sábado, julho 04, 2020

Covid. E quando chegar a vacina? Uma história sobre a lei de mercado, as expectativas e o otimismo

Os EUA compraram em massa um medicamento dito promissor contra a covid-19 mas isso não significa que possam fazer o mesmo com uma vacina: basta os outros países estarem preparados. A solidariedade internacional em tempos de pandemia morreu (mais) um bocadinho na quarta-feira. Os Estados Unidos da América reservaram quase todo o stock para os próximos três meses do medicamento remdesivir e isso não será um bom pronúncio para os próximos tempos. Mas também não significa que esteja tudo perdido.
“A compra de stock [do medicamento] só é relevante caso não haja capacidade de produção atempada noutros locais. No caso de haver capacidade produtiva e estar em causa apenas a proteção de patente e não a capacidade de produção, existem mecanismos internacionais para permitir essa produção por motivos de saúde pública”, explica Pedro Pita Barros, professor de Economia da Saúde na Nova School of Business and Economics. Miguel Araújo Abreu, infeciologista no Hospital de Santo António, no Porto, concorda: o que aconteceu com o remdesivir não é “assim tão grave”. Mais grave seria que, em vez de um fármaco que diminui o tempo de recuperação das pessoas infetadas gravemente com covid-19, estivesse em causa uma vacina para a doença. “Se tivesse havido um açambarcamento de uma vacina por parte dos EUA, aí a conversa já seria outra”, diz ao Expresso.

UMA VACINA PARA TODOS?
A conversa da vacina da covid-19 já começou. A União Europeia diz que “este é um momento para ciência e solidariedade” e apresenta uma estratégia aparentemente simples: flexibilizar a regulamentação existente e produzir a vacina dentro de portas, em quantidade suficiente para todos os Estados-membros. Objetivos à parte, este é um número concreto: até ao fim de maio, a iniciativa Global Coronavirus Response tinha amealhado 9,8 mil milhões de euros para encontrar a resposta de que todo o mundo está à espera.
Quando chegar o momento, dois problemas podem colocar-se. Um: “a capacidade de produção ser muito inferior à procura. Neste caso, será preciso perceber como será distribuída a capacidade de produção existente. Não é claro que será encontrado um equilíbrio entre rapidez a comprar a vacina, quantidades adquiridas e prioridades para grupos a vacinar”, explica Pita Barros.
Segundo problema: a capacidade financeira de muitos países para aceder à vacina. “Terá provavelmente de ser encontrada uma solução com subsídio cruzado e preços diferenciados. Além do aspeto de solidariedade internacional, é do interesse de todos a contenção da circulação do vírus”, diz o especialista. A UE já expressou esta preocupação, mas assegurou que “vai fazer tudo ao seu alcance para assegurar que todas as pessoas do mundo terão acesso à vacina, independentemente do sítio onde vivam”.
Um bom primeiro passo para espalmar as diferenças nos bolsos de cada país seria cobrar preços diferentes pela mesma vacina. Isto permite que “os países com menos possibilidades não tenham de “remunerar” o esforço de investimento, sendo esse aspeto assegurado pelos preços nos países com maior rendimento”, observa Pita Barros. A ideia é bonita, mas poderá não aguentar contra o “forte excesso de procura” que se prevê. Nesse caso, “poderá colocar-se mesmo a questão de ser necessário definir grupos prioritários de vacinação dentro de cada país: dar primeiro aos que mais possam beneficiar da vacina pelo risco de exposição e consequências da doença, por exemplo.
Ou seja: a UE terá de “atuar rapidamente em termos de contratação junto das companhias que venham a desenvolver a vacina e estar preparada para invocar argumentos de saúde pública para assegurar a produção, mesmo que a empresa original não tenha essa capacidade”. Já há mecanismos internacionais (ao nível das patentes) que permitem que tal aconteça, mas isso não significa que a UE se possa dar ao luxo de não “definir atempadamente regras de distribuição intra-EU no caso de a oferta ser muito inferior à procura”, diz Pita Barros.
E Miguel Araújo Abreu aponta o foco para fora da UE: se uma eventual decisão de assegurar o acesso total a uma vacina “teria graves consequências cá, até do ponto de vista do controlo da epidemia, mais consequências teria ainda em países desfavorecidos como Moçambique, Guiné e outros, que não têm nem capacidade financeira nem diplomática para garantir este tipo de tratamento”. Mesmo nesse cenário, Portugal estaria protegido. “Não acho que fosse algo que pudesse afetar Portugal porque existem relações diplomáticas e a força política, diplomática e económica da União Europeia impediria isso”, diz, dando como exemplo o que aconteceu recentemente em França, depois de a Administração norte-americana ter feito pressão, junto de uma empresa farmacêutica francesa, a Sanofi, para ter a primazia no acesso dos EUA a uma vacina contra a covid-19. “O Governo francês criticou essa iniciativa e a empresa recuou e garantiu que a vacina ficaria disponível em todo o mundo ao mesmo tempo.”
António Morais, pneumologista do Hospital de S. João, mostra algum receio. “Não podemos tomar como garantido que este problema do vírus se resolve com uma vacina, até porque pode não surgir uma que seja eficaz assim tão cedo ou surgir mas não evitar a doença”, mas seria “grave” que “um país qualquer, fosse ele qual fosse, acabasse por reservar a maior parte das vacinas e impedindo que outros países tivessem acesso à mesma”. “Espero que não seja possível privar sobretudo os grupos de risco de terem acesso a um tratamento eficaz. É necessária haver uma supervisão mundial de modo a garantir que têm acesso à vacina aqueles que mais precisam dela”, reforça António Morais.
UM MAU INVESTIMENTO DE TRUMP?
A possibilidade de um país assegurar todo o stock de um tratamento para a covid-19 colocou-se depois de o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA ter anunciado em comunicado a compra de 500 mil doses do fármaco, o que corresponde a 100% da produção da empresa norte-americana Gilead prevista para o mês de julho (94.200 doses), 90% da produção em agosto (174.900 doses) e 90% da produção em setembro (232.800 doses). Mas com isso Miguel Araújo Abreu, o infeciologista que trabalha no hospital de Santo António, não está tão preocupado, e por várias razões: “Este medicamento, o remdesivir, não me entusiasma particularmente. Os dados preliminares a que tivemos acesso mostram que diminui o tempo de internamento dos doentes, mas não a mortalidade, portanto não são nada animadores”.
Não esquecer também que, “por norma, os vírus respiratórios não se resolvem com medicamentos”. “O vírus em si até pode desaparecer rapidamente, mas fica a manifestação imunológica.” E se é verdade que o estudo publicado no final de maio no “New England Journal of Medicine” mostrava que a utilização de remdesivir diminui os dias de internamentos de algumas pessoas infetadas com a covid-19, “de 15 para 10, em média”, há questões que persistem.
E o infeciologista tem mais do que um par delas. “Quanto custa cada dose do medicamento? E quais os efeitos secundários? Só tivemos acesso a um relatório preliminar, precisamos de dados mais robustos para avaliar. Não acredito que haja muitos especialistas entusiasmados com isto. Podem estar mais ou menos otimistas, mas entusiasmados não, nenhum.”
O hospital em que trabalha é um dos que assinaram um protocolo para a administração deste medicamento nos seus doentes, no âmbito da investigação internacional em curso. Mas nem todos são elegíveis. É necessário, antes de mais, um consentimento por parte do paciente, que deve, além disso, “ter mais de 18 anos, necessitar de oxigénio e ventilação mecânica ou ECMO [Oxigenação por Membrana Extracorporal]”, entre outros critérios que “se têm vindo a alargar”. Há também a questão óbvia do consentimento, mas Miguel Araújo Abreu adianta que “foram mais aqueles que aceitaram do que os que recusaram”. De um total de cerca de 60 pessoas que estiveram internadas na unidade de cuidados intensivos do hospital de Santo António, “foi utilizado o remdesivir em cerca de 10”, esclarece também.
Menos cético em relação ao fármaco está António Morais. No S. João, o hospital onde trabalha, também é utilizado o remdesivir em alguns doentes em estado muito grave. “Este fármaco mostrou ser seguro, não acho que haja um perfil de efeitos secundários que leve à sua não utilização.” Além de seguro, “acrescenta algo” ao que tínhamos até agora, e só isso já é positivo. Ainda assim, e apesar da busca obstinada por um medicamento a que se assiste neste momento, “o mais provável é que sejam necessários vários, não apenas um”. Tal confiança no fármaco não significa, porém, que tenha ficado preocupado com a possibilidade de os seus doentes deixarem de ter acesso ao mesmo. “Até ao momento não tive notícia de que haja qualquer espécie de dificuldade no acesso ao fármaco nos casos em que ele é necessário.”
OPTIMISMO E CONFIANÇA NA CIÊNCIA
E entretanto o tempo passa. Vai passando por entre todos os estudos, ensaios, testes e prazos, sempre com a covid-19 mais ou menos na cabeça das pessoas. E isso não é necessariamente mau. “A manutenção das expectativas das pessoas em relação à vacina não é, per se, negativa” diz ao Expresso Augusta Gaspar, coordenadora de Psicologia na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica. “O otimismo moderado, apesar do seu relativo irrealismo, é positivo. Leva à superação e ao improvável. Nesta situação de pandemia mantém a comunidade científica motivada para trabalhar mais e melhor e mantém as populações com a esperança de que tanto necessitam”, acredita a especialista.
No entanto, Augusta Gaspar sinaliza a “fraca compreensão que a classe política tem do processo científico, da lentidão própria do mesmo e dos progressos ‘gota-a-gota’”. Isto pode gerar “uma falsa promessa de normalidade a curto termo, podendo facilitar decisões precipitadas na forma como se reabrem escolas, espectáculos ou como se protegem os mais idosos e frágeis, dado que há indicadores de que a vacina pode não funcionar nas pessoas mais velhas”.
“A comunidade da biomédica está sob uma pressão que nem políticos nem a população em geral parecem entender como é desproporcional”, acrescenta. Por isso, “o mais importante é ter boa informação sobre a lentidão do trabalho científico e ajustar-nos a um futuro próximo diferente, [porque] mais realismo promove melhor ajustamento às novas situações”. O otimismo, esse, tem de estar sempre presente. É difícil saber se Donald Trump está ou não otimista em relação à pandemia mas a sua decisao de comprar indica que não. A compra de todo o stock de remdesivir talvez indique um optimismo cauteloso. E por isso Augusta Santos resume a explicação com um provérbio que o presidente norte-americano certamente conhece: “Hope for the best and prepare for the worst” (Expresso, texto da jornalista Helena Bento)

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