X, no número 13, é ocupado "por um grupo de socialistas" e torna-se a sua sede até 1980. Uma "infelicidade", escreveu Gregório Gouveia ; "um erro", confessa Mota Torres [terceiro líder do partido]; "já viu na Madeira um partido cuja sede é um prédio ocupado? A sepultura deles começou a cavar-se desde o início", diz Alberto João Jardim. "Consta", escreve o antigo dirigente e deputado na Assembleia Legislativa Regional, que Mário Soares, "quando soube da ocupação", terá dito: "Vocês já perderam as eleições." Foi, diz Gregório Gouveia, o "primeiro revés".


Mota Torres, natural de Paranhos (Porto) que um dia recebeu, após um concurso de professores, o telefonema e o convite do tenente Graça Ribeiro, chefe de gabinete do então ministro da Educação Vítor Alves, para "dar aulas de Geografia na Madeira", lembra-se desse PS inicial "sem presidente" e sem "nada, o partido não tinha nada. Tinha um coordenador do secretariado".

Quando em 1980, no segundo Congresso [já o PS estava noutra sede na Rua do Surdo], Gil Martins perde as eleições internas para Emanuel Jardim Fernandes, Mota Torres que tinha sido, como diz, "seduzido" tempos antes por Vieira de Freitas - que chegou a ser deputado na Assembleia da República, para se "ligar à estrutura regional do partido, já que era militante" -, assume a "pasta pela Comunicação Social, pelo Gabinete de Imprensa". "Neste quadro todo", diz a rir, "eu sou cubano".

O histórico líder socialista [1993 a 1996 e 1997 a 2001] lembra um PS, desses anos iniciais, que "que não tinha autonomia nenhuma, tal como o PSD não tinha. Só que o PSD usurpou a autonomia ao PSD nacional e o PS não o fez: manteve estatutariamente a agenda do partido a nível nacional".

Sucede que o partido "ignorou, melhor, não relevou a importância da bandeira da autonomia, naquele momento, e preocupou-se muito mais com outra bandeira que era a bandeira que o PS nacional tinha no seu ADN, que era a bandeira social, a do crescimento económico, a da melhoria das condições de vida das pessoas, etc.".

E isso teve consequências, considera, porque "com a ajuda do bispo [Francisco Santana], numa sociedade conservadora como esta, com a Igreja do lado do PSD, este discurso da autonomia foi muito eficaz, que as pessoas sentiram. Nós precisávamos de nos desligar daquilo, do ADN, ou não saíamos da cepa torta, mas o PS tem aqui um período longo, que vai até à aprovação da Constituição, às primeiras eleições em 1976 daqui, em que fica um bocado manietado. E sem saber o que fazer".

Ou seja, explica, "o PS tinha dificuldade em interpretar a autonomia como sendo uma coisa decisiva e importante. Só com o tempo é que isso vem a ter importância. O PS teve coisas muito bem-feitas e muito importantes, mas faltou-lhe a questão da autonomia, dos símbolos regionais. Repare que só no inicio da década de 80 é que o PS hasteou pela primeira vez, na sua sede, a bandeira da Madeira. Mas ainda sob o protesto de militantes que diziam que era a bandeira da FLAMA".

E só depois, "finalmente, adotámos o hino da Madeira, que começou a ser cantado nos congressos, nas grandes reuniões partidárias" e que, "veja lá, foi escrito pelo Ornelas Teixeira, poeta socialista que era conhecido por "poeta OT".

Mota Torres que encontra "atenuantes" para os erros socialistas, sublinha que um deles foi, por exemplo, o caso Jorge Campinos, fundador do PS, que "vindo de Lisboa" foi o candidato pela Madeira nas legislativas. Porém - e aqui está a atenuante -, "o PS nacional tinha isso. Na altura das eleições, como não cabiam todos nas listas de Lisboa e do Porto, eram distribuídos pelos círculos. E, claro, também aconteceu aqui na Madeira".

A leitura, do passado e dos erros do PS, feita por este antigo líder socialista não está muito distante da que faz Alberto João Jardim, que recorda que "enquanto o dr. Mário Soares, em Lisboa, lutava contra o gonçalvismo e lutava pela democracia, o PS aqui fazia manifestações em conjunto com o PCP e a UDP. Está a ver o que é isto na Madeira, com o que era o ambiente extremamente conservador?".

"Já viu na Madeira um partido cuja sede é um prédio ocupado? A sepultura deles começou a cavar-se desde o início." Alberto João Jardim, Ex-presidente do governo regional

A história explica muito, diz Jardim, do "insucesso socialista" numa "terra" onde já "tinha havido várias tentativas de tornar a região autónoma. Com as lutas liberais isso não foi possível, depois veio a monarquia constitucional, e quer a monarquia constitucional, quer a primeira República fizeram um simulacro de autonomia meramente administrativa - sem poder legislativo, como temos agora. Ainda por cima, à boa maneira madeirense, em 1922, havia um movimento autonomista e os gajos brigaram uns com os outros".

Nada de estranho, diz, eloquente, porque é "muito difícil aqui o associativismo e o gregarismo. É a maneira de ser do madeirense".

Mas em 1975, afirma Alberto João Jardim, que se entusiasma com estas memórias, "pensou-se que agora que o Estado português está fraco, a gente avança mesmo para isto: vamos impor condições para a constituinte. Sentíamos a força de que, se houvesse um azar no continente, a Madeira e os Açores não se iam entregar, não nos íamos entregar. Aliás, o general [Carlos]Azeredo, que estava a comandar militarmente a Madeira, e o outro general, que até era casado aqui na Madeira, disseram mesmo que não obedeciam a Lisboa".

Só que, assegura, o antigo líder social-democrata, "o PS faz só esta graça: passou, numa terra que tinha motivações autonomistas e ambições autonomistas, passou a ser contra a autonomia porque era uma maneira de ser contra o PSD". Encolhe os ombros, assume um ar sério e acrescenta: "Agora repare, como é que se pode ter sucesso numa terra cujo discurso principal, pelo menos até eu sair do governo, sublinhe-se, era o discurso da autonomia, primeiro a autonomia e depois o resto, o desenvolvimento? Como é que numa terra que luta pela autonomia, o principal partido da oposição é contra a autonomia?"

A "infelicidade" nas palavras escritas de Gregório Gouveia ou o "erro" como lhe chama Mota Torres é, para Alberto João Jardim, a "sepultura deles". "A sepultura deles começou a cavar-se desde o início. Eles ocuparam o prédio da sede. Já viu na Madeira um partido cuja sede é um prédio ocupado?".

Explicações socialistas

"Na origem, o PS não soube interpretar esse sentimento de autonomia", assume também Jacinto Serrão [líder entre 2002 a 2007 e de 2010 a 2012], e o "PSD soube melhor que ninguém, nomeadamente Alberto João Jardim, aproveitar esse estado de alma para alimentar esse contencioso com a República e gerar a figura do inimigo externo".

Esse "sentimento de revolta em relação ao continente foi criado porque a Madeira era praticamente uma colónia de Portugal, tratada como uma colónia. Houve revoltas históricas [como a Revolta da Farinha e a Revolta da Madeira] contra a política do império. Isso ficou culturalmente enraizado", explica.

"É por isso", acrescenta, que "o Jardim, ao longo destes anos todos, ia sempre dizendo que isto era um partido vergado ao continente, uma correia de transmissão de Lisboa, os agachados a Lisboa e que até tínhamos aqui representantes políticos que não eram madeirenses".

Culpa do "caldo cultural", entende Vítor Freitas [líder do PS de 2012 a 2015], que "não permitiu, no início, o aparecimento de um partido forte. Uma sociedade extremamente conservadora e ligada à Igreja. Os púlpitos serviram também um estigma contra a esquerda e contra as esquerdas".

"Nós aqui não tivemos uma transição da ditadura para a democracia como no continente, porque muitos dos que assumiram o poder regional eram filhos e netos da ditadura. Não foram os combatentes pela liberdade e isso faz toda a diferença", afirma.

Carlos Pereira [líder entre 2015 e 2018] diz que há "um ponto principal: a dificuldade em atrair pessoas, porque não se queriam comprometer, havia medos". E depois, "a Igreja que teve, de facto, um papel muito relevante na instalação do poder do PSD. O poder da Igreja sentia-se e era forte".

O PS tinha dificuldade em interpretar a autonomia como sendo uma coisa decisiva e importante." Mota Torres, Terceiro líder do PS/Madeira

Paulo Cafôfo, atual secretário de Estado das Comunidades e líder de 2020 a 2022, afirma que "a política na região, o modo de funcionamento democrático, está contaminado desde o seu início. Repare que os madeirenses e os portosantenses vivem numa sociedade aprisionada. A gestão da governação faz-se pelo medo".

