“A greve é o último recurso de uma luta. Mas às vezes é o recurso necessário e imperioso”, afirma Luís Filipe Simões. Numa altura em que se sucedem protestos e reivindicações em vários grupos de media, o M&P ouviu o presidente do Sindicato dos Jornalistas, que, em entrevista, traça um cenário negro e avança com a possibilidade de uma greve geral. Isto quando, adianta ao M&P, está por dias ou semanas a aprovação do novo contrato coletivo cuja negociação se arrasta há vários anos. Uma nova tabela salarial única, que não faz distinção entre um jornalista de Lisboa e outro de Bragança, com uma remuneração de entrada na profissão fixada nos 900 euros, será uma das principais mudanças no novo contrato coletivo de trabalho que, após oito anos de avanços e recuos, será agora finalmente depositado no Ministério do Trabalho, começando a produzir efeitos já a partir de março. A convicção é de Luís Filipe Simões, presidente do Sindicato dos Jornalistas, que adianta, em entrevista ao M&P, que o documento final está 99,99 por cento aprovado. A entrada em vigor do novo contrato coletivo chega numa altura em que se multiplicam as reivindicações por melhores condições de trabalho e atualizações salariais em vários grupos de media, com novas greves entretanto convocadas na Lusa e na TVI, colocando mesmo em cima da mesa a possibilidade de uma inédita greve geral de jornalistas.
Meios & Publicidade (M&P): O ano arrancou com notícias de despedimentos no Diário de Notícias e no grupo Renascença, preocupação com possíveis reduções também na Media Capital, pedidos de revisão dos salários na Global Media, um protesto silencioso na Impresa pelo mesmo motivo, o mesmo que está agora na origem de uma greve convocada na TVI. A situação dos jornalistas portugueses agravou-se particularmente nos últimos meses?
Luís Filipe Simões (LFS): Tem vindo a degradar-se muito ao longo dos anos. Degradou-se de tal forma que, nesta altura, somos confrontados com um estudo que teve a colaboração SJ, da CCPJ e das universidades de Coimbra, de Lisboa e do Minho, que nos mostra que quase metade dos jornalistas em exercício declarava em 2022 um rendimento mensal bruto inferior a 900 euros. Segundo números do INE, o salário médio é 1.276 euros. Os jornalistas recebem hoje abaixo da média. E o jornalismo, com as responsabilidades que tem, uma profissão que, não por acaso, é consagrada na Constituição, nunca pode ser uma profissão de rendimentos mínimos. Se perdemos qualidade naquele que é um dos pilares da democracia, é a própria democracia que fica em risco. Não concebo, por muito que me digam que o modelo de negócio tem de ser revisto e que as empresas de comunicação social estão a atravessar um período difícil. Não é possível continuarmos a perder poder de compra e nível de vida de uma forma tão acentuada como aconteceu nos últimos 30 anos.
M&P: Defende que a situação está a tornar-se insustentável.
LFS: O cenário é negro. Basta ver todos esses casos. E aquilo que os jornalistas pedem hoje, a TVI é um exemplo disso, são aumentos de oito por cento. Estamos a falar de repor apenas o que se perdeu com este aumento brutal da taxa de inflação. Os jornalistas não estão a pedir para regressar a um tempo em que ganhavam mais do que o salário médio, estão a pedir para não continuar a perder poder de compra. E já perderam muito. Há algo que não consigo entender. A Renascença dispensa uns quantos para ir buscar novos talentos, provavelmente mais baratos, e dirão que essas pessoas não são despedimentos mas sim acordos para saída. A juvenilização das redações é hoje uma coisa assustadora. Não temos aquilo que o jornalismo sempre teve: riqueza geracional. As redações sempre foram, e têm de continuar a ser, até para que o jornalismo possa cumprir bem a sua missão, espaços de discussão e de experiência. Não me parece que uma redação completamente juvenil possa ser saudável e cumprir o seu papel.
M&P: O cenário é transversal a vários grupos. Afirmou recentemente que “é rara a empresa que está a dar resposta a estas preocupações”. Têm mantido contacto com as administrações destes grupos de media?
LFS: Tenho mantido mais contacto com os trabalhadores do que com as administrações. Disse há uns dias que esta situação requer uma resposta global, precisamente por não ser uma empresa nem duas mas sim várias. Temos de o fazer, primeiro de uma forma segura, e depois também de uma forma consciente. É esse processo que iniciámos agora, estamos a falar com jornalistas de todos os órgãos de comunicação, de todas as áreas – televisão, rádio, imprensa, digital –, para darmos uma resposta global para pressionar as empresas a repor a justiça. Os jornalistas não vão perder mais 10 por cento do seu rendimento por força da inflação. Não podem. Há mais de 20 anos que não há aumentos nas empresas jornalísticas. Basta. Chegou a hora de dizê-lo. Já não é possível ir tentando aqui e ali, ir pedindo umas migalhas. Tem de ser uma ação mais global. Os jornalistas, talvez por terem essa consciência de que é perigoso o jornalismo não responder, não gostam de ser notícia, mas têm de ser notícia quando estão há 30 anos a perder poder de compra. Estamos a ganhar menos 30 por cento do que no início do século. É disso que estamos a falar e não pode continuar.
M&P: Está em cima da mesa uma greve geral?
LFS: Estamos a pensar globalmente. Há várias propostas de intervenção e, sim, uma delas é uma greve geral dos jornalistas. A resposta não irá demorar muito, vamos avançar para um processo que tem de ser muito rápido, muito enquadrado no tempo, de falar com todos os nossos delegados sindicais, com todos os trabalhadores sindicalizados quando nas redações não existirem esses delegados, e avaliar. Obviamente, percebo que a greve é o último recurso de uma luta. Mas às vezes a greve é o recurso necessário e imperioso. Se for a única via de nos reporem os nossos salários e os nossos direitos, não tenho nenhum problema em admitir que possa ser feita.
