“A ilustração de Wallace publicada no Liverpool
Courier, a 4 de fevereiro de 1908, retrata dois atacantes de espingarda (um
deles junto ao gradeamento) disparando sobre a família real. A ilustração de
Wallace publicada no Liverpool Courier, a 4 de fevereiro de 1908, retrata dois
atacantes de espingarda (um deles junto ao gradeamento) disparando sobre a
família real.Completaram-se no dia 1 de fevereiro, 106 anos sobre a
data em que um assassinato viria a mudar para sempre os destinos de Portugal: o
regicídio. A notícia do acontecimento correu mundo mas, sem fotografias, cada
publicação contou uma história diferente. Então (como agora) poucas eram as
ocasiões em que os acontecimentos neste pequeno país no extremo mais ocidental
da Europa mereciam menção nas edições noticiosas dos seus homólogos do velho
continente. O regicídio, no entanto, e a forma como foi executado, tornou-se
talvez num dos primeiros fenómenos de cobertura mediática em Portugal e no
estrangeiro.
Numa altura em que uma simples carta demorava, pelo
menos, uma semana a chegar de Portugal a Inglaterra ou à França, a notícia do
assassinato do rei português não tardou a disseminar-se pelo telégrafo. As
imagens, mesmo sem fotógrafos à disposição, depressa se lhe seguiram, mas eram
feitas a partir dos relatos de quem assistiu e registadas por ilustradores e
artistas. O atentado contra o rei português foi reconstituído nas páginas de
numerosos jornais e revistas ilustrados de toda a Europa e mais além, só que
quase nenhuma coincidia nos pormenores do acontecimento. Sem o benefício da
captação instantânea e fotográfica da imagem, as reconstituições publicadas
ficaram sujeitas à perspetiva e sensibilidade do artista que as produziu e
obedeceram ao maior ou menor pendor fantasioso das testemunhas que relataram o
ocorrido. Só assim se explica, por exemplo, que numa publicação francesa sejam
quatro os homens armados que disparam contra a família real...
Hoje, com a vantagem do decurso do tempo, os factos
relativos ao atentado são relativamente pacíficos - havendo só quem discuta
ainda as motivações e a identidade das pessoas ou organizações por trás do
mesmo. Facto assente é que pouco passava das cinco da tarde quando o landau com
a família real partiu do cais do Terreiro do Paço para contornar a praça em
direção à rua do Arsenal. O amplo largo e as arcadas ministeriais estavam
repletas de gente que se aglomerara para ver o rei passar e a carruagem
circulava com lentidão, antecedida e precedida pela sua guarda real. Antes de
entrar na via mais estreita da rua do Arsenal, da placa central da praça
destacou-se um homem de bastas barbas negras - um professor primário de nome
Manuel Buíça - que, assentando um joelho no chão para melhor fazer pontaria,
disparou por diversas vezes sobre o rei D. Carlos com a sua carabina,
atingindo-o no pescoço, no ombro e no rosto. Do lado oposto, vindo das arcadas
do então Ministério da Fazenda, um segundo elemento - Alfredo Costa, um
caixeiro de 24 anos - subiu ao estribo traseiro do landau, disparou o seu
revólver duas vezes contra as costas do rei e acabou por visar também o
príncipe D. Luiz Filipe, que entretanto se erguera. O rei teve morte
instantânea, o príncipe viria a morrer alguns minutos mais tarde. Volvidos 106
anos sobre o ocorrido, não há como saber qual foi exatamente a reação da
rainha, mas muitas são as ilustrações que a retratam de pé, virada para trás no
landau - trazendo à memória outra primeira-dama, de nome Jacqueline, que cerca
de meio século mais tarde passaria por provação semelhante. Só que enquanto
ainda hoje se cogita acerca das intenções de Jackie Kennedy, quanto às da
rainha D. Amélia as imagens não deixam dúvidas: de "bouquet" de
flores erguido no ar, em ato de fustigar Alfredo Costa, a sua intenção de o
fazer perder o equilíbrio e abandonar a sua posição de vantagem no landau é
inequívoca. O "Petit Journal Illustré" francês - o tal que retrata
quatro regicidas e não dois - chega mesmo ao ponto de colocar nos seus lábios o
repetido insulto "Infames! Infames!" gritado a plenos pulmões.
Com maior ou menor fidedignidade e mais ou menos
atualidade - se houve edições que publicaram imagens três ou quatro dias depois
do regicídio, outras houve que só volvidas duas semanas lograram fazê-lo -, as
ilustrações sucederam-se nas páginas dos jornais do mundo inteiro. Enquanto
umas colocavam os regicidas nas posições a partir de onde efetivamente
atacaram, outras ilustravam-nos investindo ambos do mesmo lado, ou à direita ou
à esquerda do landau; umas muniam-nos de carabina e revólver, como de facto
aconteceu, e outras apetrechavam-nos apenas com espingardas ou com pistolas - a
já referida publicação francesa, para não ser suplantada, retratava um par de
atacantes com cada uma destas armas. Algumas ilustrações davam a entender que o
rei teria sido abatido pela espingarda de Manuel Buíça e outras pelo revólver
de Alfredo Costa ou ambos; este último tanto surgia empoleirado no estribo
traseiro da carruagem como perseguindo-a em corrida. Quanto ao local da
ocorrência, enquanto algumas ilustrações retratavam a fatídica esquina onde
tudo aconteceu com verosimilhança outras havia que colocavam o landau em
cenários irreconhecíveis, em posições impossíveis de determinar na praça ou
junto ao (mais estético) Arco da Rua Augusta. A publicação britânica "Graphic"
pôs mesmo a carruagem real nitidamente a circular à inglesa, aproximando-se da
rua do Arsenal pelo lado esquerdo da praça com o Arco da Rua Augusta em pano de
fundo.
Na maioria das gravuras criadas, a rainha surge feroz,
defendendo a família com o seu ramo de flores contra a violência dos tiros
regicidas. Mas há uma ou outra exceção. A mais dramática destas será talvez a
ilustração publicada a 15 de fevereiro pelo "Illustrated London
News". Nesta D. Amélia segura nos braços o rei já morto, à sua frente jaz
o seu filho moribundo e no meio da populaça, um polícia dispara à queima-roupa
contra a garganta de Manuel Buíça que está prestes a levar também uma estocada
do sabre de um oficial de cavalaria. De facto, Manuel Buíça e Alfredo Costa
foram abatidos de imediato, acabando por ser morto também João da Costa, um
jovem de 21 anos, empregado de uma ourivesaria, erroneamente tomado por mais um
regicida. Em redor da carruagem o caos instalou-se. Aos tiros dos regicidas
haviam-se juntado os tiros de reação de membros da guarda real, o relinchar dos
cavalos, o som estridente dos apitos dos polícias e os gritos da população que,
em pânico, fugia em todas as direções. E também este pandemónio foi vastamente
retratado na iconografia do regicídio da época. As imagens que aqui se reúnem
são apenas algumas das que deram cobertura ao regicídio português. Um fenómeno
mediático, nacional e estrangeiro, sem paralelo em Portugal. A tal ponto que
mereceu reparo por parte de uma das mais populares publicações nacionais da época:
a "Ilustração Portugueza" (texto da jornalista do DN de Lisboa,
Adelaide Cabral, com a devida vénia)