sábado, abril 03, 2021

Expresso: OPERAÇÃO MARQUÊS: E se...?


A uma semana de se saber se Sócrates vai a julgamento e, se sim, por quais crimes irá responder, as dúvidas são muitas. Se os crimes de corrupção caírem, irá o resto desmoronar? Ao fim de mais de dois anos de intensa análise, uma boa parte dela em regime de exclusividade, o juiz Ivo Rosa vai encerrar no próximo dia 9 de abril a fase de instrução da Operação Marquês com o anúncio do que decidiu sobre o futuro dos 28 arguidos do maior processo de corrupção investigado em Portugal até hoje. Quem irá a julgamento? E que crimes serão julgados?

Muita especulação tem sido gerada nas últimas semanas sobre as conclusões contidas no despacho de milhares de páginas que resultam do escrutínio longo e detalhado que este juiz de instrução fez sobre o trabalho desenvolvido pela equipa de procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) dirigida por Jorge Rosário Teixeira.

Entre as dúvidas que se colocam nesta altura está perceber até que ponto Sócrates pode ir a julgamento por fraude fiscal e lavagem de dinheiro se Ivo Rosa deixar cair os crimes de corrupção de que vem acusado. O que poderia então sobrar de todo este processo? E o que aconteceria a outros arguidos como o seu amigo Carlos Santos Silva ou o ex-banqueiro Ricardo Salgado?

1 - DE QUE CRIMES DE CORRUPÇÃO ESTÁ SÓCRATES ACUSADO?

O mais relevante desses crimes tem como alegado corruptor ativo Ricardo Salgado, o ex-banqueiro do Banco Espírito Santo (BES) e ex-líder do Grupo Espírito Santo (GES). Segundo o Ministério Público, Sócrates recebeu mais de 20 milhões de euros com origem no ‘saco azul’ do GES, através de um complexo esquema de lavagem de dinheiro, sendo que, em contrapartida, condicionou a atuação do Estado enquanto acionista da Portugal Telecom (PT) na defesa dos interesses do GES, que também era accionista desta empresa de telecomunicações. Isso teria acontecido não só no modo como uma tentativa de compra da PT pelo grupo Sonae acabou chumbada, como ainda na influência sobre os investimentos da PT no Brasil, no tempo de Lula da Silva.

Há depois mais dois crimes de corrupção. Um deles tem a ver com o resort de luxo Vale do Lobo no Algarve, em que Sócrates recebeu alegadamente um milhão de euros em 2008 a troco de ter influenciado a atribuição de um empréstimo da CGD, em conluio com Armando Vara, então administrador do banco público e também ele acusado de corrupção passiva. Esse empréstimo permitiu a aquisição do resort por um grupo de investidores que incluía Diogo Gaspar Ferreira e Rui Horta e Costa, ambos acusados de corrupção ativa.

Existem ainda vários milhões de euros recebidos pelo antigo chefe de governo que dizem respeito ao modo como o Estado terá privilegiado o Grupo Lena na atribuição de contratos de obras públicas. Estão em causa os concursos lançados para o TGV e os negócios promovidos na Venezuela na época de Hugo Chávez.

2 - QUE TIPO DE PROVAS EXISTEM CONTRA ELE NESSES CRIMES?

Não existem provas diretas para nenhum dos três crimes de corrupção de que Sócrates está acusado. Não há nenhum papel, nenhuma escuta, nenhuma testemunha que ateste isso.
No caso de Vale do Lobo, em relação ao empréstimo obtido junto da CGD, a sua influência estaria ligada a Armando Vara, de quem sempre foi muito próximo e que esteve envolvido no processo de atribuição desse crédito.

No caso do Grupo Lena, não existe nada de forma clara na acusação sobre como o ex-primeiro-ministro teria interferido para que o grupo ganhasse concursos públicos em Portugal. E embora sejam evidentes quer a sua proximidade com Hugo Chávez quer o modo como o antigo presidente venezuelano decidia discricionariamente a distribuição de dinheiros públicos, não existem indícios diretos de que Sócrates lhe tenha pedido para contratar o Grupo Lena para o projeto de habitação social Gran Mision Venezuela (por milhares de milhões de euros).

Quanto ao Grupo Espírito Santo e ao esquema relacionado com a Portugal Telecom, a influência teria de ser exercida através do ministro que geria a participação do Estado na empresa, Mário Lino, que não está acusado no processo.

Embora haja, como contrapeso, o testemunho de Hélder Bataglia (e as revelações dos Panama Papers trazidas pelo Expresso) de que Salgado ter-lhe-ia pedido para fazer chegar 12 milhões de euros ao amigo de Sócrates, a relutância conhecida do juiz Ivo Rosa em basear as suas decisões em provas circunstanciais torna possível que estes crimes caiam no seu despacho de pronúncia.

3 - QUE OUTROS CRIMES ESTÃO EM CAUSA?