Ainda hoje? A resposta é imediata: "É uma gestão que se faz pelo medo e com um governo que é autoritário e populista. Dois fatores que hoje em dia acontecem, que limitam a democracia e encolhem a cidadania. Nós vivemos numa sociedade sob vigilância e isto condiciona a própria liberdade das pessoas nas suas opções políticas", garante.

Se é assim tão mau, porque continuam os madeirenses a votar no PSD? "Em primeiro lugar", justifica Sérgio Gonçalves, atual líder, "as pessoas nunca conheceram nada de diferente. E foram habituadas a viver na dependência da Administração Pública, da construção civil e do turismo. E o ser mau também se pode explicar por ainda sermos uma terra de imigração: a Madeira nos últimos 10 anos perdeu 17 mil pessoas".

E aqui, destaca, está o "contrassenso, a supostamente região desenvolvida e com oportunidades continua uma terra de imigração como nas décadas de 60 e 70. Veja bem: 17 mil pessoas que não estavam satisfeitas, que saíram e foram procurar melhores salários, melhores condições de vida".

O "elogio" e a "vergonha"

"Sabe qual era o outro problema deles [os do PS], para além desses do início?". Jardim faz a pergunta e responde calmamente, enquanto se inclina ligeiramente para a frente [estamos sentados na cozinha] e me questiona se "isso está a gravar bem?". Digo que sim. "Então anote: "o PS foi, até há pouco tempo, porque com este líder é capaz de ser um pouco diferente - o homem não precisa da política para viver, não é desses snobs burgueses -, o PS foi até a este líder um poço onde se chocavam os radicais que tinham vergonha de ser comunistas, e que talvez fossem comunistas se o PCP tivesse triunfado no 25 de Novembro. Do outro lado, está uma forte burguesia que está rica à custa das condições de desenvolvimento que o PSD criou, mas que é socialista porque é fino, porque é snob. Em certos meios burgueses da Madeira é snob ser-se contra o PSD, mas eles vivem melhor do que eu e melhor do que todos".

"Portanto", diz, "eles nunca se entenderam e brigaram uns com os outros. De um lado, radicais; do outro lado gajos ricos, mas armados em esquerda. E eles disputaram sempre o poder dentro do partido. O próprio PS foi-se degenerando por dentro. Agora com este líder ... [faz uma pausa] pode ser que seja diferente".

"E é engraçado, eles faziam melhores resultados em eleições nacionais porque, de certo modo, somos o país. Eu não sou separatista, sou pelo direito à diferença dentro da unidade nacional, mas deixe-me dizer-lhe isto: esta vergonha que se fez agora de projetos de revisão constitucional, a começar pelo próprio PSD...". O PSD daqui? Jardim nem hesita. A resposta é rápida: "Quero que diga que eu disse que o projeto do PSD é uma vergonha e um insulto à história do PSD das regiões autónomas".

"O PS nacional não percebe nada de autonomias"

Sérgio Gonçalves, líder do partido desde fevereiro de 2022, que este ano vai disputar com Miguel Albuquerque o governo regional, não está com rodeios, seja em relação ao passado, seja em relação ao presente: "A partir do momento em que não vencemos eleições, temos de assumir que falhámos. Há também, naturalmente, responsabilidades do PS em passar a mensagem de que fomos e somos alternativa", mas, sublinha, "por outro lado, acho que o crescimento recente do partido tem demonstrado essa afirmação e que já muitas pessoas acreditam que se o PS com as suas propostas estivesse no governo seria po- tenciador da mudança".

E há hoje, acentua, "uma grande diferença. A verdade é que hoje já não temos um poder absoluto laranja. Houve câmaras que mudaram de cor política, um resultado, apesar de tudo, histórico, com a perda da maioria absoluta. E há sinais", sublinha, "de que as pessoas estão disponíveis para mudar".

E se o tema é autonomia, Sérgio Gonçalves coloca a questão no presente, no que "hoje importa" porque o "passado todos conhecem, e o do PSD muito em particular".

