quinta-feira, fevereiro 06, 2020

Pedro é neurologista e trabalha na fábrica. É um dos luso-venezuelanos que querem curso reconhecido

São, pelo menos, metade portugueses, mas viveram e estudaram na Venezuela. Há uma centena de médicos luso-venezuelanos a quererem exercer em Portugal, que se dizem impedidos por uma questão burocrática: as universidades portuguesas ultrapassam o tempo previsto na lei para lhes reconhecerem os cursos, que não são equivalentes. O "Estado português que nos ajude a vermos reconhecidas as nossas habilitações e garanta o direito ao exercício da nossa profissão em Portugal, como portugueses que somos", escreveram numa petição, lançada neste ano, que querem ver discutida na Assembleia da República. A Direção-Geral do Ensino Superior, em resposta ao DN, admite que o número destes pedidos tem vindo a aumentar, mas que já agilizou este processo e que, neste momento, os cidadãos não precisam de apresentar tantos documentos.
As matérias dos cursos são diferentes e, por isso, uma licenciatura tirada na Universidade da Venezuela não é automaticamente reconhecida em Portugal. Há alguns países que têm protocolos com o nosso país, como Cuba, e não precisam de passar por este processo, o que não é o caso da Venezuela para já. No entanto, o país integra uma lista de nacionalidades em análise pela Comissão Nacional de Reconhecimento de Graus e Diplomas Estrangeiros com o objetivo de um eventual reconhecimento automático de alguns dos graus atribuídos por sistemas de ensino superior estrangeiros.

Por agora, a solução é aguardar, enquanto a ansiedade e a angústia crescem a quem teve de deixar o seu país por falta de condições de vida. Desde 2017, que milhares de venezuelanos saem às ruas, primeiro em protestos contra um regime político que cortou relações diplomáticas com países de que dependia para vender petróleo, depois por causa de uma inflação que disparou em flecha. Mais de 2,3 milhões de venezuelanos tentaram fugir da escassez aflitiva em que vivem e da insegurança do país. Pedro Mota (de 37 anos) formou-se em Medicina em 2008 e terminou a especialidade (neurologia), em 2013, na Universidade da Venezuela. É casado com uma portuguesa e tem uma filha de 16 anos. "Fomos roubados, enganados e recebi ameaças de sequestro da minha mulher e da minha filha. Foi no meio da angústia que decidimos vir para Portugal", conta.
Não foi a primeira opção, precisamente porque Pedro já tinha ouvido falar sobre o tempo que poderia levar o reconhecimento do seu curso em Portugal. Mas estava na altura da sua mulher voltar para junto da família. Chegaram a Portugal a 25 de agosto de 2019, Pedro Mota com um visto de residência válido por cinco anos e já com o processo de reconhecimento do grau iniciado, através do Portal da Direção-Geral do Ensino Superior (a 17 de julho de 2019). Um mês depois, recebeu a confirmação de que o seu pedido seria atribuído à Universidade de Coimbra e, em setembro, o estabelecimento de ensino superior aceitou a sua solicitação de reconhecimento e pediu o pagamento dos 500 euros obrigatórios neste processo.
"A 6 de dezembro recebi um e-mail da Universidade de Coimbra, em que me indicam que o meu pedido de reconhecimento estava em espera por causa de um novo regulamento", diz Pedro Mota. É um dos únicos dois profissionais que receberam uma resposta clara da DGES, segundo a Associação de Médicos de Origem Luso-Venezuelana. "Estamos todos a realizar atividades não relacionadas com medicina."
Pedro Mota está em Portugal desde o verão do ano passado. Na Venezuela era neurologista, em Aveiro trabalha numa fábrica de cerâmica. © Foto enviada por Pedro Mota

