quinta-feira, outubro 16, 2014

PJ investiga ajustes diretos da Gaianima feitos em ano de autárquicas

"Esta história podia resumir-se assim: era uma vez um partido e uma consultora de comunicação escondidos com Gaia de fora. Mas isso seria também tentar antecipar todo o enredo, cujo desenlace deverá ser escrito em coautoria pela PJ e pelo Ministério Público no âmbito das investigações em curso relacionadas com Luís Filipe Menezes, a Câmara de Gaia e as campanhas eleitorais do PSD. O que se sabe desta história nem sequer vem de longe. Começa a 24 de abril do ano passado, dia em que foi oficializado, por Ricardo Almeida, então administrador da empresa municipal Gaianima (à época em extinção), um par de ajustes diretos com duas agências de comunicação gémeas: Next Power e Boston Media. A ideia era a mesma, com variantes: por cerca de 70 mil euros divididos em oito prestações mensais, a primeira faria as despesas de assessoria da própria Gaianima, a produção de cinco filmes sobre a dita, além da comunicação das 24 horas de Karts e do evento Porto Wine Fest. Por seu lado, a Boston Media assegurava, através de outro contrato, a divulgação noticiosa dos eventos acima descritos, a cobertura de todas as conferências de Imprensa da Câmara de Gaia e, pelo menos, uma atividade semanal do município. A empresa gizara ainda um mix editorial e comercial, tendo como barriga de aluguer o Porto Canal. A Boston garantia um elemento da Gaianima no painel de comentadores da estação no mínimo uma vez por mês e a presença de Gaia nos programas Porto Alive (cada 15 dias), e Territórios (uma vez por semana). O contrato, neste caso, valia menos, mas continuava a ser, no mínimo, simpático: 48 mil euros + IVA, também dividido por oito prestações mensais. Juntos, como então noticiou o Público, os ajustes diretos somavam cerca de 130 mil euros.
Gaia amiga
No que vai de romaria, já deve ter notado coincidências. Mas vamos a outras. A NextPower e a Boston Media não são gémeas por acaso. A Boston é dona da Next-?power e ambas pertencem a João Paixão Martins, administrador executivo da LPM, a agência do pai, Luís Paixão Martins, um dos mais influentes consultores de comunicação. Do universo LPM faz ainda parte Rodrigo Moita de Deus. Diretor de projetos da LPM e diretor-geral da NextPower, Rodrigo não é propriamente conhecido, verdade seja dita, por simpatizar com Menezes, mas fez parte da direção de Pedro Passos Coelho no PSD, onde também já estava o vice-presidente do partido Marco António Costa, que tutelou a Gaianima. Nas últimas autárquicas, enquanto a LPM trabalhava oficialmente para a campanha do socialista Manuel Pizarro, no Porto, a NextPower e a Boston Media viravam-se para Gaia. A NextPower, de resto, chegou a mudar o seu domicílio para o concelho. ?A presença de empresas da órbita da LPM em Gaia nem sequer é virgem: a consultora já trabalhara para a Amigaia, a agência municipal presidida pelo antigo embaixador e ex-ministro Martins da Cruz. Menezes criou-a para atrair investimento estrangeiro para o concelho. Propaganda não faltou, os milhões prometidos é que não se viram. Os ajustes diretos com a Gaianima para a prestação de serviços entraram em vigor no mesmo dia e tiveram a mesma duração. Por coincidência, abarcaram o período em que o ex-autarca de Gaia se propôs atravessar o Douro, deixando para trás 16 anos de presidência e quase 300 milhões de dívidas, para tentar conquistar a Câmara do Porto, que, governada ao estilo Tio Patinhas, se tornara cofre-forte apetecível. Na lista de Menezes, com papel decisivo na estrutura de campanha, estava Ricardo Almeida, líder da concelhia "laranja" do Porto. Em 2011, aceitara o convite de Marco António Costa, então "vice" do executivo camarário, para presidir à Gaianima.
