“Stanley nasceu
primeiro e, como mais velho dos três, o pai escolheu-lhe o nome em homenagem ao
lendário Stanley Matthews. Era claro que Joop, antigo futebolista medíocre,
queria o filho a driblar como o inglês driblara durante 30 anos. E durante
alguns (poucos) anos, o miúdo foi o projeto pessoal de Joop, até ser trocado
por outro, mais novo e talentoso do que ele e de nome Marcel. Acontece que
Marcel era um nome que a avó não entendia e a família optou então por Marco.
Marco van Basten. Ninguém nos pode magoar como a família e foi neste clima de
tensão que o mais gracioso e letal dos pontas-de-lança nasceu há 50 anos: Joop,
um pai obcecado que lhe exigia a perfeição pela repetição; Lyne, a mãe,
ex-ginasta, igualmente competitiva, de quem ele terá herdado o equilíbrio que
sempre nos pareceu impossível num tipo com quase 1,90m e 90 kg. Da infância e
da adolescência, contam-se três episódios marcantes: o dia em que Willie lhe
morreu aos pés, quando o gelo onde estavam quebrou e os olhos do amigo se
esvaziaram sob a transparência; os dois AVC da mãe que a deixaram sem memória,
socialmente incapaz e entregue aos cuidados do pai; e o momento em que o médico
Rein Strikwerda lhe disse que tinha de deixar de jogar futebol porque tinha
tornozelos defeituosos. Nessa altura, Marco negociava a sua vontade (e a do
pai) com as dores do corpo (que era só dele) nos escalões jovens do UVV, de
Utrecht, cidade natal dos van Basten. Joop não acreditou naquilo que lhe foi
dito pelo doutor Strikwerda e levou o filho para o maior clube amador da
cidade, o USV Elinkwijk. A lógica era esta: Marco melhoraria fisicamente porque
seria submetido a cargas maiores e enfrentaria gente mais velha. O rapaz deu
nas vistas e Aad de Mos, treinador do Ajax, chegou-se à frente por Marco, que
já fora contactado pelo FC Utrecht. Optou pelo Ajax , “porque se a coisa
corresse mal, podia sempre bater à porta do FC Utrectht”. Acertou à primeira.
O DELFIM
No Ajax, forjou-se
uma parceria improvável. Marco van Basten tinha 17 anos e estava a começar;
Johan Cruijjf tinha 35 anos, e já muitos o davam como acabado. Entre eles havia
uma geração, mas depressa o primeiro se tornou protegido do segundo. Cruijff
achava-o dotado, talentoso mas mole. Quis endurecer-lhe o caráter, torná-lo
provocador e arrogante. “Se fores vulnerável, serás magoado”, disse-lhe. A
longo prazo, o instinto assassino entranhou-se-lhe. Mas, antes, em abril de
1982, van Basten estreou-se no campeonato holandês, com 17 anos. O momento foi
poético: Marco substituiu Cruijff contra o NEC e marcou um golo. Estava
encontrado o sucessor. Nos anos seguintes, van Basten foi refinando a pontaria:
em 1983/84, 28 golos; em 1984/85, 22 golos; em 1985/96, 37 golos; em 1986/87,
31 golos, um deles o mítico pontapé de bicicleta contra Den Bosch. Não havia limites para aquele homem a quem chamavam o Cisne
de Utrecht: tinha estética, sentido de oportunidade, capacidade de choque,
controlo, agilidade e remate. Era como Muhammad Ali em botas de pítons. Mas as
chuteiras e as meias de van Basten escondiam tornozelos imperfeitos: a 7 de
dezembro, levou uma pancada no direito e a 15 de dezembro foi operado ao
esquerdo, que sempre o atormentava. Ele era ambidextro e tinha agora os dois
pés condenados.
A pressão de Cruijjf
(agora seu técnico) para o ter em campo forçou-o a regressar antes de tempo,
com os pés ligados e infiltrados, em nome dos golos e dos títulos. Um
cabeceamento certeiro do Cisne frente ao Lokomotiv Leipzig deu o primeiro
troféu internacional ao Cruijjf-treinador, em 1987: a Taça das Taças.
