A sobrevivência ou a miséria de um partido político pode depender dos apoios públicos. Uma boa parte estava no vermelho, mas o jackpot eleitoral de 2024 é bem capaz de ajudar a equilibrar as contas. Num ano sempre a somar, o financiamento dos partidos volta a ser tema e há quem queira mudar uma lei feita em causa própria. A conta já vai em quase 38 milhões de euros só em subvenções para os partidos políticos, anuais e de campanha, mas este valor vai ser ultrapassado com as eleições na Madeira. Isto, sem contar com o orçamento da Comissão Nacional de Eleições (CNE), que já pede mais dinheiro para aguentar tantos processos eleitorais num só ano. A subvenção pública anual vai variar entre os 346 mil euros para o ADN, do sindicalista Bruno Fialho, e os 6,329 milhões para a AD, de Luís Montenegro e Nuno Melo, num total de 20.643.900,20€ por ano, enquanto durar a legislatura. Os valores estão fixados na lei e correspondem atualmente a 3,395€ por voto - o que resulta da fórmula 1/135 x IAS - Indexante dos Apoios Sociais (509,26€), menos 10%, retirados a título definitivo desde 2017, verba a que têm direito todos os partidos com assento parlamentar ou que tenham obtido mais de 50 mil votos.
A este montante acresce a subvenção de campanha, superior a dez milhões de euros no caso das legislativas, a cinco milhões no caso das europeias, e dois milhões no caso da regionais dos Açores, e outro tanto relativo às eleições que vai haver na Madeira, ou seja, um montante global superior a 19 milhões de euros. Também aqui o cálculo é fixado por lei: 20 mil vezes o IAS nas eleições para a Assembleia da República, dez mil vezes o IAS nas eleições para o Parlamento Europeu e quatro mil vezes o IAS nas eleições para as Assembleias Legislativas Regionais (Açores e Madeira).
Assim se chega aos 40 milhões de euros, verba que não
estava prevista no Orçamento do Estado para 2024, pois apenas estavam agendadas
as eleições para o Parlamento Europeu e nada fazia antever a queda de três
governos, um nacional e dois regionais, levando à realização de eleições
antecipadas ou intercalares.
Ganha-pão: subvenções ditam despedimentos e
contratações
As fontes de financiamento dos partidos políticos são
limitadas. De acordo com a lei, são receitas as quotas e outras contribuições
de filiados, contribuições de candidatos e representantes eleitos, angariação
de fundos, rendimentos do património, heranças ou legados, donativos de pessoas
singulares até ao limite anual de 25 vezes o valor do IAS (este ano 12.731,5€)
e as subvenções públicas.
Ou seja, as subvenções públicas são o garante dos
partidos políticos. Quanto mais votos, mais dinheiro. Se o crescimento de um
partido pode ditar novas contratações (casos do Chega ou Livre), a inversa
também é verdadeira: à medida que um partido vai definhando, aumenta a
probabilidade de despedimentos.
Os exemplo são vários. O CDS saiu do Parlamento, mas
nunca perdeu a subvenção anual, assegurada pelos mais de 50 mil votos. Apesar
disso, passar de 24 deputados (592.997 votos) para zero (89.113 votos)
valeu-lhe ter de reorganizar a sua estrutura interna várias vezes nos últimos
anos - só em 2022 a perda de grupo parlamentar significou a saída de 11
funcionários.
O Bloco de Esquerda e o PCP também foram afetados pela
descida do apoio estatal. O BE passou de 19 deputados (550.892 votos), em 2015,
para cinco deputados (282.314 votos), em 2024, e também teve de se reformar por
dentro. Há dois anos, o partido era manchete do Observador por estar a preparar
despedimentos e o fecho de duas sedes, na sequência dos maus resultados
eleitorais e da necessidade de cortar custos.
No PCP as mudanças também têm sido visíveis. A CDU
(coligação PCP + PEV), que em 2015 conseguiu 17 deputados (441.852 votos), tem
agora quatro (205.436 votos). Há dois anos, Os Verdes já não conseguiram eleger
e as consequências para os dois partidos fizeram-se notar. No caso do PCP, o
partido político português com mais património, os resultados líquidos baixaram
de 1,8 milhões em 2021 para menos de 50 mil euros no ano seguinte. O PEV
registou prejuízos de mais de 140 mil euros face aos lucros superiores a 82 mil
euros no ano anterior.
