terça-feira, fevereiro 04, 2014

Como as publicações da época não acertaram no regicídio



“A ilustração de Wallace publicada no Liverpool Courier, a 4 de fevereiro de 1908, retrata dois atacantes de espingarda (um deles junto ao gradeamento) disparando sobre a família real. A ilustração de Wallace publicada no Liverpool Courier, a 4 de fevereiro de 1908, retrata dois atacantes de espingarda (um deles junto ao gradeamento) disparando sobre a família real.Completaram-se no dia 1 de fevereiro, 106 anos sobre a data em que um assassinato viria a mudar para sempre os destinos de Portugal: o regicídio. A notícia do acontecimento correu mundo mas, sem fotografias, cada publicação contou uma história diferente. Então (como agora) poucas eram as ocasiões em que os acontecimentos neste pequeno país no extremo mais ocidental da Europa mereciam menção nas edições noticiosas dos seus homólogos do velho continente. O regicídio, no entanto, e a forma como foi executado, tornou-se talvez num dos primeiros fenómenos de cobertura mediática em Portugal e no estrangeiro.
Numa altura em que uma simples carta demorava, pelo menos, uma semana a chegar de Portugal a Inglaterra ou à França, a notícia do assassinato do rei português não tardou a disseminar-se pelo telégrafo. As imagens, mesmo sem fotógrafos à disposição, depressa se lhe seguiram, mas eram feitas a partir dos relatos de quem assistiu e registadas por ilustradores e artistas. O atentado contra o rei português foi reconstituído nas páginas de numerosos jornais e revistas ilustrados de toda a Europa e mais além, só que quase nenhuma coincidia nos pormenores do acontecimento. Sem o benefício da captação instantânea e fotográfica da imagem, as reconstituições publicadas ficaram sujeitas à perspetiva e sensibilidade do artista que as produziu e obedeceram ao maior ou menor pendor fantasioso das testemunhas que relataram o ocorrido. Só assim se explica, por exemplo, que numa publicação francesa sejam quatro os homens armados que disparam contra a família real...
Hoje, com a vantagem do decurso do tempo, os factos relativos ao atentado são relativamente pacíficos - havendo só quem discuta ainda as motivações e a identidade das pessoas ou organizações por trás do mesmo. Facto assente é que pouco passava das cinco da tarde quando o landau com a família real partiu do cais do Terreiro do Paço para contornar a praça em direção à rua do Arsenal. O amplo largo e as arcadas ministeriais estavam repletas de gente que se aglomerara para ver o rei passar e a carruagem circulava com lentidão, antecedida e precedida pela sua guarda real. Antes de entrar na via mais estreita da rua do Arsenal, da placa central da praça destacou-se um homem de bastas barbas negras - um professor primário de nome Manuel Buíça - que, assentando um joelho no chão para melhor fazer pontaria, disparou por diversas vezes sobre o rei D. Carlos com a sua carabina, atingindo-o no pescoço, no ombro e no rosto. Do lado oposto, vindo das arcadas do então Ministério da Fazenda, um segundo elemento - Alfredo Costa, um caixeiro de 24 anos - subiu ao estribo traseiro do landau, disparou o seu revólver duas vezes contra as costas do rei e acabou por visar também o príncipe D. Luiz Filipe, que entretanto se erguera. O rei teve morte instantânea, o príncipe viria a morrer alguns minutos mais tarde. Volvidos 106 anos sobre o ocorrido, não há como saber qual foi exatamente a reação da rainha, mas muitas são as ilustrações que a retratam de pé, virada para trás no landau - trazendo à memória outra primeira-dama, de nome Jacqueline, que cerca de meio século mais tarde passaria por provação semelhante. Só que enquanto ainda hoje se cogita acerca das intenções de Jackie Kennedy, quanto às da rainha D. Amélia as imagens não deixam dúvidas: de "bouquet" de flores erguido no ar, em ato de fustigar Alfredo Costa, a sua intenção de o fazer perder o equilíbrio e abandonar a sua posição de vantagem no landau é inequívoca. O "Petit Journal Illustré" francês - o tal que retrata quatro regicidas e não dois - chega mesmo ao ponto de colocar nos seus lábios o repetido insulto "Infames! Infames!" gritado a plenos pulmões.
Com maior ou menor fidedignidade e mais ou menos atualidade - se houve edições que publicaram imagens três ou quatro dias depois do regicídio, outras houve que só volvidas duas semanas lograram fazê-lo -, as ilustrações sucederam-se nas páginas dos jornais do mundo inteiro. Enquanto umas colocavam os regicidas nas posições a partir de onde efetivamente atacaram, outras ilustravam-nos investindo ambos do mesmo lado, ou à direita ou à esquerda do landau; umas muniam-nos de carabina e revólver, como de facto aconteceu, e outras apetrechavam-nos apenas com espingardas ou com pistolas - a já referida publicação francesa, para não ser suplantada, retratava um par de atacantes com cada uma destas armas. Algumas ilustrações davam a entender que o rei teria sido abatido pela espingarda de Manuel Buíça e outras pelo revólver de Alfredo Costa ou ambos; este último tanto surgia empoleirado no estribo traseiro da carruagem como perseguindo-a em corrida. Quanto ao local da ocorrência, enquanto algumas ilustrações retratavam a fatídica esquina onde tudo aconteceu com verosimilhança outras havia que colocavam o landau em cenários irreconhecíveis, em posições impossíveis de determinar na praça ou junto ao (mais estético) Arco da Rua Augusta. A publicação britânica "Graphic" pôs mesmo a carruagem real nitidamente a circular à inglesa, aproximando-se da rua do Arsenal pelo lado esquerdo da praça com o Arco da Rua Augusta em pano de fundo.
Na maioria das gravuras criadas, a rainha surge feroz, defendendo a família com o seu ramo de flores contra a violência dos tiros regicidas. Mas há uma ou outra exceção. A mais dramática destas será talvez a ilustração publicada a 15 de fevereiro pelo "Illustrated London News". Nesta D. Amélia segura nos braços o rei já morto, à sua frente jaz o seu filho moribundo e no meio da populaça, um polícia dispara à queima-roupa contra a garganta de Manuel Buíça que está prestes a levar também uma estocada do sabre de um oficial de cavalaria. De facto, Manuel Buíça e Alfredo Costa foram abatidos de imediato, acabando por ser morto também João da Costa, um jovem de 21 anos, empregado de uma ourivesaria, erroneamente tomado por mais um regicida. Em redor da carruagem o caos instalou-se. Aos tiros dos regicidas haviam-se juntado os tiros de reação de membros da guarda real, o relinchar dos cavalos, o som estridente dos apitos dos polícias e os gritos da população que, em pânico, fugia em todas as direções. E também este pandemónio foi vastamente retratado na iconografia do regicídio da época. As imagens que aqui se reúnem são apenas algumas das que deram cobertura ao regicídio português. Um fenómeno mediático, nacional e estrangeiro, sem paralelo em Portugal. A tal ponto que mereceu reparo por parte de uma das mais populares publicações nacionais da época: a "Ilustração Portugueza" (texto da jornalista do DN de Lisboa, Adelaide Cabral, com a devida vénia)