O TRIDENTE
HOLANDÊS
Silvio Berlusconi
tem muitas coisas e uma delas é a astúcia. E quando o polémico
político-presidente-de-clube-magnata-dos-media decidiu que tinha chegado o
momento de pôr o AC Milan no lugar, fê-lo à grande. No verão de 1987, trouxe os
holandeses Gullitt (do PSV), van Basten (do Ajax), Donadoni, Ancelotti e pô-los
ao lado Maldini, Baresi e Costacurta; em 1989, chegou o terceiro elemento
laranja, Rijkaard. Para os comandar, Berlusconi contratou Arrigho Sacchi - e a
equipa dominou o planeta durante três épocas. Nesse período, van Basten esteve
e não esteve. Foi operado ao tornozelo direito em 1987 e perdeu metade dessa
época entre convalescenças e recaídas. Marco foi sendo lançado, como um
veterano da NBA, nos jogos importantes porque, mesmo trôpega, a sua presença
significava pontos. A 1 de maio de 1981 selou a vitória (3-2) diante do
Nápoles, que garantia o título ao AC Milan. Depois, teve os seus bons momentos:
em 1988/89 marcou 19 golos em 33 jogos e ganhou a Taça dos Campeões (4-0, bis
van Basten e de Gullitt) ao Steaua de Bucareste; e em 1989/90, fez 19 em 26
jogos e conquistou novamente a Taça dos Campeões (1-0, por Rijkaard), ao
Benfica; as três Bolas de Ouro (1988, 1989 e 1992). E, enfim, teve os seus maus
momentos: em 21 de dezembro de 1992, foi outra vez operado (a quarta cirurgia)
e da sua carne retiraram dez pedaços de osso do tornozelo direito. Jogou dois
jogos da liga italiana, participou na final da Liga dos Campeões (perdida para
o Marselha). A carreira acabara e ele tinha apenas 28 anos – na idade em que os futebolistas atingem
a maturidade, o corpo fê-lo cair de tão podre que estava.
A LARANJA MECÂNICA,
PARTE II
Há golos que nos
ficam para sempre na memória porque foram feitos no sítio e na altura certas. E
Marco van Basten ficará para sempre ligado ao Europeu-1988. Magoado, como
sempre, Rinus Michels optou por lhe dar o número 12, o primeiro suplente a
entrar, e ofereceu a titularidade a John Bosman. Mas van Basten mudou o curso
da história daquela seleção e daquele campeonato: hat trick à Inglaterra (3-1),
golo à Alemanha (2-1); e o cruzamento para o cabeceamento potente de Gullitt e
o remate impossível contra a URSS na final (2-0). De um ângulo morto, van
Basten tornou-se imortal.
O TREINADOR
Marco van Basten foi
um jogador amargurado pelas lesões e pouco dado a dar-se e a entregar-se a
amizades. E apesar de voar como um cisne não foi um anjo da guarda: esmurrou
Veloso e partiu-lhe um dente ,porque não gostou da marcação no Portugal-Holanda
de 1990; foi expulso por cotoveladas e chegou a atirar areia para os olhos dos
adversários, para os confundir. Mas foi como treinador que se revelou a personalidade
conflituosa: Edgar Davids, van Nistelrooy, van Bommel e Seedorf, na seleção
holandesa, destruíram-no publicamente, acusando-o de não ter palavra, de ser
inflexível e arrogante. É um treinador mediano: 3.º classificado com o Ajax em
2008/09, oitavo e quinto com o Heerenveen em 2012/13 e 2013/14 e pelo meio foi
o trunfo eleitoral nas primeiras eleições em que Bruno de Carvalho participou.
Hoje, está num limbo: sofre de palpitações no coração, que o forçaram a abdicar
o cargo de técnico principal do AZ a favor do seu adjunto. Diz que nunca mais
liderará uma equipa. Talvez tenha acabado antes de tempo. Outra vez” (texto do
jornalista do Expresso Diário, PEDRO CANDEIAS,com a devida vénia)