A uma semana de se saber se Sócrates vai a julgamento e, se sim, por quais crimes irá responder, as dúvidas são muitas. Se os crimes de corrupção caírem, irá o resto desmoronar? Ao fim de mais de dois anos de intensa análise, uma boa parte dela em regime de exclusividade, o juiz Ivo Rosa vai encerrar no próximo dia 9 de abril a fase de instrução da Operação Marquês com o anúncio do que decidiu sobre o futuro dos 28 arguidos do maior processo de corrupção investigado em Portugal até hoje. Quem irá a julgamento? E que crimes serão julgados?
Muita especulação
tem sido gerada nas últimas semanas sobre as conclusões contidas no despacho de
milhares de páginas que resultam do escrutínio longo e detalhado que este juiz
de instrução fez sobre o trabalho desenvolvido pela equipa de procuradores do
Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) dirigida por Jorge
Rosário Teixeira.
Entre as dúvidas que se colocam nesta altura está perceber até que ponto Sócrates pode ir a julgamento por fraude fiscal e lavagem de dinheiro se Ivo Rosa deixar cair os crimes de corrupção de que vem acusado. O que poderia então sobrar de todo este processo? E o que aconteceria a outros arguidos como o seu amigo Carlos Santos Silva ou o ex-banqueiro Ricardo Salgado?
1 - DE QUE CRIMES
DE CORRUPÇÃO ESTÁ SÓCRATES ACUSADO?
O mais relevante
desses crimes tem como alegado corruptor ativo Ricardo Salgado, o ex-banqueiro
do Banco Espírito Santo (BES) e ex-líder do Grupo Espírito Santo (GES). Segundo
o Ministério Público, Sócrates recebeu mais de 20 milhões de euros com origem
no ‘saco azul’ do GES, através de um complexo esquema de lavagem de dinheiro,
sendo que, em contrapartida, condicionou a atuação do Estado enquanto acionista
da Portugal Telecom (PT) na defesa dos interesses do GES, que também era accionista
desta empresa de telecomunicações. Isso teria acontecido não só no modo como
uma tentativa de compra da PT pelo grupo Sonae acabou chumbada, como ainda na
influência sobre os investimentos da PT no Brasil, no tempo de Lula da Silva.
Há depois mais
dois crimes de corrupção. Um deles tem a ver com o resort de luxo Vale do Lobo
no Algarve, em que Sócrates recebeu alegadamente um milhão de euros em 2008 a
troco de ter influenciado a atribuição de um empréstimo da CGD, em conluio com
Armando Vara, então administrador do banco público e também ele acusado de
corrupção passiva. Esse empréstimo permitiu a aquisição do resort por um grupo
de investidores que incluía Diogo Gaspar Ferreira e Rui Horta e Costa, ambos
acusados de corrupção ativa.
Existem ainda
vários milhões de euros recebidos pelo antigo chefe de governo que dizem
respeito ao modo como o Estado terá privilegiado o Grupo Lena na atribuição de
contratos de obras públicas. Estão em causa os concursos lançados para o TGV e
os negócios promovidos na Venezuela na época de Hugo Chávez.
2 - QUE TIPO DE
PROVAS EXISTEM CONTRA ELE NESSES CRIMES?
Não existem provas
diretas para nenhum dos três crimes de corrupção de que Sócrates está acusado.
Não há nenhum papel, nenhuma escuta, nenhuma testemunha que ateste isso.
No caso de Vale do Lobo, em relação ao empréstimo obtido junto da CGD, a sua
influência estaria ligada a Armando Vara, de quem sempre foi muito próximo e
que esteve envolvido no processo de atribuição desse crédito.
No caso do Grupo
Lena, não existe nada de forma clara na acusação sobre como o
ex-primeiro-ministro teria interferido para que o grupo ganhasse concursos
públicos em Portugal. E embora sejam evidentes quer a sua proximidade com Hugo
Chávez quer o modo como o antigo presidente venezuelano decidia
discricionariamente a distribuição de dinheiros públicos, não existem indícios
diretos de que Sócrates lhe tenha pedido para contratar o Grupo Lena para o
projeto de habitação social Gran Mision Venezuela (por milhares de milhões de
euros).
Quanto ao Grupo
Espírito Santo e ao esquema relacionado com a Portugal Telecom, a influência
teria de ser exercida através do ministro que geria a participação do Estado na
empresa, Mário Lino, que não está acusado no processo.
Embora haja, como
contrapeso, o testemunho de Hélder Bataglia (e as revelações dos Panama Papers
trazidas pelo Expresso) de que Salgado ter-lhe-ia pedido para fazer chegar 12
milhões de euros ao amigo de Sócrates, a relutância conhecida do juiz Ivo Rosa
em basear as suas decisões em provas circunstanciais torna possível que estes
crimes caiam no seu despacho de pronúncia.
3 - QUE OUTROS
CRIMES ESTÃO EM CAUSA?
