domingo, março 26, 2023

Gouveia e Melo: Há condições para um militar ser Presidente da República?

Desde as eleições de Ramalho Eanes, em 1976 e 1980, que Portugal não tem um militar como figura de um órgão de soberania. A nível europeu, a República Checa é o único país onde isto se verifica. Com Gouveia e Melo a ser tido como possível candidato, terá o Chefe do Estado-Maior da Armada uma palavra a dizer na sucessão de Marcelo Rebelo de Sousa? Os politólogos ouvidos pelo DN divergem. "Há espaço", diz Paula do Espírito Santo. Viriato Soromenho-Marques discorda e diz que "vai uma grande distância" entre as funções de PR e aquilo que o Almirante já fez. A Constituição não o impede, mas ter um militar no lugar mais alto do Estado não tem sido comum em Portugal. Tirando o período da I República (1910-1926), em que houve vários casos (como Sidónio Pais, por exemplo), os dados mostram que a eleição de Ramalho Eanes, em 1976, foi um caso raro. Aliás, essa eleição foi, ela própria, disputada praticamente só entre militares. Além do eleito Ramalho Eanes, foram ainda a votos Otelo Saraiva de Carvalho (apoiado por pequenos partidos, como a UDP, foi segundo) e José Pinheiro de Azevedo, que foi terceiro. A exceção foi o histórico comunista Octávio Pato, que ficou em quarto, e último. Desde então, nunca mais os militares estiveram num cargo político em Portugal.

No entanto, o nome do Almirante Gouveia e Melo, atual Chefe do Estado-Maior da Armada, tem vindo a ser associado a uma eventual candidatura a Belém nas próximas eleições presidenciais (agendadas para 2026). Escolhido pelo governo para coordenar a task force de vacinação contra a covid-19, em 2021, o até então Vice-Almirante era um desconhecido para a maioria da população. No entanto, o seu trabalho no combate à pandemia fez com que fosse homenageado por diversas ocasiões - incluindo a condecoração do Presidente da República com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Avis. O governo agradece-lhe também, dando-lhe o cargo mais importante no ramo militar a que pertence: a chefia da Armada.

E, apesar de nunca ter dito diretamente que uma candidatura a Belém estava nos planos, a verdade é que Gouveia e Melo também nunca fechou a porta. Em 2021, na tertúlia "Renovar, Recuperar e Reiventar", que assinalou o 157.º aniversário do DN, referiu não ser "um ator político", mas, assumia, "nunca se deve dizer "dessa água não beberei"".

Olhando para a União Europeia, ter militares num cargo político é, em si, uma raridade. A exceção é a República Checa e aconteceu em janeiro deste ano, quando os eleitores checos foram a votos para eleger o seu quarto presidente desde a Revolução de Veludo, que derrubou o regime comunista na Checoslováquia, em 1989. O vencedor das presidenciais? Petr Pavel, um general na reserva, de 61 anos, que venceu Andrej Babis, ex-primeiro-ministro do país.

Por cá, poderá acontecer algo semelhante?

Ouvida pelo DN, Paula do Espírito Santo, investigadora e professora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), refere que "tendo em conta a história política do país, haverá algum espaço, sobretudo ao nível da sociedade, para que Gouveia e Melo se candidate nas presidenciais". "Tal como o era Eanes, o Almirante é um militar, alguém para quem a disciplina é cara. Esse contexto tem de ser tido em conta quando se pensa numa eventual candidatura, até porque a figura presidencial exige uma certa sobriedade e rigor", afirma.

Na opinião de Viriato Soromenho-Marques, professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), essa disciplina levanta dúvidas. "Gouveia e Melo trata-se, sim, de alguém que desempenhou funções, na altura da pandemia, com grande rigor e disciplina. Mas, daí a poder ter capacidade para desempenhar aquilo que compete, constitucionalmente, ao Presidente da República vai uma grande distância", considera.

Presidenciais 2026. Os que querem ser candidatos... e os que estão a ponderar

E há ainda outro "aspeto formal" que deve ser tido em conta: "Não estamos no período pós-Revolução, em que os candidatos eram quase todos militares no ativo. Para isso [a candidatura a Belém] acontecer, Gouveia e Melo teria de se aposentar ou, eventualmente, passar à reserva." Isto porque, segundo a lei, os militares podem-se candidatar ao cargo caso não estejam em efetividade de serviço. Se estiverem no ativo, é necessária a concessão de uma licença especial feita pelo Chefe do Estado-Maior do ramo a que pertencer... cargo que, neste caso, é ocupado pelo próprio Gouveia e Melo.