M&P: Dos contactos que têm mantido com as administrações, há perspetivas de que estas reivindicações venham a ser atendidas?
LFS: A resposta é rápida: não. Dos contactos que tenho tido com as administrações, não tenho sentido qualquer abertura. Nenhuma. Não vejo nenhuma empresa de comunicação disposta sequer a aproximar-se dos pedidos dos jornalistas.
M&P: Quais são os argumentos que apresentam?
LFS: A crise é muito dura, a pandemia agravou a crise, as pessoas não consomem os produtos jornalísticos, portanto não há condições de repor os salários. Mas há outra coisa, é que as pessoas que ganham menos são as que trabalham mais.
M&P: Referiu também que estes argumentos coincidem temporalmente com contratações e investimentos noutras áreas que não a redação.
LSF: Exato. Ao mesmo tempo que uma empresa anunciava rescisões, anunciou a contratação de uma pessoa para a área tecnológica.
M&P: Estamos a falar da Global Media.
LFS: Estamos a falar da Global Media, que tarda em compensar os seus trabalhadores, que trabalham o dobro e ganham muito menos. Mas o problema é a falta de investimento numa pessoa que, provavelmente, vai ganhar mais do que qualquer jornalista. Não digo que essa pessoa ganhe muito, os jornalistas é que ganham muito pouco. E, se o investimento de uma empresa jornalística acontece em todas as áreas menos no jornalismo, algo não está bem.
M&P: Têm vindo a acompanhar estes casos de perto. Há algum que vos esteja a causar especial preocupação?
LFS: Não consigo ter especial preocupação com nenhum porque, infelizmente, estou muito preocupado com todos. Vemos a RTP com um aumento muito incipiente, cerca de 20 euros, quando devia ser o farol e devia até o Estado fazer um esforço, como referência, e dizer ‘vamos negociar uma compensação financeira aos trabalhadores da RTP neste contexto de inflação galopante’. A Lusa também ainda não conseguiu aprovar um caderno reivindicativo de aumentos, ainda com um bolo manifestamente insuficiente. Vamos aos privados e temos um caso como o d’A Bola, que pagou em novembro o subsídio de Natal do ano anterior, ainda deve o deste último ano e nem sequer diz aos trabalhadores quando irá pagar. Temos a Renascença a chamar pessoas para perguntar se querem ir embora, a Global Media a sair do prédio do JN para ir para um sítio complicado, sem transportes e sem aumentar os jornalistas. Temos a TSF em luta por melhores condições de trabalho, o DN, que é um património de jornalismo, com mais quatro despedimentos, que se somam a tantos outros. Não há uma única empresa onde possamos dizer que está tudo em paz, em que as pessoas não tenham que reivindicar porque vão sendo compensadas pelo seu trabalho. Isso não existe e é desastroso que assim seja.
M&P: No caso dos privados, o tema das consolidações no setor dos media voltou a ser abordado publicamente. Sendo conhecidas as sinergias que normalmente advêm deste tipo de movimentos, gerando reestruturações que habitualmente redundam em despedimentos, a possibilidade de surgirem no horizonte operações de consolidação coloca preocupações acrescidas?
LFS: Preocupa por tudo isso que referiu. E preocupa-me, sobretudo, por um modelo que, neste país, por muito que se tente evitar, não temos conseguido fazê-lo, que é a concentração de meios com um efeito muito nefasto ao nível de uma cada vez mais reduzida pluralidade. Não posso comprar dois jornais do mesmo grupo e depois ver que metade dos jornais são iguais. Não posso começar a ver que os grupos estão cada vez mais concentrados, com dois ou três a dominarem 90 por cento da imprensa do país. Isso é completamente catastrófico, desde logo pelas sinergias, em que metade do trabalho deste vai ser utilizado por aquele e, portanto, basta metade de um lado e do outro para termos uma redação maior. Isto tem a ver com um tipo de gestão em que, pelos vistos, os jornalistas são dispensáveis. Temos hoje redações enormes, indiferenciadas, onde os jornalistas fazem tudo. Não vejo que seja possível, mas é cada vez mais frequente vermos as redações com vários órgãos, tudo misturado num open space. Esta não pode ser a resposta.
M&P: A tal resposta global, além da possibilidade de greve geral, poderá passar também por um pedido de intervenção dos poderes políticos?
LFS: Vai passar concerteza. Ainda há dois dias estive na Assembleia da República, numa conferência organizada pela Comissão Nacional de Eleições e, a meio do discurso, leio isto: “Ando há anos a dizer que a comunicação social está a atravessar uma fase social e económica muito difícil, de grande precariedade. E, para uma democracia forte, é preciso uma comunicação social forte. Se a comunicação social não é forte, a democracia não é forte.” A frase não é minha, é do senhor presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. E é bom que o Presidente da República tenha esta noção porque, como também sublinhei, não retiro daqui uma vírgula. É bom que o primeiro-ministro também tenha esta noção, que o governo tenha esta noção e que o ministro que nos tutela tenha esta noção. Neste momento, é evidente que não temos um apoio ao jornalismo que lhe permita ser forte e termos também uma democracia forte. Enquanto cidadão estou genuinamente preocupado com a saúde da democracia porque, enquanto presidente do SJ, estou muito preocupado com a saúde do jornalismo (Meios e Publicidade, texto do jornalista Pedro Durães)
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