"A melhor Lei das Finanças [elaborada na governação Guterres por uma comissão presidida por Paz Ferreira], até dizem a melhor de sempre, foi do PS. Piorou sabe com quem? Com Passos e Portas. O PS, no tempo do Guterres perdoou a dívida da Madeira. O que fez o PSD daqui? Criou uma dívida inacreditável e ainda só pagámos 20%. Com Passos, o primeiro-ministro menos autonomista de sempre, e com aquele programa de ajustamento, foi-nos retirada autonomia. Outro exemplo: o novo hospital é financiado a 50% pelo atual governo, ou seja: PS. E o mais espantoso é que temos direitos autonómicos que o governo regional não usa, não usa o que temos e que podia melhorar a vida dos madeirenses. Exemplos do PSD? Não os encontra. Falar de autonomia é falar disto. Agora andam com a conversa da revisão constitucional para que haja mais autonomia. Só lhe digo: a autonomia discute-se e decide-se aqui na Madeira com os madeirenses, perguntando aos madeirenses. Que fez o PSD? Foi para Lisboa com as suas propostas sem querer saber do que pensam os madeirenses", enumera.

Mota Torres, líder do PS de 1993 a 1996 e de 1997 a 2011, acentua a realidade que "conheceu de perto", tempos em que "todos os empregos passavam pelo governo regional", porque é necessário enquadrar o presente e futuro: "Sabia que quem concorresse para ser assistente numa escola, por exemplo, era conveniente no mínimo dizer que votava no PSD? Era assim. E nas Igrejas? Nas igrejas, durante a celebração, os padres aconselhavam descaradamente o voto no PSD. Numa sociedade conservadora, religiosa, isto era muito difícil de contornar. Era um poder tentacular, chegava a tudo".

Jacinto Serrão, líder de 2002 a 2007 e de 2010 a 2012, garante que "denunciámos isto e apresentámos alternativas. Todos os líderes o fizeram. Estas coisas aconteceram com a complacência dos órgãos de soberania do Estado. Eu cheguei a falar com o senhor Presidente da Republica, denunciámos junto da Assembleia da República".

"A verdade", acrescenta, é que "toda a gente sabia: poderes judiciais, tribunais e os governos da República. E alguns do próprio PS. Esses governos foram permissivos, nada fizeram".

Vítor Freitas, líder de 2012 a 2015, afirma que "o PS [nacional] tem a noção do que se passa aqui e ajuda o PS/Madeira. Nunca tive interferências do PS nacional na autonomia do PS/Madeira. Foi no tempo do [António José] Seguro e ele ajudou-nos em tudo, mas deixando sempre a decisão para nós. Mas sim, no passado houve queixas".

Paulo Cafôfo, por seu lado, apesar de dizer que "os melhores governos para a Madeira foram os governos socialistas", admite haver no PS nacional "uma dificuldade de, por vezes, perceber a realidade local e as dinâmicas políticas da região. Há, por vezes, alguma ingenuidade".

Carlos Pereira, atualmente deputado à Assembleia da República [foi líder de 2015 a 2018], é perentório: "O PS nacional não percebe nada de autonomias. O PS nacional tem uma dificuldade em compreender que a sua intromissão nas opções internas de um partido na Madeira normalmente dão mau resultado".

O conselho também é simples: "Às vezes, nos momentos certos, é preciso fazer um chega para lá naquilo que são as intromissões do PS nacional, que admito que seja boa vontade, boas intenções, mas não percebem."

E depois outro conselho: "Qualquer protagonista do PS/Madeira que não compreenda que não pode ser visto como uma filial do PS nacional também não tem futuro. E nós já passámos por coisas destas."

E tal como Sérgio Gonçalves e Vítor Freitas [que inclui ainda o Estatuto Político-administrativo, a revisão constitucional e a Lei das Finanças Regionais], também Carlos Pereira defende - é um exemplo que apresenta - que a discussão sobre a revisão constitucional sobre maior autonomia "é para fazer na região". "E isto, sim, é que é ser autonomista. O PS não aceita que este processo seja feito em Lisboa, porque é isso que está a acontecer com as propostas do PSD. As propostas de um partido não são as propostas de uma região, não são as propostas dos madeirenses."

Drogados e charters?

"As eleições autárquicas faziam-se com ofertas às populações: telhas, cimento, ferro, coisas desse género de que as pessoas precisavam para fazer casa ou obras." A frase de Carlos Pereira corresponde a um argumento repetido, e muitas vezes detalhado com casos e casos, por todos os ex-líderes: "dependências" [a palavra é proferida insistentemente] e "medos".

