quinta-feira, maio 07, 2020

Decisão da Alemanha sobre programa do BCE acarreta riscos de “instabilidade” e “degradação” da justiça europeia

A ‘Caixa de Pandora’ da justiça europeia pode estar a abrir-se, depois de o Tribunal Constitucional da Alemanha ter anunciado que pretende que o Banco Central Europeu (BCE) clarifique as partes “desproporcionais” do seu programa de compra de dívida lançado em 2015. Os especialistas ouvidos pelo Jornal Económico (JE) consideram que esta oposição por parte do tribunal constitucional da maior economia europeia pode motivar “instabilidade, insegurança e incerteza”. Os juízes de Karlsruhe acusam o programa de Quantitative Easing (QE) de violar o princípio da proporcionalidade previsto no n.º 4 do art.º 5.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (UE) e fazem um ultimato de três meses para que a instituição liderada por Christine Lagarde fundamente as medidas, sob pena de o Bundesbank deixar de participar na execução desse plano. Horas depois, Frankfurt respondeu, garantindo que se mantém “plenamente comprometido” com as suas decisões de política monetária, nomeadamente esse programa.

“Esta decisão poderá comprometer um dos princípios fundamentais da União Europeia, o do primado do direito da União Europeia, consagrado em 1964 pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia [TJUE], na medida em que não reflete a superioridade e obrigatoriedade do direito europeu – neste caso, da decisão do TJUE, sobre o direito nacional alemão”, afirma Leyre Prieto, advogada de Direito Europeu e da Concorrência ao JE. Na sua opinião, o sucedido deve servir para fazer uma reflexão sobre “a instabilidade, insegurança e incerteza que, a muitos níveis, poderá causar este eventual desrespeito de um dos princípios fundamentais em que assenta a construção da União Europeia”.
Gonçalo Saraiva Matias, professor da Universidade Católica e especialista em direito constitucional, afirma que há aspetos “históricos e preocupantes” na decisão, sobretudo porque adveio de uma proposta de cidadãos e partidos políticos germânicos, em 2018. “A controvérsia jurídica surge depois de o tribunal alemão ter enviado duas dúvidas ao TJUE, que por sua vez concluiu que o programa não violava o tratado sobre o financiamento monetário nem as competências do BCE para recomprar dívida pública”, explica.
A sócia da Telles concorda que essa é a principal fonte de controvérsia. Ou seja, o facto de a validade da decisão do BCE sobre esse programa lançado por Mario Draghi ter tido previamente ‘luz verde’ do TJUE, na sequência de um pedido de decisão prejudicial. O tribunal de Luxemburgo considerou que «O exame […] não revelou elementos suscetíveis de afetar a validade da Decisão (UE) 2015/774 do BCE, de 4 de março de 2015, relativa a um programa de compra de ativos do setor público em mercados secundários, conforme alterada pela Decisão (UE) 2017/100 do BCE, de 11 de janeiro de 2017»”, recorda a jurista.
“Não vamos dizer que o tribunal alemão não está consciente do princípio do primado [da lei europeia]. O argumento foi apresentado. Qual é o problema? Está aberta a porta para que cada Estado-membro possa recusar decisões europeias. Imaginemos que vários tribunais internos fazem o mesmo. É o fim da UE”, afirma Gonçalo Saraiva Matias. O diretor da Católica Global School of Law e ex-conselheiro jurídico da Presidência acredita que, neste caso, o BCE “vai ter alguma facilidade em responder” com a justificação pedida, “arranjando uma forma airosa de sair disto”.
Para o presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, existe um “interesse político” por trás da decisão daquela instituição judicial alemã que fere o interesse comunitário. “Não se pode dissociar esta decisão da conjuntura que se vive atualmente”, garante João Massano. “O percurso da UE tem sido no sentido de primazia do direito comunitário sob o nacional. O que está em causa aqui é uma reação do norte da Europa que coloca em causa o edifício europeu. Há tribunais de alguns países que sempre tiveram a ideia de que são os melhores a resolver as questões, mas se a União começa a abrir brechas nesta altura – com os Estados Unidos de um lado e a China do outro, a tentarem sair fortes desta crise – corre o risco de degradação”, garante o advogado.
Porém, há outro problema que pode surgir. Tendo em conta que a sentença proferida ontem não engloba o programa de emergência contra a pandemia (designado PEPP –Pandemic Emergency Purchase Programme), de 750 mil milhões de euros, os magistrados alemães – ou os polacos ou outros quaisquer – podem repetir a proeza com esta nova bazuca do banco central (Jornal Económico, texto da jornalista Mariana Bandeira)

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