segunda-feira, abril 26, 2010

Reportagem: "A ‘prisão dourada’ de Thomaz e Caetano na ilha da Madeira"

Da última edição do Expresso e da autoria de um dos mais conhecidos jornalistas, José Pedro Castanheira - especialista em jornalismso de investigação - transcrevemos com a devida vénia o texto e a foto que o acompanha, pela actualidade e curiosidade da reportagem em questão:
"O major Faria Leal foi quem recebeu, a 26 de Abril de 1974, os ex-presidentes da República e do Conselho. Afastados do poder pelos capitães, o Presidente da República Américo Thomaz e o presidente do Conselho Marcello Caetano foram enviados logo no dia 26 de Abril de 1974 para o Funchal. Quem os recebeu foi o major José Manuel Faria Leal — então chefe do Estado Maior do Comando Territorial Independente da Madeira e que viria a chefiar a Casa Militar do Presidente Jorge Sampaio. General na reforma, 73 anos, Faria Leal partilhou com o Expresso as suas memórias. Na madrugada de 25 de Abril, foi a mulher quem lhe telefonou de Lisboa a contar o que se passava. “Fui apanhado de surpresa”. Reunido com dois capitães, decidem “não pôr tropas na rua. Não era necessário, face à pronta adesão dos comandos de todas as forças militares”. A manhã decorre nervosa. Para o almoço, é convidado para o navio-chefe da armada francesa, atracada no cais do Funchal e comandada pelo almirante De Gaulle, filho do ex-Presidente. “A meio da refeição fui atender uma chamada via rádio de Lisboa, muito urgente”. É do posto de comando do Movimento das Forças Armadas (MFA), na Pontinha. “Falei com os majores Vítor Alves e Sanches Osório, que me informaram que iriam enviar para a Madeira alguns responsáveis do regime cessante”. Perante a inevitável atrapalhação do major, a resposta é imperativa: “Desenrasca-te! Depois te diremos quem e quando”.
Ana Maria Caetano, Marcello Caetano, Moreira Baptista e Silva Cunha, no Palácio de São Lourenço.
Faria Leal reúne-se então com os governadores militar e civil, “numa conversa extremamente difícil”. O major defende que os prisioneiros deveriam ficar no Palácio de São Lourenço, sede dos governos civil e militar. Diferente é a opinião dos governadores, que pretendem “reservar quartos no Hotel Savoy”. É já a 26 que o major sabe quem irá receber: os próprios Thomaz e Caetano, bem como os ex-ministros da Defesa e do Interior, Silva Cunha e Moreira Baptista, enviados num DC-6 da Força Aérea. Quando o avião surge no horizonte, em vez de se fazer à pista sobrevoa o aeroporto, enquanto se ouve nos altifalantes uma ordem: “O major Faria Leal deve dirigir-se à torre de controlo”. Leal obedece. Estabelecida a comunicação com o DC-6, vem uma inesperada pergunta: “Em que ano entraste na Escola do Exército?” “Em 1954”, responde o major. A informação confirma que é o próprio quem está na torre. “Sou o Baptista Pereira e vou já para baixo”, diz o comandante do avião, tenente-coronel e um velho amigo. A aterragem é tranquila. “Quando a porta do avião se abre, surgiu um militar camuflado com uma G3 empunhada”. Apresenta-se como o primeiro-sargento pára-quedista Picanço Gonçalves e diz que “vem entregar os prisioneiros”. Vestido à civil, Leal assume o comando das operações e organiza uma coluna de viaturas rumo ao Palácio de São Lourenço. À chegada, é redigida a indispensável “declaração de entrega”. Os três ex-governantes, Américo Thomaz e o seu ex-ajudante de campo ficam instalados na ala civil do palácio, protegido por um sistema de segurança. “Pouco depois surgiram no pátio interior o Marcello Caetano, o Silva Cunha e o Moreira Baptista a perguntar onde podiam adquirir material de higiene. Deixei-os ir, escoltados, a um estabelecimento” perto do palácio, para comprar o que fosse necessário. Os familiares mais directos dos ex-presidentes chegam a 30: Gertrudes e Natália Thomaz (mulher e a filha solteira de Américo Thomaz) e Ana Maria Caetano (filha de Marcello). No 1º de Maio, a manifestação detém-se diante do palácio. A multidão grita: “A Madeira não é um caixote do lixo” e pede o julgamento dos governantes. Através de um megafone, Leal pede “calma” e promete “justiça”. O tenente-coronel Carlos Azeredo, novo governador militar, chega à Madeira a 2. No dia imediato, acompanhado pelo major, recebe separadamente todos os prisioneiros. Faria Leal escusa-se a revelar o conteúdo das conversas — diz apenas que “se rodearam de alguma tensão”. No seu livro “Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império” o general Carlos Azeredo dedica duas páginas a este episódio. Ignora a presença do major, mas não esquece o pormenor de ter aguardado os detidos “de pé e acompanhado do meu pastor alemão”. A situação mais tensa é a conversa com Caetano, que, após ter ouvido Azeredo, “sucumbiu psicologicamente e lembrando o assassinato da família imperial russa, pediu que o matassem, mas não o enxovalhassem na sua dignidade”. O ambiente entre os detidos não é o melhor. “Faziam vidas separadas, com acusações mútuas”. De um lado, Thomaz, a mulher e a filha; de outro, os demais. “Até tinham refeições a horas diferentes”. Parte do tempo é consumido a jogar às cartas, “normalmente a canasta”. Sem poderem sair do palácio, os reclusos recebem visitas, falam ao telefone e trocam correspondência sem limitações. Vivem, como escreveu Vicente Jorge Silva no “Comércio do Funchal”, numa “gaiola dourada”. O Presidente Spínola, combina o futuro dos presos com Azeredo, que envia o major a Lisboa. Com um ramo de estrelícias para a mulher de Spínola, Leal desloca-se a casa do general e acerta os pormenores da libertação de Thomaz e Caetano. Na madrugada de 20 de Maio, embarcam, sob escolta, no navio “Pirata Azul” até Porto Santo, onde apanham um Boeing 707 até ao exílio no Brasil. Sorte diferente têm os dois ex-ministros, que seguem para o Forte da Trafaria. Américo Thomaz regressaria a Portugal, onde faleceu em 1987. Marcello Caetano fez questão de morrer no Brasil, em 1980".

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