"E isso era gerido dessa maneira", garante o atual deputado. "Lembro-me de fazer campanha. E era impossível o PS competir com isto. Estava em campanha e ao lado estavam uns tipos do PSD com carros com telhas, cimento, areia que depositavam na casa das pessoas. As pessoas percebiam que aquilo era um agradecimento face ao voto que iam fazer. E até um controlo total das mesas de voto - surreal, sabe? Surreal. Lembro-me de histórias de urnas desaparecerem durante a noite e só aparecerem na manhã seguinte."

Jacinto Serrão, por seu lado, fala até da ideia que foi criada "de que o voto não era tão secreto quanto isso". "As pessoas eram quase acompanhadas à urna. E havia, ainda há, os carros ao serviço do governo com pessoas altamente instruídas para saberem orientar. Eles iam buscar as pessoas a casa e elas vinham já com uma instrução clara de orientação de voto."

E há uma explicação para estes "e outros casos" assegura Paulo Cafôfo. "A falta de liberdade está muito relacionada com a falta de pão (...) de "perversidades"" do governo regional e do PSD que "ao longo destes anos todos, criaram um sistema de dependências, do estender a mão e dar migalhas", afirma o agora secretário de Estado das Comunidades.

Pedro Calado, presidente da Câmara do Funchal e ex-vice de Miguel Albuquerque, recusa "por completo" todas as acusações, incluindo a de que "entre pobreza, funcionários públicos e autárquicos, e outros de empresas privadas" - como diz Jacinto Serrão - há uma "parte significativa da população dependente" do governo regional e do PSD.

"Não! Repare, nós ganhámos e perdemos eleições nas autárquicas. E os funcionários públicos são os mesmos. E carros a levar pessoas? Isso sempre aconteceu e acontece em todo o lado. Em Porto Moniz [autarquia socialista], por exemplo, pagaram-se viagens de avião e alugaram-se charters para trazer pessoas do Reino Unido [para votar no PS]. É pior trazer um charter do que pôr uma carrinha da Casa do Povo a ajudar as pessoas mais velhas para irem votar. Mas isso acontece em todo o lado. Instituições como Casas do Povo, IPSS, as ambulâncias ligadas aos Serviços de Saúde, há que ir buscar as pessoas mais velhas para poderem votar. Não acho que isso condicione as pessoas", afirma.

O autarca do Funchal garante que todas as "suspeitas lançadas" são simplesmente uma "tentativa de desestabilização do PS. Pior do que isso assisti eu aqui nas autárquicas". Pior? "E estou completamente à vontade. Não tenho qualquer questão. Nas últimas autárquicas assisti a pessoas do PS a pagarem para pessoas delinquentes e drogados irem votar à boca das urnas no PS". Pagar? "Em dinheiro e fazendo ofertas para irem lá fazer os votos". Fez queixa? "Não fizemos queixa porque ganhámos as eleições com maioria. Não tínhamos de fazer queixa".

Miguel Albuquerque também recusa que "haja dependências e medos criados", porque, justifica, "basta ver que eles ganharam por duas vezes a Câmara do Funchal. Se não houvesse liberdade de escolha não tinha acontecido. Isso [a acusação de dependências] não é verdade porque nós já perdemos sete câmaras. Depois recuperámos, porque a experiência de governação do PS foi péssima".

"E é melhor", diz o presidente do governo regional, que "eles deixem de passar atestados de menoridade às pessoas. As pessoas votam onde quiserem. Infelizmente ainda têm o Machico que é o concelho mais atrasado da Madeira".

João Cunha e Silva, antigo vice-presidente de Jardim, recorda precisamente o caso de Machico, citado por Miguel Albuquerque, para contar o seguinte: numas eleições "andava lá esfolar-me de um lado para o outro e ele [o candidato do PS] não fazia muito campanha, não o via. Só percebi no sábado de reflexão. É que ele tinha várias furgonetes, carrinhas de caixa aberta e aproveitou o sábado para distribuir sacos de cimento e coisas para população. Como vê, cada um responde por si."

A conclusão? "As particularidades boas ou más não respondem pelo geral."

Guilherme Silva [deputado eleito pelo PSD/Madeira no Parlamento de 1987 a 2015] justifica as "acusações" do PS com "o mérito implantado por Alberto João Jardim, e que tem sido mantido, que é a proximidade com as populações e a auscultação das populações". "Se há sítios onde nunca se governou de costas voltadas para as populações é aqui."

