Crise obriga grávidas venezuelanas a irem até Roraima
para realizar seus partos, e número de nascimentos cresce 50% no Estado.
"Se eu tivesse minha filha na Venezuela, teria que comprar gases, toalhas
e, até mesmo, a lâmpada da sala de parto", conta Veronica González. Com 42
semanas de gestação, a venezuelana Veronica González, de 17 anos, caminha pelo
estacionamento da maternidade de Boa Vista —a única do Estado de Roraima— após
recomendação do médico. "Me pediram duas horas para decidir se irão
induzir o meu parto, já que a minha gravidez está muito longa", explica a
jovem ao lado do pai. Apesar de estar ansiosa com o nascimento de Saymar, sua
primeira filha, a adolescente finalmente respira aliviada. Nos últimos dias,
González correu contra o relógio para conseguir chegar a tempo de dar à luz no
Brasil. A falta de insumos médicos nos hospitais da Venezuela a obrigou a
viajar mais de 26 horas de ônibus da capital Caracas até Pacaraima, cidade de
Roraima que faz fronteira com o país vizinho. De lá, após requisitar refúgio no
Brasil, e ter que dormir uma noite na rua, seguiu para Boa Vista. "Se eu
tivesse decidido ter a minha filha na Venezuela, eu teria que comprar tudo o
que fosse necessário para o parto: gases, toalhas, medicamentos e, até mesmo, a
lâmpada da sala do hospital.
Não está fácil achar esses insumos e, quando você
encontra, estão caríssimos. Aqui eu já sabia que todo atendimento seria gratuito",
diz a venezuelana que agora pretende morar, nos próximos meses, com os pais e
as irmãs na capital de Roraima. As grávidas venezuelanas também optam por
cruzar a fronteira para fugir da alta mortalidade infantil no país vizinho, que
aumentou 30,12% em 2016 em relação a 2015 —em números brutos, foram 11.466
mortes de crianças menores de um ano—, segundo o dado oficial mais recente.
"Em último caso, até conseguiria ter tido minha filha na Venezuela, mas
seria impossível mantê-la viva naquelas condições sem os alimentos e os
medicamentos necessários. Disse ao meu marido que eu viria para o Brasil mesmo
se ele não quisesse", explicava Ana Carina Aires, de 23 anos, enquanto
amamentava a pequena Ricarlys, de apenas dois meses, em um abrigo para refugiados
venezuelanos em Boa Vista. Ela saiu de Valência, no Norte da Venezuela, quando
estava com sete meses de gestação. "Para chegar até aqui tive que vender a
única coisa que tinha conseguido poupar para a minha filha: quatro latas de
leite ninho", conta Ana que divide, junto com o marido, uma casa no abrigo
com outro casal que tem um bebê de dez meses. Enquanto histórias como a de
Verônica e Ana se tornam cada vez mais comuns, a Maternidade Nossa Senhora de
Nazaré vê o número de grávidas venezuelanas aumentar exponencialmente e
sobrecarregar os serviços médicos do Estado. "Hoje, a cada dez partos na
maternidade, quatro são de venezuelanas. Fomos o único Estado do Brasil que
aumentou o número de natalidade, o que está totalmente ligado a chegada de
tantas mães venezuelanas que cruzam a fronteira", afirma Daniela Souza,
coordenadora de vigilância em saúde de Roraima. De acordo com a Secretária da
Saúde do Estado, Roraima registrava, em média, 8.000 partos por ano. A partir
da chegada do grande fluxo de venezuelanos nos últimos dois anos, o número foi
aumentando e, em 2017, saltou para 12.000 - um acréscimo de 50%.
"Precisamos de um hospital de campana aqui na capital para dar uma
desafogada em todos esses atendimentos", diz Souza.
Segundo a Secretaria Estadual da Saúde, o Estado ainda
não recebeu nenhum valor do Governo federal para custear os gastos extras que
Roraima teve devido a imigração venezuelana. A governadora, Suely Campos (PP),
cobra por meio de uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) o ressarcimento de
184 milhões de reais pelos gastos extraordinários. Com a escalada da crise da
Venezuela e o deterioramento dos centros de saúde do país vizinho, algumas
venezuelanas grávidas, que moram em cidades perto da fronteira, também acabam
sendo transferidas em situações de emergência para a maternidade de Roraima,
pressionando ainda mais a capacidade do local. A venezuelana Rosangela
Hernandez, de 30 anos, moradora de Santa Elena de Uairén, cidade vizinha de
Pacaraima, foi trazida a Boa Vista às pressas de ambulância após apresentar
fortes dores e sangramento quando ainda tinha apenas 5 meses de gestação.
"Em Santa Elena, que está a mais de 200km, eles me falaram que meu caso
era grave, mas que não tinham uma sala de cirurgia preparada nem uma sala de
terapia intensiva. Estava grávida de gêmeos e chegaram a dizer que eu tinha
perdido os dois bebês. Graças a Deus, uma das minhas filhas sobreviveu",
conta a venezuelana que atualmente ocupa um dos leitos da Casa da Gestante, um
prédio anexo da Maternidade Nossa Senhora de Nazaré, onde ficam instaladas a
mães com gravidez de risco ou que aguardam a recuperação dos bebês prematuros.