Dez partidos com resultados negativos
Os partidos políticos têm até Maio deste ano para
apresentar as contas de 2023. A ex-presidente da Entidade das Contas e
Financiamentos Políticos, Margarida Salema, diz que "há um hiato de tempo
muito grande entre as contas e a sua publicação". Para ver as contas de um
ano é preciso esperar até Maio do ano seguinte.
Para já, as últimas contas disponíveis são as
relativas a 2022. Dos 23 partidos existentes então (o Nova Direita foi criado
este ano), dez reportaram resultados negativos, um ficou a zeros (Ergue-te) e
outro (Aliança) não prestou contas - um parêntesis para dizer que um partido
pode ser extinto se não apresentar contas três anos consecutivos ou cinco
interpolados num período de dez anos.
O PCTP/MRPP, que perdeu os apoios públicos em 2019
(36.118 votos), depois de anos a viver com a subvenção do Estado, é, sem
surpresa, um dos partidos no vermelho, com resultados negativos de quase sete
mil euros. O PSD, apesar da subvenção anual de mais de 4,6 milhões, teve um
resultado negativo superior a 302 mil euros, quase o mesmo que o Bloco de
Esquerda, apesar da subvenção pública anual de 901 mil euros.
Ao contrário, o PS passou de resultados negativos de
quase 199 mil euros em 2021 para resultados positivos superiores a 1,6 milhões
de euros, num ano em que a subvenção estatal foi da ordem dos 7,6 milhões de
euros.
O "grande escândalo" dos gastos de campanha
Margarida Salema começa por apontar o dedo àquilo que
são as despesas de campanha eleitoral (Artigo 19.º), segundo a Lei do
financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais: consideram-se
despesas de campanha as efetuadas pelos partidos nos seis meses anteriores à
data das eleições.
"Não faz sentido nenhum", diz a jurista.
"Primeiro porque fixa um período eleitoral de seis meses em termos de
despesas, quando a campanha eleitoral só dura quinze dias, nos termos da lei.
Depois porque ninguém sabe quando é marcada a data do ato eleitoral, teria de o
adivinhar para pôr a Entidade das Contas de sobreaviso. Isto é um nonsense, os
partidos já fizeram despesas que retroativamente vão pôr como despesas da
campanha eleitoral".
As últimas legislativas foram a 10 de Março, as
despesas começaram a contar no início de Setembro. Claro que como o governo só
caiu a 7 de Novembro torna-se difícil colocar como despesas de campanha gastos
anteriores a essa data, mas em tempos mais estáveis o calendário eleitoral é
conhecido com antecedência e é fácil "meter despesas para trás" como
custos de campanha. São "manigâncias da lei que deixam uma pessoa
doida".
"O grande escândalo deste artigo, na minha
opinião, é que as despesas de campanha eleitoral têm que ser efetuadas com
intuito do benefício eleitoral, não para benefício do partido. Tanto que até
distinguimos entre a atividade de propaganda partidária e a atividade de
campanha eleitoral", sublinha.
Os partidos são obrigados a apresentar orçamentos de
campanha, que "devem ser equilibrados". Além disso, e como por
questões de transparência e integridade não podem ter descontos de amigo, a
Entidade das Contas publica uma lista indicativa do valor dos principais meios
de campanha.
Os orçamentos apresentados nestas eleições variaram
entre o mínimo de 100€ (PTP - Partido Trabalhista Português) e o máximo de
2.550.000€ (Partido Socialista), num valor global que ultrapassou os oito
milhões de euros (8.337.321,95€), excluindo o NósCidadãos!, único candidato que
não apresentou orçamento. Mas nem todos têm direito a subvenção, já que a lei
prevê que o apoio vá para quem concorra, "no mínimo, a 51% dos lugares
sujeitos a sufrágio para a Assembleia da República e que obtenham
representação".
