domingo, maio 24, 2020

Centeno deixa reforma do BdP na gaveta

O caminho de Mário Centeno até ao Banco de Portugal (BdP) está cheio de obstáculos, tanto políticos como de calendário. Saindo ou não para governador, há uma promessa de anos que o ministro das Finanças não vai cumprir nesta sessão legislativa: fazer a reforma da supervisão financeira, que continua sem sair do papel. Uma reforma que, na versão que Mário Centeno apresentou em 2019, retira privilégios ao governador. O dilema é duplo: Centeno não se pode nomear a si próprio e também não fará uma reforma que o poderá condicionar. Será um mês e meio agitado para os lados do Terreiro do Paço e nem todos os astros se alinham para cumprir a vontade de Mário Centeno no sentido de mudar de cadeira, de ministro das Finanças para governador do BdP. Por enquanto, o ministro prepara o Orçamento suplementar, e essa poderá ser a sua última tarefa a nível nacional, deixando para o seu sucessor a preparação do Orçamento do Estado para 2021, que normalmente começa ainda no verão. A data marcada para que tudo se decida, a primeira quinzena de julho, marca também o fim da sessão legislativa, e assim não será apresentada pelo Ministério das Finanças a reforma da supervisão financeira, confirmou o Expresso.

A reforma em causa seria uma alteração substancial da supervisão, criando uma entidade de resolução bancária, retirando esses poderes do Banco de Portugal. A intenção era ainda separar as outras duas áreas de atuação do supervisor: a regulação bancária para um lado e a supervisão e aplicação de sanções para outro, alterando-se também a forma de nomeação e exoneração do governador. Essas mexidas foram consideradas inaceitáveis pelo BdP e secundadas pelo Banco Central Europeu e pela Comissão Europeia. Carlos Costa considerou a proposta uma afronta à autonomia e independência do banco central.
Depois de ter sido apresentado “tardiamente” no ano passado, o que levou os deputados a não o debaterem na especialidade, em janeiro o ministro garantiu que o diploma seria entregado para discussão na Assembleia da República “proximamente”. A pandemia ajudou a que a concentração das Finanças se des­viasse para outros assuntos. Este ficou na gaveta.
DATAS CRUZADAS
Não tem sido tabu a vontade (quase explícita) de Mário Centeno sair do Governo em julho, quando terminar o seu mandato no Eurogrupo. O timing de saída da pasta seria perfeito: Centeno fechava o Orçamento suplementar, que terá anexado o Programa de Estabilização Económica e Social, a primeira fase da recuperação, e seria o seu sucessor a pegar na segunda fase, o lançamento do programa de retoma económica e do OE para 2021. O mesmo não se pode dizer do timing para ir para o BdP: os calendários teriam de se ajustar para que isto acontecesse e, politicamente, António Costa teria de encontrar um novo ministro que aceitasse sê-lo com a condicionante, à partida, de ter quase como primeiro ato a nomeação do seu antecessor para o BdP.
Carlos Costa foi reconduzido como governador no dia 22 de maio de 2015 por Passos Coelho e entrou em funções a 10 de julho. O processo para a nomea­ção final do novo governador será o mesmo. Comparando os processos, esta semana já o Governo está em contrarrelógio. O que isto significa é que, caso seja Mário Centeno o escolhido para ir para o regulador português, não entra em funções a tempo do fim de mandato de Carlos Costa, uma vez que o mandato de Centeno no Eurogrupo termina a 13 de julho e não pode sair antes disso. Os dois, Carlos Costa e Mário Centeno, poderão ter de ficar onde estão mais tempo. Tal só poderá acontecer se não for Centeno o escolhido. Luís Máximo dos Santos, atual vice-governador, também tem sido apontado para o cargo e há ainda a possibilidade de uma terceira pessoa entrar em jogo, apurou o Expresso.
Foi o próprio primeiro-ministro que o assumiu esta semana em entrevista à TSF. “Se for necessário”, disse, o atual governador pode ter de ficar depois do fim do mandato. Até porque António Costa quer introduzir mais uma tarefa: quer ouvir os partidos antes, o que não aconteceu há cinco anos. Segundo a lei — a primeira que António Costa quis mudar quando chegou à liderança do PS —, o governador é proposto pelo ministro das Finanças, depois tem de ser ouvido na Assembleia da República, que tem de emitir um parecer, mas não vinculativo, e por fim é designado em Conselho de Ministros. Ora não será Mário Centeno a nomear-se a si próprio, pelo que terá de sair, ser substituído e depois nomeado.
E essa saída pode não ser no tempo previsto, quando terminar o mandato no Eurogrupo. Aqui entra uma razão política para Centeno, que não quer sair por baixo, com a economia de rastos, para não ser acusado de abandonar o barco no meio da tempestade. Não quer que digam que “pôs em causa a governação por causa do BdP”, diz ao Expresso uma fonte próxima do ministro das Finanças. O que pode significar que ficar mais um tempo a preparar o início da recuperação também está em cima da mesa. Enquanto os astros se alinham, o tempo corre.
GOVERNADOR VS. MINISTRO
Banca
O governador é responsável por medidas criticadas por Centeno, como a resolução do BES. Enquanto ministro, este decidiu a capitalização da CGD e o fim do Banif. São dossiês que teria sob a sua alçada.
Dividendos
O supervisor atribui 80% dos resultados ao Orçamento do Estado. Centeno foi muito crítico da política de resultados do banco.
Estudos
O BdP faz considerações sobre as previsões económicas das Finanças. As últimas foram validadas pelo ministro.
CENTENO DÁ GÁS A QUEM PROCESSA ESTADO
Mário Centeno classificou a intervenção no BES como “a mais desastrosa resolução bancária alguma vez feita na Europa”, e voltou a levantar dúvidas sobre a transferência de obrigações feita em 2015, para aliviar o encardo sobre o banco. O tema da resolução é um dos que mais motivaram ações contra o supervisor e essa transmissão de dívida, decidida pelo Banco de Portugal, motivou não só processos contra o supervisor como também contra a República Portuguesa por parte de entidades internacionais afetadas. Goldman Sachs, Pimco ou o fundo soberano do Kuwait são alguns dos opositores da resolução. As críticas de Centeno, não sendo novas, voltaram a não ser bem recebidas no supervisor, de cujos quadros faz parte e para onde é apontado como possível futuro governador. Até porque as afirmações do governante se juntam aos argumentos usados pelos investidores lesados (Expresso, texto da jornalista LILIANA VALENTE)

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