domingo, outubro 23, 2022

Como a Europa chegou ao inverno energético

A crise da energia começou com as sanções à Rússia de Vladimir Putin?

Não. A União Europeia não consegue produzir energia suficiente para as suas necessidades (em 2020 importou 57,5% do que consumiu). Se a isso aliarmos um plano de transição energética a meio caminho e outros fatores já teríamos suficientes problemas para assegurar um abastecimento regular e seguro de energia.

Que outros fatores?

Antes da pandemia o preço do gás era baixo e as reservas eram abundantes. Quando a produção de petróleo e de gás baixou de forma drástica à medida que as economias pararam, as reservas foram consumidas devido a um inverno particularmente rigoroso na Europa. No mar do Norte o vento teimou em soprar com pouca força, pelo que a energia produzida pelos parques eólicos marinhos caiu a pique. Por outro lado, com o regresso à atividade, as empresas a operar na China, país que estava com baixas reservas de carvão, começaram a consumir muito mais gás natural liquefeito. Uma das regras básicas do mercado funcionou, ou seja, o aumento do preço devido à maior procura. No espaço de um ano, o preço do gás na Ásia mais do que decuplicou.

A transição para uma economia verde é responsável pelo estado das coisas?

Também. A Comissão Europeia reviu em alta a meta no corte de emissões de gases com efeito de estufa de 40% em 2030 para 55% e mantém o objetivo de chegar a 2050 em neutralidade carbónica. Para tal, o desempenho das energias renováveis é essencial, mas até agora está longe de substituir as restantes fontes de energia. Em 2020, a maior fatia de energia produzida na UE já era de renováveis, 40,8%. Mas - e aqui há um grande mas - a parte de leão cabe à biomassa, uma forma subsidiada de mascarar as estatísticas, alegam cientistas e ambientalistas, uma vez que a queima de madeira de florestas também emite gases e ameaça a biodiversidade. Do lado dos hidrocarbonetos cortou-se na produção e importação de carvão e, em sua substituição, o gás natural impôs-se, por ser menos poluente e barato.

Quais os produtores de gás?

A Rússia é o país com as maiores reservas de gás natural, seguido do Irão, Qatar e EUA, e tem sido o principal fornecedor da UE. Entre os 27, só os Países Baixos produzem e, caso o governo não mude de rumo, irá cessar no máximo em 2024. A produção estava em mínimos há vários anos devido aos tremores de terra associados à extração do campo de Groningen, mas um grande tremor, em 2018, foi o canto do cisne. Fora da UE, a Noruega tem um papel cada vez mais preponderante. O gasoduto Báltico, que liga o país nórdico à Polónia, via Dinamarca, começou a operar há menos de um mês, e um dia após as explosões que tornaram inoperacionais os gasodutos russos Nord Stream 1 e 2.

Há uma política coerente europeia de energia?

Não. A UE - e em especial Berlim - confiou no regime autocrático russo para se abastecer de gás (e petróleo e carvão) sem considerar outras fontes. "Infelizmente, a estratégia de alguns estados membros de satisfazer as necessidades energéticas nos próximos 30-40 anos, durante o que será provavelmente um período de transição dramático na evolução da tecnologia energética, parece basear-se na premissa de que a Rússia não só depende mutuamente dos seus parceiros europeus, mas também continuará a agir de forma fiável e a não explorar a sua crescente posição de monopólio, particularmente nos mercados de gás natural. Esta seria uma política pouco sensata a seguir", concluía um relatório datado de 2008 do Marshall Center. Há outros problemas. Na Península Ibérica a importação de gás argelino ficou reduzida quando, no ano passado, Argel decidiu deixar expirar o contrato do gasoduto que ligava Espanha via Marrocos, devido ao contencioso com Rabat sobre o Saara Ocidental. Ainda assim, Madrid e Lisboa querem ligar os terminais com um gasoduto até à Alemanha, mas o francês Emmanuel Macron não se mostra sensibilizado.

Energia nuclear, não, obrigado?

Cada país segue o seu caminho atómico. Em julho, resultado da invasão da Ucrânia, os eurodeputados rejeitaram uma proposta que iria vetar a proposta da Comissão que classifica a energia nuclear e o gás natural de investimentos verdes enquanto ferramentas necessárias para a transição energética. A Bélgica encerrou o primeiro reator e até 2025 deverá fechar os restantes. A Alemanha decidiu prolongar a vida de três centrais até abril, devido à crise energética. Em sentido inverso, a Finlândia inaugurou um reator na semana passada, o que em conjunto com outros dois irá produzir 40% da eletricidade que o país consome.

A Alemanha tem sido criticada porquê?

O chanceler Olaf Scholz tem vindo a recusar uma resposta europeia - à imagem da compra das vacinas anticovid - e apresentou um programa de 200 mil milhões de euros para proteger os consumidores e em especial as empresas, o que é visto pelos outros estados-membros como uma distorção ao mercado único.

E as sanções a Moscovo?

As sanções acabaram por desencadear respostas da Gazprom que apertaram (a exigência do pagamento em rublos) ou fecharam a torneira (a suspensão do Nord Stream), o que levou a presidente da Comissão Ursula von der Leyen a proclamar no discurso do estado da União: "Temos de nos livrar desta dependência em toda a Europa." Enquanto isso, a Hungria de Orbán recebe gás russo graças a um acordo renovado em agosto (DN-Lisboa, texto do jornalistra César Avó)

Sem comentários: