“As reacções do governo e dos seus apoiantes ao
manifesto dos 70 pela reestruturação da dívida são interessantes naquilo que
revelam de uma coisa viscosa instalada na sociedade portuguesa desde a ditadura
- e que a democracia removeu parcial mas nunca completamente. É o "tá
quietinho ou levas no focinho", um medo estrutural português que a crise
económica veio agravar, como também agravou o despotismo, a arrogância, a
prepotência dos pequenos poderes que se inspiram nos grandes: governo, troika,
etc.
O "tá quietinho ou levas no focinho" foi a
resposta generalizada dos críticos do grupo misterioso que publicou um
manifesto a pedir a reestruturação da dívida. Esse grupo inclui um conjunto de
perigosos revolucionários - já identificados pelo sistema do "não há
alternativa" -, como o professor Adriano Moreira, o conselheiro de Paulo
Portas (já ex-conselheiro por estes dias) para as questões económicas António
Bagão Félix, a ex-líder do PSD Manuela Ferreira Leite (autora da famosa frase
"não há dinheiro para nada"), do patrão dos patrões António Saraiva,
etc. Não se pode falar de nada porque não é o timing, porque isto está a correr
tão bem (para eles, os críticos, deve estar), porque o relógio da troika está a
marcar o zero, porque "os mercados" vão dar cabo de nós, não se pode
falar porque não se pode falar. Discutir a sério é perigoso, o ideal é fazermos
meia dúzia de slogans que não se traduzem em coisa nenhuma concreta para animar
a populaça - "retoma", "milagre económico", "sinais
positivos", "crescimento" sem se saber como, etc.
Ao incluir na agenda a reestruturação da dívida
precisamente no momento em que a questão deve ser posta (não são o Presidente e
o governo que dizem querer discutir o pós-troika e pedem consensos?), o grupo
dos 70 atira para cima da mesa o problema central que o país tem que enfrentar
se quiser ter algum futuro. Discutir o manifesto com base no "timing"
ou na biografia de alguns dos que o assinam é um atentado à inteligência.
E já agora, só para que conste, ficam aqui as
palavrinhas de Carlos Moedas, quando ainda não era secretário de Estado,
escritas num blogue em 2010. É longo, mas vale a pena: "No caso da dívida
pública [...] se Portugal quisesse voltar aos níveis de dívida pública de 2007
[...] teria de apresentar um superavit primário das contas públicas (antes de
juros) de 6% ao ano durante cinco anos ou de 3% ao ano durante dez anos. Alguém
acredita que estes cenários são possíveis a curto ou mesmo a médio prazo? Eu
tenho muitas dúvidas, e por isso só nos resta (a nós e a outros) o possível
caminho da reestruturação da dívida. Ou seja, ir falar com os nossos credores e
dizer-lhes que dos 100 que nos emprestaram já só vão receber 70 ou 80."
Moedas sabia (e ainda sabe, claro) que "este é um
caminho árduo e complicado, a tal parede de que tanto se fala mas que nos
permitiria começar de novo. A austeridade é necessária e urgente, mas se
mantivermos os níveis actuais de dívida dificilmente conseguiremos crescer a
níveis aceitáveis [...] e se não crescermos morremos". Se Moedas sabe isto,
os idiotas inúteis talvez não” (texto da jornalista Ana Sá Lopes, Jornal I, com
a devida vénia)