Li hoje no Público, num texto da jornalista JOANA
GORJÃO HENRIQUES que "o PÚBLICO vai em breve introduzir um sistema de
pagamento dos conteúdos digitais e inicia hoje uma série sobre os dilemas
actuais do jornalismo. Hoje falamos de Jeff Bezos: a revolução Amazon será
replicável no jornalismo? Quando, no início de Agosto, o fundador da Amazon
anunciou que ia comprar o jornal Washington Post (WP) à família Graham, vários
comentadores escreveram linhas entusiastas. Afinal, Jeff Bezos tinha
revolucionado o retalho online, mudado a forma como compramos, abrindo a porta
para a expansão do consumo de letras em formato digital, quando lançou o
Kindle. A enfrentar uma crise profunda no seu modelo de negócio, e a precisar
de quem vire as estratégias do avesso para que dê lucros, a indústria do
jornalismo em papel recebeu a notícia com optimismo.
Se Jeff Bezos, 49 anos, fez magia uma vez, por que não
seria capaz de repetir a proeza? As expectativas de que ele transforme o WP num
negócio viável vão muito além do próprio jornal. Muitos esperam que, ao salvar
o WP, Bezos encontre a poção mágica que outros possam copiar. O cenário do WP é
parecido com o de muitos jornais: tem vindo a perder receitas (44% nos últimos
seis anos, segundo a agência Bloomberg), a reduzir leitores de papel (passando
de 768 mil cópias em 2002 para 481 mil no ano passado, segundo a agência AP) e
a emagrecer a redacção. Sobre a aquisição Bezos escreveu: "A Internet está
a transformar quase todos os elementos do novo negócio: a encurtar os ciclos
noticiosos, a acabar com as fontes de receitas com que se contava e a abrir
espaço a novos tipos de competição, alguns com custos de agregação de notícias
muito baixos ou quase nulos." "Não há um mapa e desenhar um caminho
para o futuro não vai ser fácil. Vamos ter de inventar, o que significa que
vamos ter de experimentar."
Mas não adiantou pormenores sobre planos concretos. E
no WP, o director executivo Martin Baron respondeu-nos que era muito cedo para
falar do tema. O que podemos esperar do homem que pagou 250 milhões de dólares
(cerca de 180 milhões de euros) pelo WP, apenas 1% da sua fortuna pessoal?
Porque comprou ele o WP? E porque é que este negócio é visto com tanto
optimismo?
"Ele claramente adora o grande jornalismo, e essa
foi uma das razões por que comprou o WP", diz-nos por email Henry Blodget,
director do Business Insider, um site de notícias económicas no qual Bezos tem uma
participação financeira. Com mais de 25 milhões de leitores por mês e um
crescimento rápido de receitas e leitura, o Business Insider era o único meio
de comunicação onde Bezos tinha investido até agora. Porém, ele não tem um
papel activo na empresa, diz Blodget: "Adorávamos ter mais dos seus
conselhos e reflexões, mas ele está ocupado a gerir a Amazon!"
As motivações de Bezos para comprar o WP não foram
muito diferentes das de outros, comenta-nos a partir de Londres George Brock,
director do Departamento de Jornalismo da City University London:
"Prestígio, poder, a capacidade de resolver problemas, a oportunidade de
ser visto a resolver problemas que não foram resolvidos por outras pessoas, um
novo desafio."
Por outro lado, se pusermos as lentes do cinismo,
diz-nos ao telefone do Brasil Pedro Dória, editor executivo de O Globo, podemos
ver esta aquisição como uma estratégia que nada tem a ver com a sobrevivência
do jornalismo. Isto, porque há muitas questões como a privacidade e a
espionagem que preocupam a população americana e fazem com que a indústria da
tecnologia esteja no centro das atenções do Congresso americano: "Pode
começar a vir regulamentação. Até hoje as empresas de Internet agiram com muita
liberdade e sempre fizeram o que bem entenderam. Existe a possibilidade de que
o cálculo de Bezos seja comprar o jornal mais influente de Washington para
ganhar influência política. Todas as grandes empresas, Facebook, Apple, Amazon
estão a gastar muito mais dinheiro em lobby do que jamais gastaram." Porém,
Dória não acredita que tenha sido essa a intenção de Bezos, um homem
"profundamente inteligente" e "um dos maiores inovadores da
história da Internet": "De quantas pessoas podemos dizer que são tão
importantes na revolução da maneira como funciona o negócio como Jeff Bezos
é?"