Sócrates está ainda acusado de três crimes de fraude fiscal qualificada, 16 crimes de branqueamento de capitais e nove crimes de falsificação de documento. Os crimes de fraude fiscal qualificada existem no processo no pressuposto que os muito milhões de euros de que beneficiou são dele e correspondem ao pagamento de subornos a troco de várias atuações criminosas durante o exercício do cargo de primeiro-ministro — a favor do GES, a favor do Grupo Lena e a favor do Grupo Vale do Lobo. Quase todos os outros crimes — quer de branqueamento, quer boa parte das falsificações de documentos — decorrem da mesma lógica, tendo sido praticados para esconder a origem corrupta do dinheiro e uma fuga aos impostos.

4 - SE A CORRUPÇÃO CAIR, CAEM OS OUTROS CRIMES?

Num cenário em que Sócrates ficasse livre da acusação de corrupção e o juiz considerasse que o dinheiro que recebeu de Carlos Santos Silva era afinal dinheiro emprestado pelo amigo — como ambos os arguidos têm dito sempre — a probabilidade de caírem todos os outros crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais que pendem contra eles seria razoável. Porquê? Porque esse dinheiro, mais de 20 milhões de euros (que estava originalmente depositado na Suíça e acabou transferido para Portugal), foi objeto de amnistia fiscal — conhecida como RERT (Regime Excecional de Regularização Tributária). Havendo corrupção, o RERT fica sem efeito. Não havendo corrupção, a amnistia mantém-se válida. E assim os impostos estariam saldados. Depois, como o branqueamento de capitais exige sempre que haja outros crimes na origem, seria difícil evitar um efeito-dominó. Mas, ainda que a corrupção caia, o juiz pode concluir que não se trata de empréstimos concedidos pelo amigo mas sim de donativos. Se esse for o seu entendimento, então Sócrates poderá ir a julgamento por fraude fiscal e branqueamento de capitais mesmo sem estar pronunciado por corrupção. Desde 2005 que prendas e donativos superiores a 500 euros (com exceção do que acontece entre familiares próximos: cônjuges, pais, filhos, netos) estão sujeitos ao dever de declaração às finanças e ao pagamento de imposto.

Quanto aos nove crimes de falsificação de documentos, há dois deles que poderiam mais facilmente sobreviver à queda da corrupção: os que estão relacionados com o esquema através do qual o professor Domingos Farinho foi pago para ajudar Sócrates com a sua tese de mestrado em Sciences Po.

5 QUE IMPACTO É QUE ISSO TERIA NA SITUAÇÃO DOS OUTROS ARGUIDOS?

Na hipótese de Sócrates não vir a ser pronunciado por corrupção ativa, alguns arguidos no processo poderiam ser despronunciados. A começar pelo seu amigo Carlos Santos Silva, considerado pelo Ministério Público como tendo atuado como testa de ferro (daí ser acusado de quase 20 crimes de branqueamento de capitais e vários crimes de fraude fiscal qualificada), mas também como corruptor ativo. Se os mais de 20 milhões de euros que tinha na Suíça não eram, afinal, de Sócrates, então todo esse dinheiro seria mesmo seu e foi objeto de uma amnistia fiscal. Esse despronunciamento iria incluir muito provavelmente a ex-mulher, Sofia Fava, mas não o motorista José Perna (que ficaria, ainda assim, pronunciado por detenção de arma proibida).

No caso de Ricardo Salgado, não seria tão claro se ficaria livre de ir a julgamento. O ex-banqueiro não está acusado de corromper apenas o ex-primeiro-ministro. Alegadamente ele também fez pagamentos corruptos a Zeinal Bava e a Henrique Granadeiro, quando estes gestores eram os homens-fortes da Portugal Telecom, a troco de manobrarem a favor do Grupo Espírito Santo, que era à época um dos acionistas principais daquela empresa de telecomunicações, havendo claramente um conflito de interesses (eram gestores de topo da PT e estavam a ser pagos por fora, sem que isso fosse declarado, por um dos acionistas). E mesmo que estes crimes de corrupção caíssem em relação a estes arguidos, haveria ainda a considerar as situações de fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais de que vêm acusados — e que envolvem transferências de dezenas de milhões de euros que receberam de Salgado através do ‘saco azul’ do GES na Suíça, sem que tivessem sido mais tarde abrangidos por qualquer amnistia fiscal.

Também nos enredos que dizem respeito ao Grupo Lena e ao empreendimento Vale do Lobo, no Algarve, existem outros factos que são independentes do que vier a ser decidido sobre Sócrates. No caso do resort de Vale do Lobo, as circunstâncias de fraude fiscal e branqueamento de capitais no pagamento de dois milhões de euros por um holandês que comprou um imóvel parecem claras. No caso do Grupo Lena, há ainda os pagamentos corruptos feitos a propósito do projeto da linha ferroviária de alta velocidade (TGV) a um então diretor da RAVE, uma entidade pública (Expresso, texto do jornalista MICAEL PEREIRA)

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