Caso no NRP Mondego pode deixar marca

Nos últimos dias, Gouveia e Melo - e a Marinha - têm estado no olho do furacão. O motivo: a 11 de março, 13 militares do NRP Mondego, um navio de patrulha costeiro, recusam-se a embarcar, fazendo com que a Marinha falhe uma missão de acompanhamento de um navio russo a norte da ilha de Porto Santo, na Madeira. Na base da decisão, justificavam em carta aberta, estavam as fracas condições de segurança da embarcação. Segundo o grupo, o NRP Mondego tinha, à altura da recusa, um motor inoperacional (algo que a própria Marinha confirmou) e também um gerador com falhas e problemas no esgoto. A situação merece, dias depois, palavras duras de Gouveia e Melo, que relembra o papel da disciplina nas Forças Armadas ("é a cola essencial", diz) e classifica o ato como uma insubordinação dos 13 militares e diz que "jamais poderá ser ignorado e esquecido".

"O caso em concreto, marca, claro que sim", considera Paula do Espírtio Santo. É, diz, "uma matéria de reflexão pública". "A reação do Almirante não foi tão neutra quanto talvez se pedisse e esperasse. Havia um inquérito a decorrer e os factos deviam ser apurados a seu tempo".

Viriato Soromenho-Marques concorda. "A intervenção pública na reação ao caso merecia mais reserva", considera. "A partir do momento em que havia uma comissão constituída com trabalho a ser desenvolvido, devia ter havido uma reserva da parte de Gouveia e Melo. Além disso, a presunção de que tudo se trataria de uma eventual conspiração contra si e contra a sua imagem não é positiva. Diria que, depois do caso, os impactos são grande e as hipóteses de uma candidatura mínimas", conclui.

E o PS? Almirante ou Santos Silva? No caso de uma eventual candidatura a Belém, como se posicionaria, então, o PS?

Por um lado, foi o governo de António Costa quem puxou Gouveia e Melo para a linha da frente do combate à pandemia. Por outro, há ainda Augusto Santos Silva, atual presidente da Assembleia da República e ex-ministro de governos socialistas, que é também ele visto como um putativo candidato nas próximas presidenciais.

Além disso, olhando para os resultados eleitorais ao longo da história, é notória a falta de acerto do PS em apoiar candidatos. Salvo raras exceções (como Eanes, Mário Soares ou Jorge Sampaio), os candidatos apoiados pelos socialistas não costumam ser vencedores. Veja-se, por exemplo, o caso de Sampaio da Nóvoa, candidato em 2016, foi segundo atrás de Marcelo Rebelo de Sousa, com quase menos 30% de votos (52% para Marcelo, 22,88% para Sampaio da Nóvoa).

Este exemplo é visto por Paula do Espírito Santo como tendo eventuais paralelismos com o de Gouveia e Melo. "Era alguém que, na altura, era muito interventivo civicamente e visto como alguém consensual. Mas, ainda assim, não conseguiu ser eleito". Porquê? Do outro lado estava Marcelo Rebelo de Sousa, "alguém que já estava presente e que, já de si, era muito popular". Há, no entanto, uma "desvantagem logo à partida" em ambos os casos, diz Paula do Espírito Santo: "A falta de aparelho partidário. Sem essa estrutura, estas figuras acabam por não ter um apoio mais sólido para as suportar, mas isso é até algo natural tendo em conta o perfil do cargo de Presidente, que é mais estratégico do que o de um primeiro-ministro."

No entanto, Viriato Soromenho-Marques aponta outro fator: a proximidade desejada entre os partidos que governam e o eventual titular do cargo de Presidente. Até porque as duas eleições acontecerão em 2026 (presidenciais em janeiro; legislativas em setembro/outubro). E, estando Marcelo Rebelo de Sousa impedido de se candidatar (está a cumprir o segundo mandato), esta questão pode ganhar outra relevância. "Os partidos de governo gostariam, claro, de ter em Belém um Presidente da República mais amigável do que hostil". Significa isso uma aposta dos socialistas em Augusto Santos Silva? "Não creio. Parece-me, até, que já pode estar agora no final da sua vida política".

O caso do presidente checo

Petr Pavel, 61 anos, general (na reserva), considerado um paraquedista de elite. No início de janeiro, é eleito presidente da República Checa contra o antigo primeiro-ministro, o magnata populista Andrej Babis. Embora o poder presidencial checo seja reduzido, o chefe de Estado nomeia o governo, escolhe o governador do banco central e os juízes constitucionais, e assegura o comando supremo das forças armadas (esta função também acontece em Portugal). Durante a campanha, Pavel disse querer ser "um presidente digno" de um país membro da União Europeia e da NATO. Com esta eleição, a República Checa tornou-se assim o único Estado-membro com um militar na presidência (DN-Lisboa, texto do jornalista Rui Miguel Godinho)

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