O processo já ultrapassou os 90 dias, contados a partir da receção do requerimento, estipulados pelo Decreto-Lei n.º 66/2018, de 16 de agosto, para a resposta. A legislação referente aos processos de equivalência nas Faculdades de Medicina foi alvo de revisão em 2018 com o propósito de agilizar os procedimentos, mas as queixas destes médicos não diminuíram. "As faculdades de Medicina pretendem transformar aquilo que era suposto ser um processo de 90 dias num processo complexo, demorado, dispendioso, com intenções duvidosas, que em nada dignificam o exercício de medicina em Portugal", pode ler-se na petição.
Em resposta ao DN, a tutela indica que o "Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) aprovou já uma portaria que permitirá que os requerentes com graus académicos obtidos na Venezuela sejam excecionalmente dispensados de entregar alguma documentação certificativa (visando reduzir os custos e as dificuldades de recolha de comprovativos inerentes ao seu pedido e agilizando o processo burocrático)".
O gabinete do ministro do Ensino Superior admite ainda que estes pedidos estão a aumentar, mas o de autorizações também, "tendo o número de requerimentos válidos crescido 70% no último ano verificando-se também uma tendência de crescimento nos demais tipos de reconhecimento, desenvolvidos exclusivamente pelas instituições de ensino superior".
Segundo a Associação de Médicos de Origem Luso-Venezuelana, no ano passado, apenas dois médicos "conseguiram chegar à fase de instrução do processo com êxito". Todos os outros ainda não tiveram oportunidade de se inscreverem na Ordem dos Médicos - o passo seguinte.
"É uma realidade que Portugal não tem médicos suficientes no Serviço Nacional de Saúde e, contraditoriamente, o Estado português não aproveita o potencial humano de aproximadamente cem médicos formados na Venezuela", alerta ainda a petição, assinada por mais de 70 médicos. Para ser discutida no Parlamento são necessárias quatro mil assinaturas.
Os médicos luso-venezuelanos sentem-se ainda traídos pelo primeiro-ministro português, António Costa, que, em maio de 2019, prometia que o país estava de "braços abertos" para acolher os emigrantes venezuelanos que queiram trabalhar em Portugal. Há um ano, em janeiro, o secretário de Estado das Comunidades anunciava também uma via verde para facilitar o acesso à nacionalidade portuguesa a lusodescendentes na Venezuela, numa altura em que o país vive tempos de grande conturbação social e política. Isto significava igualmente o reconhecimento mais ágil de graus académicos e diplomas de ensino superior. No entanto, a demora nos processos de equivalência tem levado muitos especialistas a desistirem de Portugal e a optarem por outros países, como Espanha, onde há acordos diretos com a Venezuela.
"Os profissionais não vêm de férias. Estamos a fugir da Venezuela", relembra Cristian de Abreu, representante da Associação de Médicos de Origem Luso-Venezuelana, que chegou ao Funchal, Madeira, a 5 de maio do ano passado, onde tem tios e amigos. "É por eles que luto", diz o médico que tem também a sua carreira em espera. "O Estado português deveria estar a trabalhar de forma mais humana para a nossa reinserção, como acontece em Espanha." Conta ainda que conhece colegas que já estão em Portugal desde 2015 e continuam à espera de um sinal para poderem exercer a sua profissão por cá.
Christian de Abreu chegou a Portugal em maio do ano passado, ao Funhal, Madeira. © Foto via Christian de Abreu

Há 103 médicos formados na Venezuela a exercer em Portugal
Para poder exercer medicina em Portugal, qualquer médico que tenha feito um curso no estrangeiro tem de cumprir, pelo menos, dois critérios obrigatórios, segundo a Ordem dos Médicos: uma universidade portuguesa tem de ter aprovado a formação e o candidato tem de demonstrar que sabe comunicar em português (oralmente e por escrito), através de uma prova sob a tutela da Ordem e do Instituto Camões. No caso de um médico querer equivalência a uma especialidade, depois de cumprir os pressupostos anteriores, a sua situação tem de ser avaliada pela direção do colégio da especialidade em causa.
No ano passado, trabalhavam em Portugal 103 médicos que se formaram na Venezuela, de acordo com os dados cedidos pela Ordem dos Médicos ao DN. Destes, 89 têm nacionalidade portuguesa e 14 venezuelana. Números que têm ​​​​​​​aumentado todos os anos, na última década. Em 2010, havia 81 médicos com formação venezuelana a trabalhar no nosso país, em 2015, já eram 88 e em 2017 atingiram uma centena.
O número de médicos estrangeiros em Portugal atingiu, no ano passado, o valor mais elevado da última década. Em 2019, eram, segundo a Ordem, 4192 - mais 9,1% do que em 2009. A maioria dos médicos chegam de Espanha (1650 profissionais), do Brasil (790), da Ucrânia (213), da Itália (197), de Cuba (160) e da Alemanha (148) (texto da jornalista do DN-Lisboa, Rita Rato Nunes)

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