domingo, fevereiro 19, 2023

Expresso: Como Neeleman, Passos e a Airbus gizaram privatização da TAP em segredo

 

O empresário americano negociou a troca da frota da TAP com a Airbus antes de se tornar acionista e usou a poupança conseguida para entrar na transportadora. Uma operação que só agora se tornou conhecida e que, na reversão da privatização, feita com o Governo de Costa, permitiu a David Neeleman sair com €55 milhões. A TAP está a ponderar contestar o negócio na Justiça. O negócio de troca da frota da TAP que o empresário David Neeleman fez com a fabricante de aviões Airbus na altura da privatização da companhia portuguesa — 12 aviões A 350 por 53 novos contratos para aeronaves A 330neo e A320neo —, em 2015, está sob os holofotes sete anos depois. Tudo porque só agora se ficou a saber que foi o dinheiro ganho com essa operação que a Atlantic Gateway (empresa de Neeleman e Humberto Pedrosa) entregou para capitalizar a companhia. Um segredo bem guardado, mas do qual estavam a par todos os principais intervenientes na privatização do Governo de coligação PSD/CDS e na reversão da privatização já no Governo de António Costa, em 2017. Operação que permitiu ao Estado ficar com a maioria do capital da TAP, perdendo a Atlantic Gateway os 61%.

Foram, soube-se agora, os 226,75 milhões dólares resultantes da troca de frota que a TAP tinha encomendado à Airbus, em 2005, que David Neeleman usou para entrar na transportadora aérea portuguesa em 2015. Dinheiro esse que veio dos fundos Airbus, entregues por esta à DGN, uma empresa de Neeleman, e depois canalizado para a TAP através de prestações acessórias, noticiou o “Eco”.

A arquitetura de entrada da Atlantic Gateway (AG) na TAP, até agora desconhecida publicamente, é intrincada. Começou a ser olhada à lupa em agosto de 2022, quando a TAP pediu uma auditoria interna ao acordo de Neeleman com a Airbus e ao atual leasing. E está a ser escrutinada pelas autoridades judiciais: o Ministério Público já abriu um inquérito.

João Galamba, o ministro das Infraestruturas, afirmou terça-feira que, perante a possibilidade de a TAP ter sido lesada neste negócio, a privatização de 2015, “não pode ser considerada uma verdadeira privatização”. Galamba salientou ainda que o Governo “ficou chocado” com o desenho da privatização feita na reta final do Executivo de Passos Coelho, já nos 20 dias em que esteve em exercício de funções.

Apesar da surpresa do atual Governo, fontes ligadas ao processo de entrada e saída de Neeleman da TAP ouvidas pelo Expresso lembram que o desenho do negócio em todos os seus detalhes, nomeadamente o do acordo com a Airbus, foi revisitado em 2017, quando o Estado readquiriu o controlo da companhia.

O negócio da Airbus com Neeleman não terá sido, no entanto, abordado pelo Tribunal de Contas (TdC) quando este auditou a reversão parcial da privatização. Fonte oficial do TdC esclarece apenas que o “período de incidência da auditoria (...) correspondeu ao da execução do processo de recomposição do capital social da TAP” em 2017. Não obstante, assegura que o TdC poderá agora, na nova auditoria à gestão da TAP, vir a examinar “factos antecedentes relevantes”. E deixa claro que “o processo ainda não terminou”. Ou seja, o negócio entre a Airbus e Neeleman estará, em princípio, sob escrutínio.

A TAP está a explorar formas de clarificar o negócio de Neeleman com a fabricante europeia de aviões e já pediu, segundo avançou o “Eco”, ao escritório de advogados britânico Norton Rose Fulbright para avaliar a possibilidade de o contrato de leasing de 53 novos aviões Airbus poder vir a ser contestado e declarado nulo no tribunal arbitral em Londres. Informação que fonte oficial da TAP questionada pelo Expresso não confirma.

É que, de acordo com a consultora irlandesa Airborne, a TAP está a pagar mais pelo leasing dos aviões do que os seus concorrentes — num valor que supera em €254 milhões o que é pago pela concorrência para os mesmos modelos.

UM ACORDO MANTIDO SECRETO

Aparentemente, apenas os intervenientes diretos no processo de privatização da TAP — nomeadamente a administração da empresa, a Parpública, o Ministério das Finanças e da Economia, a VdA (advogados da Parpública e da transportadora), Diogo Perestrelo (advogado de David Neeleman) e Pedro Siza Vieira (advogado de Humberto Pedrosa) — estariam a par da operação montada por Neeleman, com a concordância do Governo, para fazer entrar dinheiro fresco na companhia.

O negócio com a Airbus já estava alinhavado quando Neeleman se sentou à mesa com o Governo para assinar os papéis da privatização. E era conhecido da Parpública, segundo documentos consultados pelo Expresso, pelo menos desde 16 de outubro de 2015, altura em que a AG enviou para a empresa que gere as participações do Estado o plano de capitalização, onde era referido o negócio que permitiu chegar às mãos de Neeleman os 226,75 milhões de dólares para as prestações acessórias. Há inclusive, sabe o Expresso, uma carta da Airbus entregue ao Estado português onde a construtora confirma que não autorizaria a TAP a transferir o contrato de compra dos A350 para terceiros. Ou seja, para a companhia portuguesa, este contrato nada valia sem o aval da Airbus. A transportadora portuguesa, apurou o Expresso, já tinha adiantado à Airbus o pagamento de cerca de €40 milhões para o A350.

Mas se o negócio era conhecido do Governo e dos advogados das partes, internamente só o Conselho de Administração tinha sido informado — os serviços jurídicos estavam fora do processo. A equipa jurídica da TAP, liderada então por Alda Pato, “não foi consultada nem informada” sobre o modelo da operação e o processo da troca das linhas da frota de aviões da Airbus, confirmou ao Expresso a jurista.

Alda Pato só soube dos termos da operação na altura em que o PS decidiu reverter a operação de privatização. Até então não tinha qualquer informação sobre o assunto. Os serviços jurídicos internos não sabiam e altos quadros ouvidos pelo Expresso também desconheciam que tinha sido este o modelo usado pela AG para capitalizar a TAP. Estavam inclusive convencidos de que Neeleman só tinha começado a negociar a troca da frota já depois de se ter tornado acionista.

PARECER DA VDA DÁ SEGURANÇA AO ESTADO

Foi à Vieira de Almeida e Associados (VdA) que foi pedido pela TAP um parecer sobre o negócio que estava a ser proposto por Neeleman para capitalizar a companhia, fundamental para que a privatização avançasse. A proposta de Neeleman parecia encaixar como uma luva. O empresário financiaria a sua entrada na TAP, a companhia necessitada de fundos e sem tesouraria receberia uma injeção de capital, e a transportadora faria uma alteração do plano estratégico para os anos que se seguiam — o acionista americano considerava que os neo eram os aviões mais adequados para a operação nos EUA e no Brasil (estratégia que não tem sido contestada).

Havia, porém, um problema: no artº 322 do Código das Socie­dades Comerciais, as prestações acessórias são consideradas um empréstimo e não uma capitalização. E se assim fosse o número de magia de Neeleman cairia por terra. O parecer da VdA — entregue a 12 de novembro de 2015, precisamente no dia em que, às 23h30, a privatização é formalizada — vem assegurar que não há uma violação do artº 322, por tratar-se de uma capitalização e “não uma dívida da sociedade a um acio­nista”, porque as prestações acessórias “não podiam ser reembolsadas antes de decorridos 30 anos”. Mesmo nessa altura só poderiam ser levantadas por Neeleman se a “situação líquida” da companhia “não fosse inferior à soma do capital e da reserva legal” e a decisão fosse aprovada por 76% do capital da transportadora.

Além disso, a TAP não teria o direito de “monetizar” o contrato de compra dos A350, porque isso dependeria da vontade da Airbus (e a fabricante não queria). Sendo assim, a VdA concluía que a TAP não poderia “assistir financeiramente um terceiro [neste caso a AG] para comprar ações próprias. A VdA defendia ainda que não havia uma violação do artº 397, que proíbe negócios entre empresas com administradores comuns — como é o caso da DGN e AG —, porque o preço a pagar pela TAP era abaixo do valor justo de mercado, usando como base para essa opinião a avaliação de três consultoras (Ascend, Avitas e Commercial Service Aviation) sugeridas pela TAP. Uma leitura oposta à da Serra Lopes, Cortes Martins & Associados (SLCM), cujo parecer pedido pela TAP e noticiado pelo jornal “Eco” defende que esta operação viola o artº 322 do Código das Sociedades Comerciais.

ACORDO PARASSOCIAL DEU MAIS PODER A NEELEMAN

O que aconteceu para que as prestações acessórias tivessem passado de uma capitalização estabilizada e inamovível por 30 anos — até 2045 — para um empréstimo a que a AG teria direito num processo de saída só poderá ser explicado por alterações ao contrato de privatização, que ocorreram no âmbito do acordo parassocial, assinado em 2017.

Nessa altura, algumas cláusulas do contrato de 2015 foram mudadas, e esta foi uma delas. Neeleman poderia ter acesso às prestações acessórias se houvesse incumprimento por parte do Estado, nomeadamente uma nacionalização, ou a AG se visse impedida pelo Estado de avançar com a abertura do capital em Bolsa (IPO). Não foi uma nacionalização (juridicamente falando) que ocorreu quando o Estado comprou a participação de Neeleman, foi uma saída negociada. Na verdade, a impossibilidade de Neeleman levantar as prestações acessórias por 30 anos manteve-se inalterada, mas o Estado queria afastá-lo, e foi isso que justificou que o empresário não tivesse saído de mãos a abanar.

A AG tinha pago 10 milhões para entrar na TAP. E além da capitalização proveniente de fundos da Airbus, Neeleman e Pedrosa, sabe o Expresso, avançaram com mais cerca de €15 milhões. Ou seja, dos seus bolsos saíram cerca de €25 milhões. Neeleman acaba por sair a ganhar, mas Pedrosa sai um ano e meio depois de mãos a abanar e em silêncio. Na TAP está ainda um empréstimo obrigacionista de €90 milhões feito pela Azul (onde Neeleman é acionista minoritário). O Expresso tentou sem sucesso obter um comentário da VdA e do advogado de David Neeleman, Diogo Perestrelo. Passaram sete anos desde a privatização, mas o processo está longe de estar fechado (Expresso, texto da jornalista ANABELA CAMPOS)

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