sexta-feira, julho 24, 2020

Covid-19: O caso sueco e a “visão numérica do mundo, em que as pessoas são células de Excel”

A Suécia destaca-se na gestão da pandemia e não é pelas melhores razões. Com uma estratégia assente na responsabilidade individual e sem confinamento, o país compara mal com os seus vizinhos nórdicos (e não só). Por outro lado, “o eventual suposto ganho em imunidade de grupo não se verificou”. Os dois peritos ouvidos pelo Expresso acreditam que não valeu a pena seguir tal estratégia, nem do ponto de vista de saúde pública nem económico. Ao contrário da generalidade dos outros países, a estratégia da Suécia no combate ao coronavírus não passou pela aplicação de medidas de confinamento. Desde o início da pandemia, os suecos estão autorizados a deslocar-se aos locais de trabalho, a comer em restaurantes e a frequentar espaços públicos. A maioria das escolas, restaurantes e bares manteve-se aberta e o distanciamento físico é encorajado mas não imposto. A estratégia concentrou-se ainda no isolamento de grupos de risco e no apelo à responsabilidade individual dos cidadãos.

Esta estratégia tem um nome: Anders Tegnell, epidemiologista-chefe e o principal arquiteto do plano do país no combate à covid-19, a doença associada ao novo coronavírus. Há dois meses, Tegnell rejeitou que o plano passasse por sacrificar determinados grupos da população e descreveu o elevado número de mortes como um acontecimento imprevisto. Mas a ministra da Saúde, Lena Hallengren, reconheceu então que as autoridades “falharam na proteção dos idosos”. Funcionários de lares têm-se queixado da falta de acesso a equipamento de proteção individual e alguns dizem não ter autorização para tratar os pacientes com oxigénio, tendo ainda sido instruídos a não os levarem para os hospitais. Agora que o número de novos casos de infeção e mortes tem vindo a cair, Tegnell destaca as virtudes do seu plano. Os dados são “mais um sinal de que a estratégia sueca está a resultar”, disse esta terça-feira, citado pela agência Reuters. “É possível desacelerar rapidamente o contágio com as medidas que estamos a adotar. Conseguimos fazê-lo com medidas substancialmente menos invasivas [do que outros países]”, salientou.
“NÃO FAÇAM O QUE NÓS FIZEMOS. NÃO ESTÁ A RESULTAR”
Ainda esta terça-feira, 25 médicos e cientistas suecos assinaram uma carta aberta que fala de “uma inquietante taxa de mortalidade” e apela: “Não façam o que nós fizemos. Não está a resultar.” “A Suécia tem um número de mortos mais de quatro vezes e meia superior ao dos outros quatro países nórdicos combinados – mais de sete vezes superior por milhão de habitantes. Durante várias semanas, a Suécia esteve entre os primeiros países do mundo relativamente às mortes per capita. E, apesar disso, a estratégia permanece essencialmente a mesma”, adverte a missiva.
Já em abril, mais de dois mil especialistas suecos assinaram outras duas cartas abertas pela adoção de medidas mais restritivas no país que incluíssem instruções de cumprimento obrigatório por parte dos cidadãos. Na altura, o epidemiologista-chefe acusou os seus subscritores de citarem dados “imprecisos”. Mas os dados são precisos quando revelam que as vítimas mortais por milhão de habitantes na Suécia são mais de cinco vezes mais do que na Dinamarca e quase 12 vezes mais do que na Noruega. Os três países têm densidades populacionais e sistemas de saúde e políticos semelhantes.
A abordagem menos restritiva terá razões culturais e só terá sido possível dada a robustez do Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas não é acompanhada por todos os suecos e está longe de ser consensual entre a comunidade científica. “Os suecos não fizeram muito, deixaram a pandemia correr, ainda que haja algumas limitações a ajuntamentos”, começa por dizer ao Expresso o pneumologista Filipe Froes, coordenador do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos e consultor da Direção-Geral da Saúde (DGS).
OS SUECOS SÃO “O CHAMADO BRAÇO PLACEBO”