Blodget, que é também o CEO do BI, diz que falou com
Bezos sobre o negócio ("ele vê algumas semelhanças essenciais entre
comércio e conteúdo"), mas não discutiu as suas opiniões sobre a cobertura
específica ou filosofia. Não faz a mínima ideia dos seus planos para o WP,
presume que aplique alguns dos conhecimentos desenvolvidos na Amazon. "No
princípio, a maioria destes esforços serão provavelmente dirigidos a tentar
fazer os leitores do WP ainda mais felizes. Depois, com o tempo, vai
provavelmente focar-se em fazer com que o modelo de negócio funcione. Bezos tem
um plano maior, a longo prazo, e deverá passar algum tempo com os gestores do
WP antes de pôr as mãos na massa, prevê Rick Edmonds, analista de negócios de
media no Poynter Institute, uma escola de Jornalismo americana. A compra do WP
aconteceu pela sua ligação à palavra escrita, considera. Se não achasse que o
WP teria futuro, não teria avançado, acrescenta, ao telefone a partir da
Florida, este professor que não acredita que Bezos esteja à espera de retorno
"em 18 meses" - a forma de gerir a Amazon com uma mentalidade de
longo prazo deverá ser transposta para o WP. A prioridade de Bezos na Amazon
foi pôr os clientes em primeiro lugar, insiste Blodget, e os lucros, a performance
financeira a curto prazo e outros factores foram muito menos importantes. Essa
filosofia permitiu à Amazon tornar-se a líder do comércio online e Blodget
acredita ser a que ele vai aplicar ao WP, fazendo dos leitores o foco
principal. Aliás, o próprio Bezos disse isso numa entrevista ao WP: "Há
três grandes ideias na Amazon que mantemos há 18 anos e são a razão do nosso
sucesso: pôr os clientes em primeiro lugar, inventar e ser paciente. Se se
substituir "cliente" por "leitor", essa abordagem, esse
ponto de vista pode ser também bem sucedido no Post."
George Brock reconhece que as expectativas em relação
a Bezos são demasiado altas e desajustadas e há a esperança de que, se ele
conseguir resolver os problemas no WP, a sua fórmula seja transferida e copiada
por outros meios. "Era claro que o jornal não ia a lado nenhum com a
empresa em que estava. Um novo dono foi visto como um desenvolvimento positivo,
e a chave para encontrar o modelo do futuro é a experimentação. Bezos é muito
bom a experimentar."
Ao contrário de muitos comentadores, Zach Seward,
editor do Quartz, um site de notícias online do Atlantic Media e professor de
Jornalismo na New York University, não viu com optimismo este negócio, antes
pelo contrário, confessa-nos. "O WP pertencia a uma empresa familiar que,
acreditava-se, protegeria o jornal a todo o custo, mas a verdade é que teve de
o vender e isso deve ser visto como uma falta de confiança." Depois,
acrescenta, é uma ilusão pensar que o sucesso de Bezos noutras áreas será
transposto para outros negócios: "Lá porque ele conseguiu "uma
magia" numa área não significa que consiga noutra."
Pode existir mais vontade de acreditar na poção mágica
do que razões concretas que o evidenciem, admite Rick Edmonds, mas, seja como
for, é encorajador ver alguém de fora a considerar que existe potencial num
negócio de media. "É possível que ele tente várias coisas que não são
necessariamente bem sucedidas. O problema pode ser maior e uma única pessoa
pode não conseguir resolvê-lo." Bezos teve alguns negócios falhados,
lembraram alguns na altura da aquisição, mas isso é algo que Edmonds acha
natural acontecer em empresas digitais, agressivas. "Ter alguns negócios
falhados não é mau, é o que acontece quando uma empresa põe a ênfase em novas
ideias."
Quanto à garantia de independência do WP, o director
do Business Insider não vê Jeff Bezos a envolver-se nos conteúdos, da mesma
forma que não se envolve nos detalhes do que a Amazon vende. "Desde que o
Post esteja a produzir conteúdos que os leitores adorem, acho que ele vai
deixar as coisas andar (mas, se estiver a produzir muito conteúdo pelo qual os
leitores não se interessam, é provável que sugira que parem de o fazer)".
Pedro Dória também acredita que ele vai manter a "separação entre Igreja e
Estado" - entre o negócio e a redacção -, até porque é um curioso que
"valoriza muito a informação de qualidade", "entende a
dificuldade de produzir jornalismo e o quão fundamental é para a manutenção de
uma democracia".
Henry Blodget é, como Bezos, um optimista em relação ao
futuro e diz mesmo que o jornalismo entrou "numa idade de ouro".
"O mundo nunca esteve tão bem informado." A questão é que algumas
publicações em papel continuam a ter problemas, em parte devido "às suas
más decisões" e "à sua atitude sobranceira", "mas a
indústria em geral está bem".
Com ou sem Bezos, também Zach Seward é um optimista em
relação ao futuro do jornalismo - menos em relação aos jornais impressos. E
George Brock igualmente: "Apesar de ninguém ter resolvido o problema de um
modelo de negócio para as publicações de notícias na era digital, a quantidade
de energia aplicada na tentativa de resolver esse problema, e as experiências
que são feitas, é muito maior do que o que as pessoas no jornalismo mainstream
parecem acreditar. O jornalismo é muito diverso e está a mudar muito
rapidamente, e as pessoas estão a ter que inventar soluções para novos
problemas. Os media no século XX não tinham que se preocupar com modelos de
negócio porque a publicidade era a fonte de receita, mas essa era acabou."
Bezos deixou duas ideias que podem apontar para as
estratégias que virá a desenvolver. Uma é que acredita que, a longo prazo, os
jornais impressos vão tornar-se um produto em extinção, consumidos por uma
ínfima parcela de leitores; a outra é que as paywalls irão acabar. É verdade
que as pessoas não parecem estar dispostas a pagar por notícias, que os media
devem tentar apostar na diversidade de fontes de receitas (como, por exemplo,
organizando conferências, fazendo eventos, etc.), analisa Brock, que acaba de
editar Out of Print: Newsapers, Journalism and the Business of News in the
Digital Age. Mas sublinha: "Não se pode perceber o que é que as pessoas
estão dispostas a pagar, se não se estiver absolutamente confiante de que
aquilo que se está a produzir é distinto e acrescenta valor ao consumidor a
quem se está a pedir para pagar." Se é Bezos quem irá encontrar soluções é
uma incógnita. O dono da Amazon deixou claro que isso não será obra de um homem
só. "Don [Graham, o antigo dono do Post] foi muito útil nas entrevistas
quando disse: "Mr Bezos é um homem de negócios, não um mágico"",
contou ao WP. "Eu agradeci-lhe por isso. Na minha experiência a forma como
a invenção, a inovação e a mudança acontecem é no trabalho de equipa. Não há um
génio sozinho que resolve o problema e envia a fórmula mágica. Estuda-se,
debate-se, faz-se um brainstorming e as respostas começam a aparecer. Demora
tempo. Nada acontece rapidamente. Desenvolvem-se teorias e hipóteses, mas não
se sabe se os leitores vão responder. Fazem-se várias experiências o mais
rapidamente possível. Rapidamente, na minha cabeça, são anos."