"Além do mais", sustenta o também antigo vice-presidente da Assembleia da República, "ninguém pega na mão de ninguém para votar. E sobre os procedimentos de campanha compreende-se que haja múltiplas formas de penetração junto do eleitorado. Desde que não ultrapassem limites de razoabilidade e de valores". E isso, assegura, "sempre aconteceu aqui".

Sérgio Marques desvaloriza por completo "essas histórias de levar as pessoas e votar". Para o antigo secretário regional, no primeiro governo de Miguel Albuquerque, "isso é uma explicação menor dos resultados eleitorais". "Não acho que isso tenha sido relevante. Isso faz parte da cultura de poder do PSD: atender a todos os aspetos, não descurar nada."

A explicação, diz o antigo eurodeputado, está na origem, no facto de o PS se ter deixando "sempre aprisionar nesta armadilha que o PSD lhe lançou de o equiparar, aos olhos do eleitorado, como o partido que defende os interesses de Lisboa, que não é um partido verdadeiramente autonomista".

"Isto era um território muito empobrecido. Teve a felicidade, a autonomia, por um lado; e a integração europeia, por outro, os fundos, este binómio. Isto justificou a existência de meios para responder às inúmeras carências. E as pessoas não foram indiferentes a essa capacidade do PSD de resolver, de atuar. Muitas das vitórias eleitorais ocorreram em cenários de grande mudança positiva", justifica.

Miguel Sousa, secretário regional que esteve no governo de Jardim de 1980 a 1992, encontra outra explicação para as "constantes queixas" dos dirigentes do PS, porque "quem perde eleições tão sucessivamente tem de inventar uns argumentos para justificar o seu insucesso, porque senão é a infelicidade total. Perder as eleições já é muito mau para eles e, sem uma boa justificação, parece que é péssimo".

O antigo vice-presidente de Alberto João Jardim apresenta como exemplo a sua experiência de ter estado "lá dentro [no governo e no PSD]" e "nunca" ter obrigado "ninguém a votar, eu nunca pedi a ninguém que votasse, eu nunca perguntei sequer às pessoas que trabalharam comigo se eram do PSD".

Ou seja, conclui: "Eles confundem os trabalhos das juntas de freguesia e dos autarcas. Por serem do PSD, eles dizem que era o PSD que levava. Então a junta não vai fazer trabalho, não vai nada em prol dos seus fregueses?"

Mais vale um pássaro na mão...

Como ter a Câmara do Funchal, a mais importante, - "um segundo governo, um mini-governo dentro da região", como diz Pedro Calado - desde 2013 e perder tudo, primeiro em 2019 e depois em 2021?

"O que se passou, e eu já o assumi, é que houve erros que o partido socialista também cometeu. Houve erros que cometemos, não somos imaculados", responde Paulo Cafôfo.

Os factos? Pela primeira vez, em 37 anos, o PS retira o Funchal ao PSD. Nas eleições autárquicas de 2013, a coligação PS-BE-PND-MPT-PTP-PANconsegue a proeza eleitoral, ainda que sem maioria, de assumir os destinos da autarquia.

Em 2017, com outra coligação (PS-BE-JPP-PDR-NC), atingem a maioria na câmara. Os 21 102 votos de 2013 sobem para 23 577.

Porém, Paulo Cafôfo sai a meio do mandato, largando a maioria, e assume a candidatura às regionais de 2019. O líder do partido, Emanuel Câmara, que ficaria até 2020, não quis ser candidato.

Resultado? Cafôfo perde as eleições regionais para Miguel Albuquerque e vê o CDS juntar-se ao PSD garantindo assim a maioria absoluta por um deputado.

Em 2021, já com Paulo Cafôfo a liderar o PS, chega a reviravolta na autarquia. O PSD retoma o poder com maioria - vence Pedro Calado que tinha saído da vice-presidência do governo regional - e a coligação PS-BE-PAN-MPT-PDR liderada por Miguel Silva Gouveia, que tinha assumido a liderança da autarquia após a saída de Cafôfo, é derrotada e em "praticamente em todas as juntas de freguesia e na Assembleia Municipal".

Consequência política? Paulo Cafôfo, então presidente do PS/Madeira, e que tinha ido para deputado à Assembleia Regional, demite-se da liderança do partido em fevereiro de 2022. Pouco tempo depois, em março, iria para secretário de Estado.