“Eles têm características culturais diferentes das características da organização familiar na população mediterrânica. 40% da população adulta na Suécia vive sozinha, a maior parte dos estudantes universitários já não vive com os pais, cerca de 90% da população com mais de 65 anos não vive com ninguém com idade inferior a 40 anos. Uma grande percentagem das pessoas já vive sozinha em casa e a própria cultura organizacional familiar sueca não se baseia tanto num contacto tão frequente das famílias como no sul da Europa”, distingue. “É evidente que tiveram um impacto enorme na população de risco e não tiveram uma situação tão dramática em termos de SNS, como vimos em Espanha ou em Itália, porque a capacidade do SNS sueco é, em média, três vezes superior à nossa”, diz ainda.
Comparativamente aos restantes países europeus, “eles são o chamado braço placebo”, refere o consultor da DGS. “Todos os países implementaram medidas e eles são o braço experimental da não implementação de medidas. O que a experiência sueca demonstra é que esta situação é suficientemente grave e justifica amplamente a adoção de medidas de saúde pública que preservem a sociedade no seu todo e, em particular, os grupos de risco”, sublinha Filipe Froes.
Questionado sobre uma ligeira revisão do plano, quando no mês passado a Suécia reconheceu pela primeira vez que devia ter imposto mais medidas restritivas, o pneumologista lembra que “numa pandemia, quando as decisões são mal fundamentadas, há sempre vítimas”. “Quando se toma as decisões, tem de se ter a noção de que não se pode voltar atrás. A prudência é um fator decisivo na adoção de medidas porque não é depois de vários mortos que se lamenta não se ter tido essa informação. O peso sagrado da vida obriga-nos a tomar decisões com um maior nível de fundamentação, responsabilidade e prudência. Em saúde, na maior parte das vezes, não podemos voltar atrás nas decisões que tomamos porque as pessoas já faleceram ou já têm sequelas irreversíveis”, insiste.
Filipe Froes lembra que “o eventual suposto ganho em imunidade de grupo não se verificou”. “É certo que as contas se fazem no fim mas, neste momento, a estratégia da Suécia não parece ter viabilidade para ser adotada no futuro combate a uma pandemia”, salienta, destacando ainda que “isto de tomar medidas com base em indicadores epidemiologistas é muito bonito mas depois são os outros a pagar com a vida”. “A epidemiologia é apenas um capitulo da saúde pública. Uma pessoa que vê o mundo pelo Excel, que é o que faz um epidemiologista, não vê doentes, não vê sofrimento, não vê as consequências”, remata o pneumologista, que recusa esta “visão numérica do mundo, em que as pessoas são células de Excel”.
ECONOMIA SUECA DEVERÁ CONTRAIR MAIS DE 5%
Mas não é só ao nível da saúde pública que o modelo sueco se afigura de replicação duvidosa. Uma reportagem da CNN contava esta segunda-feira que o país está a pagar um preço humano e económico por não ter confinado. A abordagem suave à pandemia, também com o objetivo de proteger o tecido económico, não protegeu a Suécia de graves consequências económicas. Prevê-se que a economia do país contraia este ano mais de 5%, com centenas de milhares de suecos a perderem os seus empregos, adianta a estação de televisão.
Óscar Felgueiras, professor na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP), lembra que “todos os países vizinhos (e não só) cortaram as entradas de suecos”. “No início, houve um discurso arrogante dos suecos, de acharem que eles é que estavam certos e os outros é que estavam errados. E essa postura agora revela-se não ter sido a melhor e eles percebem-no da forma que lhes custa mais, que é na carteira”, sentencia ao Expresso.
“Nos mapas de incidência por regiões, feitos semanalmente pelo Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças, a Suécia aparece sempre como o pior país da Europa, o que obviamente não é cartão de visita para ninguém. A Suécia tem uma prevalência de infeção generalizada, uma elevada incidência em várias regiões”, prossegue o professor da FCUP. E termina, dizendo: “Essas consequências negativas que se sentem na economia dos países com alta incidência – por exemplo, com o fecho das fronteiras aos seus cidadãos – acabam por ter o efeito benéfico de motivarem um combate mais efetivo à pandemia, precisamente para voltarem a ter uma economia a funcionar melhor”. Segundo os dados mais recentes da Universidade Johns Hopkins, a Suécia tem atualmente um total de 78.166 casos confirmados de infeção e 5.646 mortes associadas à covid-19 (Expresso, texto do jornalista Hélder Gomes)

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