Na manhã em que visitou a maternidade, a reportagem
presenciou também o atendimento de uma grávida que veio da cidade de Latham, na
Guiana Inglesa, de ambulância. Segundo a médica que acompanhava a paciente, o
anestesista do hospital do país vizinho estava de férias. "Somos um Estado
fronteiriço com a Venezuela e a Guiana, então sempre atendemos a estrangeiros.
Era algo normal. Eles sabem que o SUS é dado a qualquer cidadão, logo eles já
acessavam ao nosso sistema de saúde. Só que tivemos um aumento impactante. Já
havia falta de leitos antes, agora a situação está muito pior", explica a
coordenadora de vigilância em saúde de Roraima, que ressaltou que os 150 novos
leitos criados no sistema de saúde no fim do ano passado tampouco foram
suficientes para responder à chegada dos imigrantes.
Sarampo e Malária
A forte demanda por atendimento médico no Estado não
se restringe à maternidade. Milhares de venezuelanos chegam com problemas
graves de nutrição e com doenças como sarampo ( que chegou a ser erradicada no
país) e malária. Antes da crise migratória, em 2014, o Estado realizou cerca de
700 atendimentos a imigrantes. Em 2017, já com forte fluxo de venezuelanos
cruzando a fronteira, esse número saltou para 50.000 atendimentos. E, apenas
nos primeiros três meses deste ano, já foram 45.000 atendimentos. Segundo a
Secretaria de Saúde do Estado, muitos buscam os centros de saúde para conseguir
alimentos que o sistema oferece e, por não terem para onde ir, geralmente não
querem receber alta. "Há muito tempo o Estado de Roraima insiste na
implementação de uma barreira sanitária na fronteira com exigência da vacina. O
Governo Federal diz que não é possível, mas tampouco dá uma solução. Ele criou
uma sala de vacina na triagem da fronteira, mas ela é opcional", afirma
Souza. A coordenadora de vigilância em saúde do Estado destaca que hoje há mais
de 5.000 casos de sarampo na América do Sul, e a maioria deles é do vírus do
genotipo D8, o mesmo circulante na Venezuela desde 2017.
Porta de entrada asfixiada
Na pequena cidade fronteiriça de Pacaraima, com apenas
12.000 habitantes, os serviços públicos estão ainda mais asfixiados. Lá, o
número de atendimentos médicos aos venezuelanos já supera o de brasileiros.
"Atualmente, 70% dos atendimentos chegam a ser de venezuelanos, o que gera
um atrito com a população local, porque os brasileiros não estão conseguindo
ser atendidos. Muitos imigrantes dormem a noite toda no posto de saúde para ser
atendido", explica a Doutora Mayara Suzane, que trabalha no Hospital Délio
Tupinambá e também em um dos dois postos de saúde da cidade. "Em alguns
dias, já fiz 20 atendimentos sendo 19 de venezuelanos".
Boa parte da população se mostra ressentida pela
precarização de serviços públicos, que estão sendo pressionados pela demanda
dos imigrantes, e pelo aumento da violência no Estado menos povoado do Brasil.
A tensão tem escalado, com episódios de xenofobia. No final do mês passado,
brasileiros chegaram a expulsar por meio de violência muitos venezuelanos que
viviam na capital. Para agravar o quadro, o único hospital de Pacaraima é
precário e há anos não conta com um centro cirúrgico. Qualquer paciente que
precisa de um atendimento mais complexo é transferido para o Hospital Geral de
Roraima (HGR) de Boa Vista. No local, apenas os partos naturais são realizados
no antigo centro cirúrgico que foi transformado em sala de parto e maternidade.
O hospital também sofre com os apagões e picos de luz de energia, que é
importada do país vizinho. "Os constantes apagões já queimaram algumas
máquinas. Passamos um tempo sem o nosso aparelho para realizar exame de
hemograma", diz. Muitas venezuelanas que moram em Santa Elena de Uairén, a
16 km da fronteira, também buscam os postos de saúde de Pacaraima para fazer o
pré-natal. Desde que engravidou, cruzar a fronteira para o Brasil se tornou
rotina para a venezuelana Andrea Rodriguez, de 20 anos. Moradora de Santa
Elena, a jovem não consegue mais achar medicamentos na cidade venezuelana. A
solução foi usar o sistema de saúde brasileiro. Rodriguez não pediu refúgio nem
residência no Brasil já que relata nunca ter precisado desses documentos para
ser atendida na fronteira brasileira. Agora, com 36 semana de gravidez e muito
perto de dar à luz o filho Jesus André, a venezuelana decidiu ir ao Centro de
Acolhimento gerido pelo Exército brasileiro requisitar uma permissão de
permanência temporária de 60 dias no Brasil. O plano de Rodriguez é viajar, nos
próximos dias, para Boa Vista, para ter o filho na maternidade da capital.
"Além dos hospitais no meu país estarem muito precários, é importante que
meu filho nasça no Brasil para ter prioridade no atendimento brasileiro. Com
ele tendo a nacionalidade, fica mais fácil eu conseguir meus documentos no
Brasil também", diz. O discurso de Rodriguez, repetido por várias outras
venezuelanas, não condiz com a realidade. Imigrantes e brasileiros possuem os
mesmos direitos no atendimento de serviços públicos no país. "É um mito, é
algo que elas criaram na cabeça por filmes, pela questão dos imigrantes que
tentam ir para os Estados Unidos. Mas a gente percebe na conversa que elas
realmente acreditam que terão alguma prioridade tendo o filho aqui",
explica uma enfermeira de um dos postos de saúde da cidade (El Pais)
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