As despesas de campanha são discriminadas por
categorias, com junção de documentos justificativos, "coisa que muitas
vezes os partidos não conseguem fazer, não há recibos, não há nada, é uma
balbúrdia", recorda Margarida Salema. "Antigamente a Assembleia da
República, que é quem paga as subvenções aos partidos, tinha demasiada bonomia,
limitava-se a fazer as contas e entregava o dinheiro. Começámos a dizer não
podia ser assim, tinha de ser de acordo com o que estava com as despesas".
Da mesma maneira, antes o excedente era repartido proporcionalmente pelas
candidaturas, mas atualmente reverte a favor do Estado.
"Não admira que alguns partidos possam
sobre-orçamentar, porque não acontece mal nenhum. Dizer que vou gastar 10 mil e
só gastar mil não tem consequências, é só observação política, não tem caráter
sancionatório. Mas se sub-orçamentar, aí pode perder na subvenção. Alguns
colegas meus até questionam o trabalho que dá publicar os orçamentos, que não
servem para nada".
Uma lei à la carte e muitas prescrições
Recentemente, o ex-presidente francês Nicolas Sarkozy
foi sentenciado a pena de prisão por ter ultrapassado o limite das despesas de
campanha eleitoral. "É o único caso que configura ilícito criminal",
explica a professora de Direito. Em Portugal também. Os mandatários financeiros
que não observem estes limites são punidos com pena de prisão de um a três
anos.
Os partidos portugueses também já tiveram a sua dose.
"O caso mais grave foi o do célebre donativo de quase meio milhão de euros
que o PSD recebeu da Somague", lembra Margarida Salema. Foi o Tribunal
Constitucional que detetou, "quando as coisas eram controladas de maneira
diferente", e o partido teve de devolver o dinheiro.
"A Entidade das Contas faz um bom trabalho
técnico, mas depois não tem autoridade política para se impor. Os partidos
recorrem sistematicamente das decisões para o Tribunal Constitucional, que
sistematicamente perdoa e absolve as contra-ordenações. As coisas são
estranhas", considera a jurista.
"O Tribunal Constitucional teve estes poderes
durante mais de vinte anos, mas com a presidência de Costa Andrade e de João
Caupers passou a achar que isto são atos administrativos, que nada parece ter
importância. É uma questão de cultura. Sarkozy também dizia que não tinha culpa
de terem gastado 10 milhões de euros em bandeiras, mas o tribunal aplicou a
lei. Em Portugal, alteraram a lei e limparam tudo o que puderam, mas antes os
candidatos passavam o tempo a fazer queixa de mim ao Tribunal Constitucional. E
eu respondia: tenho muita pena, mas não fui eu que fiz a lei".
Margarida Salema teve as suas lutas. "O PCP
aproveitava a campanha eleitoral para pagar os funcionários do partido. Pegava
neles e punha-os a trabalhar na campanha. Não podia acontecer, porque não eram
contratos separados, eles tinham contratos permanentes", exemplifica.
As histórias eram muitas. "Tinha pessoas que me
telefonavam a dizer: "Oh doutora Margarida, aconteceu esta coisa: tinha 15
mil euros de donativos e guardei-os no carro. Entretanto, calcule,
arrombaram-me o carro. E agora o que é que eu faço?" Olhe, vá à polícia. E
depois eu ponho-lhe um processo em cima, porque são 15 mil euros não
justificados. Esta conto, mas há piores: roubos entre partidos, coisas
inacreditáveis. E eu género padre no confessionário", recorda.
A jurista também tentou mudar outras coisas. Por
exemplo, os partidos têm de ter contabilidade organizada, independentemente de
serem grandes ou pequenos, de forma a ser possível conhecer a sua situação
financeira e patrimonial. "Sugeri que tivessem uma contabilidade
diferente, que tem de estar prevista na lei. Penso que seria justo e que se
pode fazer, mas teria de haver uma discussão. Os partidos também são tratados
de maneira diferente, há os que recebem e não recebem subvenção pública. Não
estou a dizer que os mais pequenos não apresentem contas, mas poderiam ter uma
obrigação contabilística simplificada".
