Numa refrega eleitoral muito disputada entre PS e PSD, como pode vir a ser a das legislativas de 30 de janeiro, um número considerável de eleitores-fantasma vem baralhar ainda mais as contas — e até pôr em causa os eleitos por partido e as maiorias que se poderão formar após as eleições. Cruzando o número de eleitores da Comissão Nacional de Eleições com as estimativas da população residente para 2020 do Instituto Nacional de Estatística, ainda são cerca de 600 mil os eleitores que estão a mais nos cadernos eleitorais.
O politólogo Luís Humberto Teixeira confessa-se “surpreendido”. “É bastante acima do que esperava, tendo em conta as medidas que foram tomadas” nos últimos anos, diz (ver texto ao lado). O investigador assinou, com José António Bourdain, quatro estudos sobre este problema entre 2007 e 2013. E assinalou que estes eleitores, apesar de só existirem nos cadernos eleitorais, podem, no limite, influenciar a composição do Parlamento ou mesmo ditar um vencedor errado. A razão é simples: estando eles registados nos cadernos eleitorais, mas não existindo de facto, podem aumentar o número de deputados a eleger nalguns distritos, diminuindo noutros ilegitimamente. Como os votos não são sociologicamente iguais em todo o país — e os partidos têm mais probabilidades de eleger deputados em determinadas zonas —, isto pode bastar para desvirtuar o ato eleitoral.
Esta semana, Humberto Teixeira optou por uma “via conservadora” para fazer o cálculo atualizado dos eleitores-fantasma, sem grandes extrapolações, ainda que o cruzamento com outros indicadores possa devolver um resultado bastante superior aos 600 mil. Este número, sublinha, já é “suficientemente preocupante”.
E mais preocupante é quando a campanha se adivinha disputada: as próximas eleições tanto podem ditar um entendimento ao centro como nas margens, à direita ou à esquerda. Relativamente às últimas legislativas, de 2019, ano em que três novos partidos entraram na Assembleia da República (Chega, Iniciativa Liberal e Livre), não se preveem outras estreias, antes uma representação parlamentar mais dilatada nos dois primeiros casos, em parte à custa da sangria no CDS. Face a este enquadramento, os eleitores-fantasma só são passíveis de não assustarem se a sua distribuição pelo país for uma mancha uniforme — isto é, “se assombrarem de igual forma o território nacional”. Agora, “se a diferença na correlação de forças entre PS e PSD for muito pequena” ou “for tudo decidido em círculos pequenos”, aí os 600 mil poderão efetivamente influenciar o resultado final, admite ao Expresso.
A solução pode passar pela criação à escala nacional de um círculo de compensação ou de um círculo único
Em teoria, se os círculos mais sobredimensionados forem do interior (e um rápido êxodo populacional pode ajudar a explicar esta circunstância), estes saem mais favorecidos em termos de representação face aos do litoral. No entanto, como o método de Hondt favorece os círculos maiores, a distorção acaba por ser corrigida. Num cenário de bipolarização como o que se perspetiva para estas eleições, a votação tende, nos círculos mais pequenos, mais para o PSD do que para o PS. É isto que acontece “por norma”, lembra Humberto Teixeira, com exceção dos três círculos do Alentejo (Évora, Beja e Portalegre).
A politóloga Marina Costa Lobo, do Instituto de Ciências Sociais, também descreve o recenseamento eleitoral como “altamente inflacionado”, apesar das “tentativas de o corrigir”. O Censos 2021, cujos dados provisórios foram conhecidos na semana passada, “mostra isso”, diz ao Expresso. Para se olhar devidamente para a abstenção, sempre tão badalada em jornadas e rescaldos eleitorais, são precisos “dados fidedignos”, capazes de devolver “um retrato fiel do eleitorado”. Se os dados se apresentam inflacionados entre 6% (na versão mais benévola) e 10%, esta disparidade torna-se “bastante preocupante” e “faz muita diferença na imagem do funcionamento da democracia e da relação dos cidadãos com as instituições”. E apela a “um esforço muito grande para a resolução do problema”, até porque “nos aproximamos dos 50 anos de democracia”. “Não sei se há falta de vontade política, mas denota uma falta de capacidade de atuação do Estado”, sugere.
João Cancela, professor de Ciência Política na UNL, mostra-se preocupado com a leitura “enviesada” dos resultados que decorre de cadernos eleitorais inflacionados. E levanta ainda ao Expresso o problema da proporcionalidade, que é “posta em causa em círculos eleitorais que apenas elegem dois deputados, como Portalegre, ou três, como Bragança”. “É mais provável um cidadão destes distritos desperdiçar o seu voto se votar num partido que não é um dos dois ou três que têm possibilidades claras de eleger naquele círculo eleitoral.” Este fenómeno dos votos desperdiçados tem-se vindo a agravar “por conta do padrão demográfico” de abandono dos pequenos centros.
Para Humberto Teixeira, muito mais do que discutir a influência que os eleitores-fantasma podem ter, o país devia dotar-se dos “mecanismos necessários” para esvaziar essa influência potencial. E isso poderia passar pela adaptação para a realidade nacional do círculo de compensação (como existe nos Açores) ou do círculo único (como na Madeira). Assim se “aproveitariam melhor os votos que, de outra maneira, seriam ignorados na conversão em mandatos” e “corrigiriam a posteriori eventuais erros nos cadernos”.
A quantidade de círculos eleitorais também devia ser revista, até porque desde 2011, quando Passos Coelho acabou com os governos civis, os distritos passaram a servir apenas um propósito: os círculos eleitorais. A correspondência dos círculos com as unidades territoriais (Norte, Centro, Área Metropolitana de Lisboa, Alentejo, Algarve, Região Autónoma dos Açores e Região Autónoma da Madeira) seria “muito mais adequada à nova realidade administrativa do país”, defende (Expresso, texto do jornalista HÉLDER GOMES)
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