"Puxemos o filme seis meses para trás: "Só peço que quem tem o meu filho o entregue à polícia ou ao centro de saúde. Ou o deixe em algum lugar que a gente vai buscar. Não queremos remorsos de ninguém, nem chatear ninguém, só queremos o nosso bebé de volta a casa para junto dos pais, dos avós e dos irmãos." Foi uma mãe serena que fez este apelo, a 21 de janeiro deste ano, 48 horas depois de o filho Daniel desaparecer. Numa fase inicial, todos se interrogaram sobre as lágrimas que não caíam do rosto de Lídia Freitas - que mãe não chora quando a privam do seu bem mais precioso? - mas logo se atribuiu a ausência de emoção à vida difícil que levara até então. "Já chorou tudo na infância", defendeu-a então o sogro, Agostinho Abreu, em declarações à revista ‘Domingo'. Em entrevista a um programa de televisão, já depois de Daniel ter aparecido na levada, Lídia voltou a deixar as pessoas surpresas ao dizer: "A primeira coisa que me passou pela cabeça foi que o Daniel estava morto" - uma suspeita impossível de caber no coração de qualquer mãe, porque mãe (a Psicologia é unânime) mantém a esperança mesmo que confrontada com evidências da morte de um filho, o que não foi sequer o caso. Na altura também se estranhou que se fechasse em casa enquanto os vizinhos procuravam a criança. E que só tenha acedido a contactar as autoridades três horas após o suposto rapto. Na sexta-feira dia 20 de junho, as incongruências do desaparecimento de Daniel começaram a fazer algum sentido, embora se esteja ainda longe de ter todas as peças do puzzle. Nesse dia, a mãe e o pai da criança (bem como outro indivíduo não identificado) foram ouvidos na Polícia Judiciária. Lídia, que confessou à PJ que tentou vender o filho por 50 mil euros, ainda haveria de ser interrogada mais uma vez antes de ser constituída arguida, detida e levada para o Estabelecimento Prisional da Cancela, de onde entretanto já foi libertada. A mãe de Daniel já não vive no telheiro para onde foi morar aos 16 anos, na altura em que se juntou com Carlos. A nova casa, que partilha com o namorado (com quem foi viver entretanto e que está igualmente na mira da PJ), fica na localidade de Prazeres (que também pertence à Calheta) e não é muito diferente daquela onde vivia com os sogros e o marido: é um esqueleto de cimento de uma moradia que nunca foi acabada. Não tem água nem eletricidade, tão-pouco janelas. Ali - terá confessado a filha mais velha, Mariana, ao pai - não há casa de banho nem camas, dorme-se no chão de terra, sobre uma manta. A miséria é a mesma, só mudou de sítio. Miséria na Calheta Lídia Freitas, 24 anos, indiciada pelo crime de tráfico de pessoas (que a provar-se dará uma pena de prisão de três a dez anos), não nasceu na Calheta, é do Estreito. Abandonada pela mãe, uma alcoólica que volta não volta é vista a dormir nas ruas do Funchal - e agora reapareceu para dizer que não acredita que a filha tenha tentado vender o neto que ela nunca conheceu e, também, para a chamar de mentirosa -, nunca privou com o pai, que morreu na África onde vivia. Lídia e as irmãs - que agora a vieram acusar de ter inventado esta ‘história' da venda para ser famosa - passaram a infância a saltar de família em família de acolhimento. O irmão Paulo esteve institucionalizado na outra ponta da ilha. A mãe de Daniel frequentou a escola mas cedo apresentou dificuldades de aprendizagem - embora nunca tenha sido acompanhada. Chegou a ter um emprego fora de casa - num supermercado -, algo que não aconteceu com o pai de Daniel, um agricultor de subsistência que toda a vida viveu do que dá a terra. "Ela é mais desenrascada do que ele, que nem se apercebeu que a mulher tinha um telemóvel topo de gama [600 euros] e muito menos sabia que podia valer tanto dinheiro. Para ele, que nem televisão tem, aquilo era uma máquina como outra qualquer. O Carlos é mais humilde, reservado", confidencia uma fonte que lida com as desigualdades sociais na Madeira e conhece a Calheta em particular. "As pessoas daqui estão a sentir-se enganadas. Porque ajudaram com o que podiam, solidarizaram-se com a família e agora acontece isto. Eu própria defendi a mãe quando