Os perigos de legislar em causa própria
Os partidos políticos apresentaram até hoje 47
iniciativas para regular o financiamento dos partidos políticos e campanhas
eleitorais, 24 delas depois da lei de 2003. O PCP é campeão, com 11 propostas
entregues. Mas entre as que são rejeitadas, vetadas ou caducam fica a dúvida:
afinal, quem quer mudar o quê e quem quer deixar tudo como está?
"Os partidos têm feito limpezas sucessivas".
As alterações feitas à lei, em 2018, não vieram facilitar as coisas, na opinião
de especialistas. A alteração da lei orgânica do Tribunal Constitucional foi
revista com efeitos retroativos e os processos abertos pela Entidade das Contas
e Financiamentos Políticos prescreveram quase todos.
"Na minha opinião, uma das coisas mais graves da
nossa democracia", afirma Margarida Salema. "Aliás, qualquer jurista
considera que há uma linha vermelha no Direito, que é a das prescrições. Um
tribunal que deixa prescrever processos é uma vergonha". Como resolver a
situação? "O Ministério Público devia atuar. No fundo, acho que houve um
caso de negação de justiça, e os tribunais não se podem recusar a aplicar a
lei. A justiça em Portugal é uma vergonha".
"O problema começa logo nas pessoas que se
escolhe para os tribunais superiores, que são de nomeação da Assembleia da
República. De facto, há ali escolhas muito duvidosas. Escolhem pessoas com
posições muito específicas sobre os assuntos, que não são pessoas criteriosas e
com cultura jurídica geral. Têm lá umas manias, umas opiniões muito
próprias", considera.
Para Margarida Salema, este é um debate que tem de ser
feito. "Penso que temos de voltar a discutir a matéria do financiamento,
porque tem sido objeto de muitas modificações ou tentativas de modificação. A
lei teve um bom resultado nos primeiros dez anos. A partir das alterações de
2018 houve um retrocesso. Julgo que um dos principais problemas da lei é não
permitir que a Entidade das Contas possa levar a bom termo o seu trabalho de
fiscalização. Isto é, há uma certa lassidão no pagamento das coimas e um menor
controlo, menor eficácia das decisões".
Não é uma matéria consensual, mas, "a meu ver, há
nesta lei muitas situações estranhas e que deviam ser resolvidas. Há situações
de superposição, de falta de coordenação, de falta de aplicação da lei, de
desigualdade, e isso devia ser objeto de um debate".
O problema, no entanto, não é fácil de resolver, a
começar pelo facto de a lei ser feita e aprovada na Assembleia da República,
onde estão representados parte dos partidos. "Entendo que se trata de
decisões em causa própria", concorda a ex-presidente da Entidade das
Contas. "Penso que todas as decisões que os parlamentares tomam em causa
própria, não só em matéria de financiamento dos partidos, como noutras, como o
controlo dos rendimentos dos titulares de cargos políticos, os impedimentos e
incompatibilidades, as portas giratórias, o lobbying, deviam ser objeto de
debate público e os partidos não deviam poder decidir sobre elas a não ser por
uma maioria muito alargada".
Por isso, considera a jurista, "devia haver algum
órgão que pudesse intervir na formulação desta legislação. Os partidos
políticos têm de dar o exemplo, não podem deixar de dar o exemplo em legislação
que os beneficia". O debate alargado, diz, devia incluir os partidos sem
assento parlamentar.
"É óbvio que não podemos passar a decisão legislativa para o presidente da República ou para o Governo, mas, em qualquer caso, devia haver uma intervenção preventiva do Tribunal Constitucional ou de outro órgão antes de poder ser adoptada uma decisão deste tipo. Acho que os partidos tinham que ter mais cuidado. Claro que não vamos alterar o sistema de divisão de poderes, mas cada vez mais se entende que deve haver um outro poder, um poder de fiscalização dos poderes anteriores, uma discussão que já está a ser tida em termos científicos e académicos, sobretudo nos Estados Unidos, onde se fala num fourth branch. As coisas terão que mudar, senão entramos num sistema de círculo vicioso" (Sapo, texto da jornalista Isabel Tavares)
Sem comentários:
Enviar um comentário