Caso de polícia
Como se sabe, Menezes perdeu o combate autárquico do Porto. Pizarro, o cliente da LPM, também. Mas os contratos da Gaianima com a NextPower e a Boston Media chamaram a atenção da PJ, que solicitou os processos à Câmara de Gaia há meses, no âmbito de uma investigação que os media cunharam entretanto com o nome de Gaiagate. Os casos de polícia são vários e incluem suspeitas de terem sido usadas entidades públicas e dinheiro dos contribuintes para financiar as campanhas do PSD, no caso em Gaia e no Porto. Nos dois ajustes diretos da Gaianima que a VISÃO tem vindo a referir algo nasceu torto. De acordo com pareceres jurídicos solicitados pela atual administração, a empresa não poderia ter celebrado os contratos por se encontrar em fase de liquidação. Ricardo Almeida discorda: "Todos os contratos assinados por mim e pelo dr. Angelino Ferreira vinham com o parecer dos serviços jurídicos da Gaianima e nunca assinámos nada com a consciência de estar a cometer uma ilegalidade".
Há ainda outra curiosidade: os contratos não foram cumpridos na íntegra. No caso da Boston Media, e segundo a versão oficial, não foi prestado qualquer serviço, nem terá sido efetuado qualquer pagamento. Rodrigo Moita de Deus, que enviou à VISÃO as respostas em nome das duas empresas, justifica o sucedido pelo facto de a Gaianima ter "cancelado diversas ações e eventos", entre os quais as 24 horas de karting, "deixando por concretizar grande parte do caderno de encargos. Acabamos por cobrar apenas uma parte dos honorários inicialmente contratados". Segundo Rodrigo, NextPower e a Boston já tinham prestado serviços à Gaianima em 2011 e 2012. Ricardo Almeida, porém, garante que o contrato do ano passado com a Boston "foi anulado por incumprimento da referida empresa". A carta onde Ricardo justifica a decisão tem a data de 1 de outubro de 2013, ou seja, dois dias depois das Autárquicas em que o PSD perdeu Gaia para os socialistas e Menezes falhou a conquista do Porto.
Segundo os seus próprios documentos, a NextPower recebeu mais de 20 mil euros da Gaianima, tendo reclamado, em carta enviada a 11 de abril deste ano, o pagamento de faturas vencidas num montante superior a 50 mil euros. Dias depois, a 24 de abril, António Borges, administrador liquidatário da Gaianima, solicitou à NextPower o envio da documentação comprovativa dos trabalhos prestados. "Esta entidade", justificara, "não poderá proceder ao pagamento de serviços relativamente aos quais não possui qualquer evidência da sua realização". Na missiva, o administrador lembrava, além disso, que a Gaianima só poderia realizar pagamentos em conformidade com a Lei dos Compromissos e Pagamentos em Atraso, dando a entender que a administração anterior terá agido fora da lei. Na resposta, a NextPower "esqueceu" as faturas e a ameaça de recorrer à cobrança coerciva da dívida. Dizendo compreender "as dificuldades financeiras da Gaianima" e a "impossibilidade prática" dos pagamentos, dispôs-se apenas a "minorar o seu prejuízo" tentando recuperar o IVA já suportado. Para isso, só precisava, afinal, que, no prazo de 45 dias, a Gaianima carimbasse, assinasse e devolvesse à agência as notas de crédito entretanto enviadas. O assunto ficou por aí. Até ver.
Contactada pela VISÃO, a presidência da autarquia confirmou oficialmente que os contratos da Boston e Nextpower "foram analisados no âmbito da auditoria realizada à Gaianima", deixando antever que caberá ao Ministério Público pronunciar-se sobre o conteúdo dos mesmos, "nomeadamente quando falta a evidência da efetiva prestação de serviços". Indignado por ver a LPM associada a notícias do Gaiagate e insurgindo-se, no seu blogue, contra um suposto "jornalismo de cozinhados" praticado pela VISÃO, Luís Paixão Martins jura que não trabalhou para a campanha autárquica de Menezes no Porto. Nem para a do PSD em Gaia, presume-se. Resta saber se o seu universo de empresas andou lá perto. De que forma e com que motivos. As suspeitas existem" (texto do jornalista Miguel Carvalho da VISÃO, com a devida vénia)