o Daniel desapareceu, porque achei que não se podia desconfiar de uma família só porque é pobre ou vive na miséria, porque aquela família é o retrato de muitas famílias madeirenses. Choca-me que tenha tentado vender o filho. Uma coisa era o que se passava antigamente, em que as famílias com menos posses entregavam as crianças a pessoas que pudessem cuidar delas - a quem ficavam a chamar ‘padrinhos' - mas nunca perdiam o contacto com elas, isto é completamente diferente. Se é verdade, houve uma intenção criminosa por parte da mãe", acrescenta a mesma fonte. Do que a terra dá Sinalizados pela Segurança Social, Carlos e Lídia nunca foram acusados de maus-tratos aos filhos, Mariana e Daniel. O agregado familiar era - até Lídia sair de casa para ir viver com o namorado, Roberto Carlos - constituído por oito pessoas. Vivem do que a terra dá e do rendimento de inserção social de 300 euros para fazer frente às despesas básicas. Na altura em que Daniel desapareceu - num domingo em que a família se juntara na casa dos padrinhos para um almoço - somaram-se as promessas de ajuda. O Instituto de Habitação da Madeira anunciou que apoiaria a recuperação do casebre onde vivia a família de Daniel mas esse apoio acabou por não se concretizar, embora o presidente do Instituto já tenha vindo dizer que uma nova casa será atribuída a quem ficar com a tutela das crianças. Lídia terá, por seu turno, recusado todas as propostas de emprego que lhe foram feitas na sequência do desaparecimento (e posterior aparecimento) do filho. O menino esteve desaparecido durante três dias e foi encontrado por levadeiros na sua rotineira tarefa de distribuição de água de rega, num matagal junto à levada, a três quilómetros da casa de onde desapareceu e muito perto da casa do atual namorado de Lídia, o que intrigou a Judiciária. Na altura, no Hospital Central do Funchal, onde o menino esteve internado para exames de diagnóstico, o pediatra que o observou considerou "muito difícil e intrigante" que a criança tivesse sobrevivido sozinha durante tanto tempo exposta ao frio. As fraldas também tinham sido trocadas, o que levou logo a crer que Daniel tinha estado com um adulto. É essa pessoa que a PJ procura. Lídia teria a intenção de vender o filho a um casal abastado de madeirenses emigrados na América do Sul, mas a versão terá entretanto mudado - o destino final de Daniel seria, afinal, Inglaterra. Indiferente ao caos que abalou a família e deixou o País de olhos postos na Madeira - a segunda vez em meio ano -, a criança de dois anos tem mantido a mesma rotina. As brincadeiras com a irmã no casebre, sob o olhar do pai e dos avós, disfarçam o ambiente que por ali se vive por estes dias. Acusado de violência doméstica pela ex-companheira, Carlos Sousa negou as supostas agressões de que ela o acusa - foi, aliás, a queixa de Lídia que permitiu à PJ realizar novas inquirições. Carlos também rejeitou qualquer envolvimento na encenação de rapto e assumiu que foi ele quem denunciou à PJ a participação da ex-companheira na simulação de sequestro do menino, para posterior venda. Ao ‘Correio da Manhã', lembrou a manhã do dia 22 de janeiro, estava o filho desaparecido há sessenta horas. "Telefonaram às 08h00. Ela viu que o número era da polícia e disse que não ia atender. Que era só para a chatearem, que tinha mais que fazer. Quando lhe disseram que o Daniel tinha aparecido, ela disse logo que não podia ser. Não deitou uma lágrima, parecia até irritada." Para acautelar a segurança das crianças, podem ser adotadas medidas que vão desde a mais drástica - colocação numa instituição - a mantê-las no ambiente familiar com acompanhamento. "A Madeira nunca esqueceu este caso, que abalou todos os conceitos de segurança que sentimos na ilha em relação aos nossos filhos. Precisamos de saber se o que aconteceu ao Daniel foi um rapto ou se foi mesmo a mãe. Só assim poderemos voltar a dormir descansados", justifica uma residente. Certo é que a população da Calheta um dia esquecerá este caso, coisa que Daniel não conseguirá fazer quando crescer" (texto da jornalista do Correio da Manhã, Marta Martins Silva. com a devida vénia)