sexta-feira, fevereiro 17, 2023

Opinião: Patifarias

A sociedade portuguesa foi esta semana confrontada - pessoalmente acho que todos estavam à espera de um relatório dramático e denunciador de situações graves - com as conclusões do trabalho de uma comissão constituída para  estudar a gravidade e a amplitude do escândalo dos abusos sexuais no âmbito da Igreja católica portuguesa e das várias estruturas de actividade a ela ligadas. Foi um soco no estômago, não pelos casos relatados - acho que o silêncio foi muito maior do que as denúncias, pelo que o levantamento realizado será apenas a ponta de um enorme icebergue - mas pela forma como a pouca-vergonha e a patifaria de centenas de bandalhos, alguns ainda no activo, se processava e pelo descaramento criminoso de padres patifes e de outros membros da Igreja que enxovalharam a instituição e pisaram a religiosidade católica.

São escândalos que podem colocar em causa a crença das pessoas nas virtudes e na mensagem da Igreja, são relações de confiança e de fé que podem ruir, são dúvidas e questionamentos sobre a religiosidade que vão colocar muita coisa em causa e que porventura aumentarão o crescente distanciamento dos cidadãos face à Igreja Católica que cometeu o pecado do silêncio e da negação. Mesmo sabendo que a verdade era uma triste e criminosa realidade protagonizada por patifes que actuaram durante anos com total impunidade. 
Uma Igreja que enfrenta um problema de vocações e de crentes e que vai confrontar-se com o acentuar dessa realidade, porque as pessoas legitimamente vão questionar que Igreja e que religião são estas que protegeram patifes e que permitiram estas bandalhices vergonhosas. Claro que para muitos, uma coisa é acreditar num Deus supremo, piedoso e impoluto, outra coisa é acreditar numa criação humana, conspurcada por uma corja de patifes que ou usaram a batina ou o seu trabalho na Igreja, para cometerem crimes que nos envergonham a todos.

A Igreja, nos suas diferentes tentáculos, e que pouco ou nada de santidade comporta, vai ter que mudar. Mas antes de fazer uma autocrítica séria e impiedosa. Nada pode continuar como antes. O documento não alterou a minha forma de estar e de pensar, substancialmente diferente hoje do que foi no passado. Continuo a afirmar que tenho contas a ajustar com esse tal Deus supremo e longínquo, que ninguém sabe se realmente existe, porque religião, seja ela qual for, é tudo apenas e só uma questão de fé, de crença no desconhecido e no inacessível. Mas se esse Deus existe, então um dia vamos ajustar contas.

Hoje, à medida que envelhecemos ficamos mais pragmáticos e a fé, enquanto cheque em branco, desvanece-se, acelerada por casos como estes e pela convicção de que o tal Deus não quer fazer-se representar por bandalhos ou por um sistema de silêncio ou de negação, incapaz de aceitar a verdade que conhece, que "vende" religião comportando-se de forma totalmente oposta ao que exige dos crentes.

Obviamente que recuso generalizar, até porque sabemos todos que nem todas as organizações são o que espelho que algumas ovelhas negras transmitem e que foram poupadas ao longo dos anos de comportamento bandalho.

Espero que esta Igreja do tal Deus distante, sério e confiável mude rapidamente de atitude, abandone certos dogmas patéticos, se modernize, se deixe de tontices, se adapte aos novos tempos, a novas mentalidades, a novas ideias, a mais informação e a mais liberdade de pensar e de questionar, e deixe de pregar moralismos a pataco, julgando que a população hoje, em pleno século XXI, continua a ser a população dos séculos XVI ou XVII, que não questiona nem se questiona sobre tudo o que acontece. A Igreja tem muitos pecados para pedir perdão, tem novas escolhas e novos caminhos a realizar, tem de reganhar a confiança da maioria das pessoas, tem que deixar de ser um mistério de bandalhice como este documento veio denunciar. E deixem-se de falinhas mansas, deixem-se de fundamentalismos próprios do passado, de um tempo que deixou de ser tempo, deixem de insistir na mentira, deixem de esconder o que sabem ser a verdade, deixem de proteger ou esconder os patifes que protagonizaram esses casos, deixem de se refugiar no tal direito canónico que serve para muita coisa, incluindo a lavagem destes crimes (LFM, texto publicado na edição de 17.2.23 do Tribuna da Madeira)

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