quinta-feira, janeiro 02, 2014

Opinião "A maldade, o absurdo e a liberdade"

"À custa de tudo querermos saber, acabamos mudados! Não há, creio eu, melhor definição para o acto cultural, nem tão violenta execração para quem atenta contra a experiência do espírito.
Quanto mais avançamos em direcção ao âmago, mais sabemos de tudo o que nos rodeia e melhor entendemos o estranho mecanismo dos que nos traem. Não é de estranhar, portanto, que desde sempre todos os grandes reis tivessem por perto alguém que soubesse, ou melhor, que sentisse a vibração da cultura do povo, e que visse nela os avisos que o futuro trazia às noites dos poderosos. Hoje, tal ainda se passa, mas de uma forma mais recatada e mais perigosa, porque mais perversa, sem preocupações de bem!
A diáfana maldade de um governante assume em cada mentira, o medo do sentido libertador deste foco interior que se chama arte, que tem na cultura a possibilidade do regresso à interdependência entre o homem e todos os demais fenómenos que o envolvem. Não é prudente ver na cultura o erro da história. Não é bonito excluir um povo dessa função bijectora que liga o homem ao universo.
Não é inteligente limitar um povo que está a caminho de qualquer coisa, porventura de se cumprir, como pede Pessoa. Não é bom agachar uma nação, para a cobrir de um negro invisível, como se o susto pudesse alguma vez dar uma perspectiva risonha do futuro de um país europeu que tem no seu PIB o maior índice na cultura. O augúrio torna medonha a vida de um governo incompetente, e mostra a inevitabilidade da sua morte. Os tiros no escuro das palavras sem sentido, das promessas controversas, das opções inúteis, ameaçam mais quem manda do que quem sofre, como se o carcereiro fosse mais preso do que o prisioneiro. Porque a desfaçatez teve sempre a nobreza de ensinar a questionar tudo, e a de nos fazer perceber quem somos, o que sentimos e o que fazemos no combate contra aquilo que não queremos.
Parece-me pouco lógico separar-se a cultura de um povo, da forma como esse povo é governado. Aquilo que se destrói no seio das gentes, está destruído em quem ordena. Aquilo que se cria em cada palco, em cada oficina ou em todas as artes, expõe inevitavelmente a decadência mental de quem manda, ao remetê-lo para a impossibilidade de estarmos todos, hoje, aqui e agora... parados. Porque, parar é morrer!
Tenho pena, mas já não posso fazer nada pelos nossos governantes. Tenho pena que eles não saibam que o benefício da cultura, dá mérito a quem o faz. Que gratifica historicamente quem a defende. Que enriquece e honra quem por ela combate. Porque a cultura ensina a desprezar o que não presta, em vez de criar generalizadamente angústias, terrores, ódios e afastamentos de tudo o que possa ser solidariedade, amor ao próximo... e paz de espírito. Apesar dos seus abismos, a cultura é ainda a única e fresca sensação de proximidade da fonte. É aquilo que nos ensina a ver no mesmo prato o bem e o mal, justapondo a qualidade de um valor positivo à respectiva desvalorização.
Há que mostrar aos governantes que também sabemos como o comportamento humano é inseparável da sua própria biologia, o que significa que cada cidadão não consegue ser assim tão independente como parece, sobretudo no que diz respeito às suas acções em sociedade, ou mesmo em família. Por isso as cargas que recebemos ao longo do dia, e em muitas das noites televisivas da cidade, despoletam reacções incontroláveis da nossa parte, e se a essas influências juntarmos outras especialmente dirigidas à nossa destruição, ou ao nosso fecho mental - o que é a mesma coisa - temos aí o enquadramento perfeito para a instalação dos medos, dos vícios, do crime e de tudo aquilo a que eu chamo velhice, mas que, volto a sublinhar, não obriga a que alguém que possua todas as condições mentais para ser um criminoso tenha obrigatoriamente de o ser. É que todos nós temos livre-arbítrio, e é uma grande maldade recusar-se esse direito.
É uma maldade exaltar o sacrifício em vez da criatividade!
É uma maldade proclamar o cativeiro em vez da revolta!
É uma maldade explorar-se a esperança!
Só o prazer pelo absurdo consegue explicar um governo que não governa, a legalização do desmando nos gastos públicos, as promessas por concluir, as negociatas, os benefícios a quem não merece, os compadrios, as ordens que saem dos ministérios e que morrem nas secretarias, os IVA demolidores sobre classes profissionais assombradas por um fisco faminto e desvairado, pintado de cordeiro, que de mão dada com uma recém desperta Segurança Social, raspa os últimos tostões dos bolsos de quem trabalha intermitentemente. E a cultura a dissipar-se...
Só o absurdo explica tamanha maldade!
Mas nem o mais absurdo decifra por que chegámos do que fomos, para sermos aquilo que somos, quais cativos fraquejados, porventura esquecidos do sonho que nos liga à terra-mãe e à vida. Anima-me ainda a fantasia, apesar de tudo, de que o desprezo pela cultura torna inesgotável a força das ideias, porque nos transforma em missão. Portugal tem de se determinar, de se responsabilizar, porque o mundo também faz parte dele! Não se compare o português à avestruz. É um erro político!
O meu país não apareceu para ser destruído. Ninguém pode adquirir o que não possuiu ao nascer. Portugal transformar-se-á seguramente numa bela nação, mas não através das actuais e ridículas formatações políticas, da auto-flagelação improfícua, dos sacrifícios familiares, ou das ‘troikas' que nem sequer sabem o que é... erudição.
Eu acredito profundamente na mudança, mas nunca existiu metamorfose civilizacional sem cultura. Não há vida sem beleza!
Porque, se em vez de lamentarmos esta nossa pequenez, cuidarmos mais e melhor do nosso interior, de forma a nos afastarmos daquilo que economicamente nos condiciona e nos isola, e tornarmos cada vez mais vivo aquilo que é a nossa principal riqueza, isto é, a cultura, eis aí a nova restauração. A verdadeira realidade humana só é concebível numa perspectiva de bem, isto é, num processo libertador, e portanto, nunca num contexto de escravidão, de sofrimento e de tristeza, como o que actualmente vivemos neste início do século XXI. A civilização e a cultura são fenómenos colectivos, o que lhes dá a prerrogativa de serem uma fonte de poder em permanente renovação, talvez porque ao se identificarem com a natureza, geram uma escala de valores que supera os objectivos meramente materiais, para se situar definitivamente na importância de sermos cidadãos amadurecidos, justos equilibrados e cultos, para que à custa de tudo podermos saber, acabemos mudados" (texto de Ruy de Carvalho, Actor, Económico, com a devida venia - É uma das referências do teatro português. Estreou-se em 1947,  no Teatro Nacional, interpretou autores como Molière, Tennessee Williams, Bernard Shaw, Anton Tchekov, entre outros. Foi presidente do Conselho Nacional para  a Política da 3.ª Idade e mandatário da campanha de candidatura de Pedro Santana Lopes à Câmara Municipal de Lisboa e da campanha de candidatura de Carmona Rodrigues em 2007)