A sociedade portuguesa foi esta semana confrontada - pessoalmente acho que todos estavam à espera de um relatório dramático e denunciador de situações graves - com as conclusões do trabalho de uma comissão constituída para estudar a gravidade e a amplitude do escândalo dos abusos sexuais no âmbito da Igreja católica portuguesa e das várias estruturas de actividade a ela ligadas. Foi um soco no estômago, não pelos casos relatados - acho que o silêncio foi muito maior do que as denúncias, pelo que o levantamento realizado será apenas a ponta de um enorme icebergue - mas pela forma como a pouca-vergonha e a patifaria de centenas de bandalhos, alguns ainda no activo, se processava e pelo descaramento criminoso de padres patifes e de outros membros da Igreja que enxovalharam a instituição e pisaram a religiosidade católica.
A Igreja, nos suas diferentes tentáculos, e
que pouco ou nada de santidade comporta, vai ter que mudar. Mas antes de fazer
uma autocrítica séria e impiedosa. Nada pode continuar como antes. O documento
não alterou a minha forma de estar e de pensar, substancialmente diferente hoje
do que foi no passado. Continuo a afirmar que tenho contas a ajustar com esse
tal Deus supremo e longínquo, que ninguém sabe se realmente existe, porque
religião, seja ela qual for, é tudo apenas e só uma questão de fé, de crença no
desconhecido e no inacessível. Mas se esse Deus existe, então um dia vamos
ajustar contas.
Hoje, à medida que envelhecemos ficamos mais
pragmáticos e a fé, enquanto cheque em branco, desvanece-se, acelerada por
casos como estes e pela convicção de que o tal Deus não quer fazer-se
representar por bandalhos ou por um sistema de silêncio ou de negação, incapaz
de aceitar a verdade que conhece, que "vende" religião comportando-se
de forma totalmente oposta ao que exige dos crentes.
Obviamente que recuso generalizar, até
porque sabemos todos que nem todas as organizações são o que espelho que algumas
ovelhas negras transmitem e que foram poupadas ao longo dos anos de
comportamento bandalho.
Espero que esta Igreja do tal Deus distante, sério e confiável mude rapidamente de atitude, abandone certos dogmas patéticos, se modernize, se deixe de tontices, se adapte aos novos tempos, a novas mentalidades, a novas ideias, a mais informação e a mais liberdade de pensar e de questionar, e deixe de pregar moralismos a pataco, julgando que a população hoje, em pleno século XXI, continua a ser a população dos séculos XVI ou XVII, que não questiona nem se questiona sobre tudo o que acontece. A Igreja tem muitos pecados para pedir perdão, tem novas escolhas e novos caminhos a realizar, tem de reganhar a confiança da maioria das pessoas, tem que deixar de ser um mistério de bandalhice como este documento veio denunciar. E deixem-se de falinhas mansas, deixem-se de fundamentalismos próprios do passado, de um tempo que deixou de ser tempo, deixem de insistir na mentira, deixem de esconder o que sabem ser a verdade, deixem de proteger ou esconder os patifes que protagonizaram esses casos, deixem de se refugiar no tal direito canónico que serve para muita coisa, incluindo a lavagem destes crimes (LFM, texto publicado na edição de 17.2.23 do Tribuna da Madeira)
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