sábado, junho 27, 2020

Reunião no Infarmed: Especialistas contrariam discurso de Costa de que testes explicam tudo

O primeiro-ministro procurou confirmar que aumento de casos em Lisboa e Vale do Tejo se deve a aumento de testes. Epidemiologistas retiraram força a essa tese, salvaguardaram que isso não explica toda a realidade e disseram que o problema é real. Hipótese de segunda onda de contágios existe. O que está confirmado é que começou a luta política a propósito da pandemia. António Costa apareceu na reunião quinzenal do Infarmed, que junta especialistas, destacadas figuras de Estado e líderes partidários, disposto a provar a tese de que o aumento de casos na região de Lisboa e Vale do Tejo se devia ao aumento da capacidade de testagem, um argumento que o Governo, a diversas vozes, tem usado para criticar as reservas levantadas por outros países europeus. Mas os epidemiologistas presentes levantaram reservas em relação a esse argumento: o aumento de testes não justifica todos os casos. O problema é real, o número médio de internados aumentou, o número de pessoas em cuidados intensivos também e a região pode estar a iniciar uma segunda onda de contágios.
No fim da reunião, o que se percebeu é que começou um novo momento político: a pandemia e os próprios dados passaram a ser motivo de luta partidária: PSD, CDS, Bloco e PAN fizeram críticas no final, com um discurso de tom diferente do Presidente da República em relação ao conteúdo da reunião. Marcelo Rebelo de Sousa é que manteve a linha que traçou, sem descolar do Governo: no topo do poder não pode haver divergências públicas sobre a pandemia, é a tese que prevalece em Belém.

“Os especialistas acabaram por desmentir o primeiro-ministro. De forma elegante, mas fizeram-no”, conta ao Expresso fonte que esteve presente na reunião. “O ambiente não foi o melhor depois das intervenções de Baltazar Nunes [Escola Nacional de Saúde Pública] e Rita Sá Machado [Direção-Geral de Saúde]”, nota outra fonte. “Tentou colocar a hipótese, de forma quase afirmativa. Mas acabou contrariado”, diz outro dos participantes.
A tese defendida pelo Governo (e subscrita, em parte, por Marcelo Rebelo de Sousa) acabou assim por perder alguma força. E há um dado, apresentado nesta mesma reunião, muito relevante: por cada 28 testes realizados Portugal regista um caso positivo, o que coloca o país entre os piores da Europa a 27. Ou seja, existe de facto um problema de contágio e mais: desde maio, existe um aumento médio constante de internamentos e de internamentos em cuidados intensivos na região.
Houve uma outra questão assumida pelos epidemiologistas: existiu, de facto, uma diminuição do número de testes realizados nos últimos 15 dias, que os especialistas atribuíram ao período dos feriados. Um dado que reforça a notícia avançada terça-feira pelo Jornal de Negócios: segundo os dados oficiais divulgados pelas autoridades de saúde o número médio de testes de diagnóstico de covid-19 realizados diariamente caiu 24% desde o início da reabertura da economia, a 4 de maio. Mais: Portugal está, neste momento, a fazer um média de um teste por cada mil habitantes, mas a 18 de maio estava a fazer 1,5 testes por cada mil habitantes.
O primeiro-ministro não escondeu, aliás, algum desagrado com a falta de dados disponíveis e chegou mesmo a criticar informação sobre testagem, nomeadamente o facto de o Instituto Ricardo Jorge só compilar dados do SNS e não dos laboratórios privados - a que muitas empresas sobretudo de construção civil tinham recorrido.
À saída da reunião, Marcelo Rebelo de Sousa tentou desdramatizar a situação. O Presidente da República não só garantiu que a situação estava controlada, como justificou o número de infectados com o aumento de testes. "Temos adotado a metodologia da verdade. Não escondemos números”, disse. Na reunião, o Presidente da República perguntou se os novos casos podem ser de população trabalhadora que nunca chegou a confinar e que a situação só se conheceu por causa dos testes entretanto realizados. Costa acompanhou a ideia do Presidente, mas só com mais estudos será possível apurar melhor o que se passou - uma resposta que foi um eixo central do discurso do Presidente à saída.
Quando acabou a reunião, Ricardo Baptista Leite (PSD), Moisés Ferreira (BE) e Francisco Rodrigues dos Santos (CDS) alinhariam pela explicação dada pelos especialistas: o aumento de testes não justifica por si só o fenómeno que se regista em Lisboa e Vale do Tejo; é preciso reconhecer o problema e adotar medidas para travar um aumento exponencial de casos. Também PAN, Verdes, Iniciativa Liberal e Chega apontaram criticas ao Governo.
JOVENS NÃO SÃO O PRINCIPAL PROBLEMA, MAS DESCONHECIMENTO É GRANDE
A região de Lisboa e Vale do Tejo continua a ser o foco da maior preocupação com o surgimento de mais surtos e isso refletiu-se na discussão desta quarta-feira. Em termos globais o R situa-se em 1,08, com algumas variações, o que, isoladamente, não seria um fator alarmante. Mas, a verdade, é que nem mesmo os técnicos de saúde ouvidos pelo Governo e líderes partidários souberam avançar com explicações concretas sobre o aumento de contágios registado.
Na reunião, no entanto, foi retirada alguma carga ao comportamento dos jovens como principal fator de transmissão. A coabitação, os locais de trabalho e as situações sociais dos doentes foram apontadas como as principais razões do aumento de casos, pelo que dificilmente as festas ilegais - que levaram o Governo a prometer mão pesada para os prevaricadores - podem ser usadas como catalisadores determinantes. Nas freguesias da Grande Lisboa assinaladas pelas autoridades, o mais lógico, assumiram os especialistas, é que o aumento de casos esteja relacionado com as condições de habitação e de trabalho.
Marcelo Rebelo de Sousa teve preocupação de abordar a intenção de articular o discurso público e todos acabaram por concordaram com a hipótese de se afinar a articulação do discurso político com marketing social para passar mensagens à população ou subpopulações tendo em conta fatores específicos, fazendo um discurso direcionado.
A esse respeito, Manuel Carmo Gomes, professor de Epidemiologia da Universidade de Lisboa e um dos conselheiros de António Costa, defendeu que medidas gerais serão mais ineficazes do que as mais dirigidas. António Costa voltou a pedir explicações mais concretas sobre o surto, mas não se avançou com medidas concretas.
Foi reconhecido que existe já alguma pressão sobre os hospitais, mas o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, por exemplo, só tem um taxa de ocupação de 25% para doentes Covid-19, pelo que há margem de resposta. A situação, como afirmou Marcelo, não está “descontrolada”, mas é preciso travar a progressão do vírus na região sob pena de tudo se precipitar (Expresso, texto dos jornalistas Miguel Santos Carrapatoso, MarianaLima Cunha e Liliana Coelho)

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