"Sou uma pessoa coerente. Eu não estou na política pelos lugares. Eu senti, na altura, uma grande vontade das pessoas em que eu pudesse avançar para o governo regional. E eu não posso virar a cara às pessoas. Eu não iria fazer uma gestão calculista, não iria nunca suspender o mandato e candidatar-me ao governo regional na lógica do se corresse bem corria, se não corresse voltava para câmara. Seria mais confortável, para mim, ter prosseguido o meu trajeto na câmara municipal? Teria sido, sim", explica Paulo Cafôfo.

Carlos Pereira, líder do PS de 2015 a 2018, afirma, num tom de espanto: em 2019 "tivemos a coisa mais atípica que pode existir num partido - um tipo que aceita ser presidente do partido, o Emanuel Câmara, mas não quer ser candidato a presidente do governo. E o outro, o Paulo Cafôfo, sai da câmara para ser candidato a presidente do governo regional. Ora, isto desfez as expectativas das pessoas e dividiu o PS fortemente".

"Estávamos a criar condições para que houvesse uma massa eleitoral disponível para uma alternativa, mas a seguir falhámos redondamente. Tenho o benefício da dúvida, porque alertei para isso. Eu alertei o Paulo para uma coisa importante: nós temos de continuar a ter a Câmara do Funchal, porque ela é absolutamente indispensável para nos tornarmos robustos no nosso processo eleitoral em 2019", argumenta o atual deputado em Lisboa.

Por que razão, e sendo líder do PS/M nessa altura, em 2019, não quis ser candidato a presidente do governo regional? Emanuel Câmara, presidente da autarquia de Porto Moniz, por "questões de saúde" não respondeu à pergunta.

Carlos Pereira [ líder do PS/M de 2015 a 2018] considera que "o partido começou a partir de 2015, talvez 2013, a ter a possibilidade de criar um projeto político para ganhar eleições"; Vítor Freitas [líder de 2012 a 2015] diz o que "enguiço foi quebrado" nas autárquicas de 2013 [ de 11 autarquias o PSD só consegue ganhar quatro e perde o Funchal]; Jacinto Serrão [líder de 2002 a 2007 e de 2010 a 2012], por seu lado, recorda que a "viragem, em termos de maioria social contra o regime", começou em 2004 na altura em que "era líder do partido, e era novo, lutava só com um exército de soldados de base".

A primeira quebra eleitoral do PSD é visível em 2007 quando passa dos mais de 90 mil votos para os 71 mil. Em 2015, volta a cair e fica, desde aí, no patamar dos 56 mil. O PS tem o seu primeiro salto em 2004: sobe dos 27 mil para os 37 mil. Depois segue em queda até 2019, ano em que fica acima dos 51 mil votos - um resultado histórico.

"Não! Diria que tivemos o pior resultado de sempre, porque em 2019 nós podíamos ganhar as eleições, era o ano. Delapidámos o ativo que fomos construindo. Deixámos de ter o presidente da câmara que as pessoas gostavam, perdemos as regionais, perdemos a câmara a seguir, isto é demasiado mau", diz Carlos Pereira.

"A política de coligação" [nas autárquicas de 2013, em que o PSD perde sete câmaras e o PS conquista o Funchal] serviu para "quebrar a hegemonia do PSD, é verdade", mas trouxe "erosão" ao PS, porque não foi a votos "sozinho", considera Jacinto Serrão que vê na perda do Funchal "um duro revés".

"Houve erros do PS que precisam de ser explicados, percebidos para que não aconteçam no futuro. Se não tivéssemos perdido o Funchal, o PS estaria em melhores condições de fazer a sua afirmação de alternativa de governo para as próximas regionais, mas as culpas não podem ser imputadas só ao PS. Toda a oposição também de fazer mea culpa", diz.

Sérgio Gonçalves, atual líder do PS/Madeira, simplifica a mensagem, a "problemática", em três ideias: "A abertura da sociedade madeirense que existe desde 2013 tem levado a que mais pessoas estejam disponíveis para a mudança, há um maior espírito critico, uma diferente maioria social; o PS teve, ao longo da sua história, muitas pessoas capazes, mas que enfrentaram um sistema instalado que condicionava, impedia que mais pessoas quisessem participar no projeto; agora? Não tenho dúvidas de que temos a capacidade e a força para ser governo. Tudo isto é o resultado de um processo de crescimento que exigiu, e exige, coragem e trabalho" (DN-Lisboa, texto do jornalista Artur Cassiano)

Sem comentários: