domingo, junho 05, 2022

Berardo: Fundação recebe 3 milhões por ano

Fundação extinta pelo Governo recebe mais de €3 milhões estatais ao ano, diz o ministro da Cultura. Foram €57 milhões desde a constituição. O acordo que o Estado assinou com José Berardo em 2006 contou com a bênção, entre outros, de António Costa. O então ministro de Estado e da Administração Interna foi um dos membros do Governo de José Sócrates que assinou a criação da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea — Coleção Berardo, que o seu Executivo renovou em 2016 e que agora o Governo por si liderado quer extinguir. Um acordo que já teve aspetos criticados pelo atual ministro da Cultura e que, a repetir-se, terá de ser em moldes “diferentes”. Todos os anos esta fundação consome mais de €3 milhões aos cofres estatais.

“A minha responsabilidade como ministro da Cultura não é nem comentar nem avaliar decisões com mais de 15 anos. O que devo fazer é encontrar soluções para resolver os problemas que se colocam agora”, é a resposta ao Expresso do ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, quando instado a comentar se o acordo entre o Estado e José Berardo acabou por revelar-se favorável ao empresário madeirense, em detrimento da esfera pública, já que foi o próprio governante a levantar algumas críticas ao acordo assinado no primeiro Governo de Sócrates.

Uma das críticas está no facto de o protocolo, datado de 2006 e renovado em 2016, já António Costa era primeiro-ministro, prever que as cerca de 800 peças que compõem a Coleção Berardo terem uma gestão própria, que não do próprio Centro Cultural de Belém (CCB), algo que Pedro Adão e Silva agora vai reverter.

A justificação para a decisão de extinguir este acordo — anunciada depois de um processo administrativo colocado por Berardo e pela Associação Coleção Berardo contra o Ministério da Cultura e a Fundação CCB — passa pelos arrestos judiciais decretados sobre as obras até que os tribunais decidam quem são os seus reais proprietários: se a associação de Berardo, se os bancos financiadores que reclamam que elas são garantias dos empréstimos por reembolsar. A expectativa governamental é que o Estado depois negoceie um novo protocolo com o legítimo proprietário, quando for validado por uma decisão transitada em julgado, o que deverá demorar anos a acontecer.

Quando ocorrer, Adão e Silva quer um modelo diferente daquele que o Governo socialista fez em 2006: “O Estado negociará certamente em termos diferentes daqueles que vigoraram até agora. Acho, por exemplo, que dificilmente... não vejo nenhuma razão para o Estado reverter a decisão que hoje anunciamos de voltar a gerir o módulo 3 do CCB [onde está a Coleção Berardo]”, disse na conferência de imprensa de há uma semana. Até ao fim do ano, continua a ser a fundação a assegurar a gestão; depois, passa para a esfera do CCB.

O gabinete do primeiro-ministro, que esteve na criação, na extensão do período de vida e agora na morte, não respondeu às questões do Expresso. A assessoria de Berardo continua sem comentar a denúncia.

€3 MILHÕES AO ANO

Desde a sua criação, e com cálculos feitos pelo Expresso a partir dos números anuais avançados pelo ministro, a fundação consumiu cerca de €57 milhões de recursos públicos, com as transferências anuais e com as despesas pagas pelo próprio CCB. Isto sem contar com as receitas de bilheteira (o bilhete para a visita da coleção é pago, por vontade do Estado, desde 2017).

Quer isto dizer que os gastos públicos nestes 15 anos correspondem a 20% do valor inicial da coleção, fixado em €316 milhões — número que estará desatualizado, não tendo sido divulgadas publicamente avaliações mais recentes.

Não se sabe quais as condições a negociar num futuro protocolo, numa data desconhecida, com um proprie­tário por determinar, mas o governante defende que esta renúncia do acordo com Berardo é a melhor alternativa. “Esta operação não só não tem custos acrescidos para o Estado — o que resulta claro se considerarmos os montantes que são anualmente transferidos para a Fundação de Arte Moderna e Contemporânea — Coleção Berardo — como ainda permite que o CCB passe a dispor da própria receita de bilheteira.”

A Coleção Berardo vai passar a ser gerida pelo CCB em 2023, sob o novo Museu de Arte Contemporânea, ao lado da Coleção Ellipse (comprada aos despojos do BPP, ainda sem valor de aquisição definido), mas ambas manterão o mesmo nome, segundo garante o ministro.

TRÊS PERGUNTAS A

Pedro Adão e Silva, Ministro da Cultura

Qual o montante que, desde a criação, o Estado transferiu para a Fundação de Arte Moderna e Contemporânea — Coleção Berardo, entre os subsídios diretos, o apoio à gestão cultural e o contributo para o fundo de aquisição de obras de arte?

Até 2013, quando as transferências do Orçamento do Estado para as várias fundações sofreram cortes, o apoio anual à Fundação Centro de Arte Moderna —Coleção Berardo era de €3.000.000,00. Desde então, o apoio direto passou a ser de €2.100.000,00 por ano. Este montante tem-se mantido inalterado, mesmo num contexto em que o valor das transferências para as demais fundações do perímetro da cultura foi reposto e os cortes revertidos, como aconteceu, por exemplo, com a Fundação Serralves, com a Casa da Música, com a Vieira da Silva — Arpad Szenes e mesmo com a Fundação Centro Cultural de Belém, que recebem, hoje, valores iguais aos pré-troika. A este valor anual de €2.100.000,00 acrescentam-se ainda algumas despesas inerentes ao funcionamento que são suportadas pela Fundação CCB como parte do apoio público. As referidas despesas centram-se em valores anuais um pouco superiores a €1.000.000,00. No total, o Estado transfere mais de €3 milhões/ano, além de que a receita de bilheteira do Museu Berardo também reverte para a Fundação Centro de Arte Moderna — Coleção Berardo.

Sendo a coleção denominada Coleção Berardo, quando estiver em exposição a partir de 1 de janeiro de 2023, qual o nome que vai apresentar? Berardo vai efetivamente cair?

O Governo não renomeia coleções. A Coleção Berardo é uma coleção notável e única no contexto nacional. A história não se reescreve e é nossa obrigação reconhecer a importância desta coleção, designadamente num país com défices tão significativos na arte contemporânea internacional. A Coleção Berardo manterá a sua denominação, bem como a Coleção Ellipse. O que será alterado no dia 1 de janeiro é o nome do museu, que deixará de se chamar Museu Berardo.

Com a extinção da Fundação, há a possibilidade de integração dos 27 trabalhadores, correto? E em relação aos 35 assistentes de exposição e aos 9 monitores que estão a trabalhar na fundação, a recibos verdes ou com outras formas de prestação de serviços?

Considerando as novas responsabilidades do CCB, iniciar-se-á um processo de negociação com vista a integrar os trabalhadores nos quadros. Quis deixar essa mensagem logo no momento de anúncio da denúncia do contrato, pois parece-me fundamental que todo este processo, do lado do Estado, seja gerido com a maior tranquilidade e sem sobressaltos. As necessidades específicas do novo museu serão tidas em conta, mas a mensagem que quero dar é que o Estado, e em particular o CCB, não compactua com práticas laborais precárias. No momento, o essencial é dar nota de que o Estado, e o Ministério da Cultura em particular, estará cá para defender o interesse público, criando as condições para que, mantendo-se os termos do arresto, as obras possam permanecer expostas, assegurando a sua preservação e seguros. No que depende da vontade do Estado, seremos parte da solução, integrando trabalhadores, promovendo a fruição pública de uma coleção fundamental para o país e assegurando os custos inerentes a toda a operação. Quando os tribunais tomarem uma decisão definitiva sobre a propriedade das obras, o Estado estará aberto a negociar um novo protocolo, que será diferente do anterior, até porque o contexto se alterou. (Expresso, texto do jornalista DIOGO CAVALEIRO)

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