Sócrates está
ainda acusado de três crimes de fraude fiscal qualificada, 16 crimes de
branqueamento de capitais e nove crimes de falsificação de documento. Os crimes
de fraude fiscal qualificada existem no processo no pressuposto que os muito
milhões de euros de que beneficiou são dele e correspondem ao pagamento de
subornos a troco de várias atuações criminosas durante o exercício do cargo de
primeiro-ministro — a favor do GES, a favor do Grupo Lena e a favor do Grupo
Vale do Lobo. Quase todos os outros crimes — quer de branqueamento, quer boa
parte das falsificações de documentos — decorrem da mesma lógica, tendo sido
praticados para esconder a origem corrupta do dinheiro e uma fuga aos impostos.
4 - SE A CORRUPÇÃO
CAIR, CAEM OS OUTROS CRIMES?
Num cenário em que
Sócrates ficasse livre da acusação de corrupção e o juiz considerasse que o
dinheiro que recebeu de Carlos Santos Silva era afinal dinheiro emprestado pelo
amigo — como ambos os arguidos têm dito sempre — a probabilidade de caírem
todos os outros crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais que pendem
contra eles seria razoável. Porquê? Porque esse dinheiro, mais de 20 milhões de
euros (que estava originalmente depositado na Suíça e acabou transferido para
Portugal), foi objeto de amnistia fiscal — conhecida como RERT (Regime
Excecional de Regularização Tributária). Havendo corrupção, o RERT fica sem
efeito. Não havendo corrupção, a amnistia mantém-se válida. E assim os impostos
estariam saldados. Depois, como o branqueamento de capitais exige sempre que
haja outros crimes na origem, seria difícil evitar um efeito-dominó. Mas, ainda
que a corrupção caia, o juiz pode concluir que não se trata de empréstimos
concedidos pelo amigo mas sim de donativos. Se esse for o seu entendimento,
então Sócrates poderá ir a julgamento por fraude fiscal e branqueamento de
capitais mesmo sem estar pronunciado por corrupção. Desde 2005 que prendas e donativos
superiores a 500 euros (com exceção do que acontece entre familiares próximos:
cônjuges, pais, filhos, netos) estão sujeitos ao dever de declaração às
finanças e ao pagamento de imposto.
Quanto aos nove
crimes de falsificação de documentos, há dois deles que poderiam mais
facilmente sobreviver à queda da corrupção: os que estão relacionados com o
esquema através do qual o professor Domingos Farinho foi pago para ajudar
Sócrates com a sua tese de mestrado em Sciences Po.
5 QUE IMPACTO É
QUE ISSO TERIA NA SITUAÇÃO DOS OUTROS ARGUIDOS?
Na hipótese de
Sócrates não vir a ser pronunciado por corrupção ativa, alguns arguidos no
processo poderiam ser despronunciados. A começar pelo seu amigo Carlos Santos
Silva, considerado pelo Ministério Público como tendo atuado como testa de
ferro (daí ser acusado de quase 20 crimes de branqueamento de capitais e vários
crimes de fraude fiscal qualificada), mas também como corruptor ativo. Se os
mais de 20 milhões de euros que tinha na Suíça não eram, afinal, de Sócrates,
então todo esse dinheiro seria mesmo seu e foi objeto de uma amnistia fiscal.
Esse despronunciamento iria incluir muito provavelmente a ex-mulher, Sofia
Fava, mas não o motorista José Perna (que ficaria, ainda assim, pronunciado por
detenção de arma proibida).
No caso de Ricardo
Salgado, não seria tão claro se ficaria livre de ir a julgamento. O
ex-banqueiro não está acusado de corromper apenas o ex-primeiro-ministro.
Alegadamente ele também fez pagamentos corruptos a Zeinal Bava e a Henrique
Granadeiro, quando estes gestores eram os homens-fortes da Portugal Telecom, a
troco de manobrarem a favor do Grupo Espírito Santo, que era à época um dos
acionistas principais daquela empresa de telecomunicações, havendo claramente
um conflito de interesses (eram gestores de topo da PT e estavam a ser pagos
por fora, sem que isso fosse declarado, por um dos acionistas). E mesmo que
estes crimes de corrupção caíssem em relação a estes arguidos, haveria ainda a
considerar as situações de fraude fiscal qualificada e branqueamento de
capitais de que vêm acusados — e que envolvem transferências de dezenas de
milhões de euros que receberam de Salgado através do ‘saco azul’ do GES na
Suíça, sem que tivessem sido mais tarde abrangidos por qualquer amnistia
fiscal.
Também nos enredos
que dizem respeito ao Grupo Lena e ao empreendimento Vale do Lobo, no Algarve,
existem outros factos que são independentes do que vier a ser decidido sobre
Sócrates. No caso do resort de Vale do Lobo, as circunstâncias de fraude fiscal
e branqueamento de capitais no pagamento de dois milhões de euros por um
holandês que comprou um imóvel parecem claras. No caso do Grupo Lena, há ainda
os pagamentos corruptos feitos a propósito do projeto da linha ferroviária de
alta velocidade (TGV) a um então diretor da RAVE, uma entidade pública
(Expresso, texto do jornalista MICAEL PEREIRA)
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