sábado, março 15, 2014

Opinião: “Ou tás quietinho ou levas no focinho”


“As reacções do governo e dos seus apoiantes ao manifesto dos 70 pela reestruturação da dívida são interessantes naquilo que revelam de uma coisa viscosa instalada na sociedade portuguesa desde a ditadura - e que a democracia removeu parcial mas nunca completamente. É o "tá quietinho ou levas no focinho", um medo estrutural português que a crise económica veio agravar, como também agravou o despotismo, a arrogância, a prepotência dos pequenos poderes que se inspiram nos grandes: governo, troika, etc.
O "tá quietinho ou levas no focinho" foi a resposta generalizada dos críticos do grupo misterioso que publicou um manifesto a pedir a reestruturação da dívida. Esse grupo inclui um conjunto de perigosos revolucionários - já identificados pelo sistema do "não há alternativa" -, como o professor Adriano Moreira, o conselheiro de Paulo Portas (já ex-conselheiro por estes dias) para as questões económicas António Bagão Félix, a ex-líder do PSD Manuela Ferreira Leite (autora da famosa frase "não há dinheiro para nada"), do patrão dos patrões António Saraiva, etc. Não se pode falar de nada porque não é o timing, porque isto está a correr tão bem (para eles, os críticos, deve estar), porque o relógio da troika está a marcar o zero, porque "os mercados" vão dar cabo de nós, não se pode falar porque não se pode falar. Discutir a sério é perigoso, o ideal é fazermos meia dúzia de slogans que não se traduzem em coisa nenhuma concreta para animar a populaça - "retoma", "milagre económico", "sinais positivos", "crescimento" sem se saber como, etc.
Ao incluir na agenda a reestruturação da dívida precisamente no momento em que a questão deve ser posta (não são o Presidente e o governo que dizem querer discutir o pós-troika e pedem consensos?), o grupo dos 70 atira para cima da mesa o problema central que o país tem que enfrentar se quiser ter algum futuro. Discutir o manifesto com base no "timing" ou na biografia de alguns dos que o assinam é um atentado à inteligência.
E já agora, só para que conste, ficam aqui as palavrinhas de Carlos Moedas, quando ainda não era secretário de Estado, escritas num blogue em 2010. É longo, mas vale a pena: "No caso da dívida pública [...] se Portugal quisesse voltar aos níveis de dívida pública de 2007 [...] teria de apresentar um superavit primário das contas públicas (antes de juros) de 6% ao ano durante cinco anos ou de 3% ao ano durante dez anos. Alguém acredita que estes cenários são possíveis a curto ou mesmo a médio prazo? Eu tenho muitas dúvidas, e por isso só nos resta (a nós e a outros) o possível caminho da reestruturação da dívida. Ou seja, ir falar com os nossos credores e dizer-lhes que dos 100 que nos emprestaram já só vão receber 70 ou 80."
Moedas sabia (e ainda sabe, claro) que "este é um caminho árduo e complicado, a tal parede de que tanto se fala mas que nos permitiria começar de novo. A austeridade é necessária e urgente, mas se mantivermos os níveis actuais de dívida dificilmente conseguiremos crescer a níveis aceitáveis [...] e se não crescermos morremos". Se Moedas sabe isto, os idiotas inúteis talvez não” (texto da jornalista Ana Sá Lopes, Jornal I, com a devida vénia)