sábado, março 15, 2014

Opinião: "Um veto contra uma meia-verdade"

"A percentagem de famílias portuguesas incapazes de suportar qualquer despesa imprevista pulou de 10% para 24% no último ano. Os detalhes não melhoram este quadro negro: no estudo divulgado pela Cetelem, a percentagem de portugueses capazes de suportar uma despesa imprevista num valor até 250 euros caiu a pique: de 26,6% para 9,4%. Não admira, pois, que 30% tenham sido obrigados a cortar em despesas de saúde e 25,4% em educação. Contra factos não há argumentos, a não ser os das manipulações macro em que os cínicos se viciaram para varejar números que pudessem acobertar as suas pessoas e as suas coisinhas.
Em cada um destes compatriotas há um drama a cada dia que passa para evitar a tragédia do mês e a consequente repercussão social: há um ano, 22,2% conseguiam colocar algum dinheirinho no banco, hoje são apenas 8,6%. Mais: a família [em muitos casos pais e avós pensionistas] é obviamente o primeiro recurso de crédito para 54,4% dos portugueses.
Este é um quadro social que justifica por inteiro o veto político do presidente da República ao decreto-lei do Governo que tinha por objetivo aumentar de 2,5% para 3,5% os descontos para a ADSE, SAD e ADM. Em boa verdade, o que o professor de Economia Cavaco Silva nos veio dizer é que, pelas suas contas, bastaria um aumento na casa de meio ponto percentual para resolver no imediato o problema da autossustentabilidade desses subsistemas de saúde, que era a justificação governamental expressa para mais este esforço de austeridade exigido aos funcionários públicos e pensionistas.
Quando as famílias procuram os critérios mais justos e inteligíveis de austeridade de modo a garantir a partilha mais aceitável dos sacrifícios entre os seus membros, percebe-se que o presidente da República coloque o Governo perante a exigência de clarificar qual parte dos 132,7 milhões de euros previstos nesta arrecadação de contribuições está destinada não diretamente à autossustentabilidade dos subsistemas de saúde, mas sim à consolidação das contas públicas. Justo, tendo em conta o histórico de cortes nos rendimentos de que reformados e funcionários públicos têm sido alvo ao longo do programa de assistência financeira da troika.
Perante este veto presidencial baseado em números que não foram rebatidos, redunda em pura ideologia [quero dizer: em fé de missionário] declarar que se não cobrarmos estes milhões a mais a troika não fechará a 10.ª avaliação. Trata-se de uma meia-verdade que é fruto do tempo, ou seja, do ciclo eleitoral em aproximação, porque a troika fechou, fecha e fechará qualquer das avaliações desde que o resultado final seja o mesmo: equilíbrio orçamental. É deste equilíbrio - e das formas mais justas e eficazes para o obter, ou seja, pagando o que devemos a todos, incluindo aos portugueses - que deve tratar o Governo e o debate político ser feito. De verdade" (texto do jornalista Manuel Tavares, Jornal de Notícias com a devida venia)