quinta-feira, maio 07, 2020

Como é que a decisão dos juízes alemães contra o BCE pode afetar Portugal?

Conheça as consequências da decisão do Tribunal Constitucional alemão na política monetária, nos mercados financeiros, no ambiente político na zona euro e nos juros portugueses.
Um coletivo de juízes na Alemanha desafiou esta terça-feira as instituições europeias, mas, mais do que isso, pos em causa a forma como o Banco Central Europeu tem ajudado os países do euro a atravessarem as crises.
A sentença está focada em 2015 mas, se a decisão tiver pernas para andar, a médio prazo, a própria resposta do banco central a esta crise pandémica, que está a ser decisiva e, até agora, quase solitária, pode ficar em causa.
Analisamos em detalhe o que diz a sentença e explicamos-lhe as consequências que dela poderão advir.
1 - Porque é que o Tribunal Constitucional alemão proferiu, esta semana, uma sentença sobre a política monetária do BCE?
- Porque em 2015 foram apresentadas várias queixas neste Tribunal federal sedeado em Karlsruhe, subscritas por 1750 cidadãos alemães, sobretudo economistas e juristas, entre eles o fundador do partido Alternativa para a Alemanha, de extrema-direita, contra o programa de aquisição de dívida pública (conhecido pela sigla em inglês PSPP) lançado pelo BCE.
Os queixosos consideraram que o BCE estava a violar o artigo 123 do Tratado de Funcionamento da União Europeia que proíbe liminarmente o financiamento dos Estados pelo banco central, seja através de créditos diretos, seja por aquisição da dívida emitida por aqueles no mercado primário (onde se realizam operações sindicadas e leilões de emissão de dívida pelos governos).
2 - O que decidiram os juízes alemães ao fim de quase cinco anos?
- A sentença proferida a 5 de maio tem duas componentes fundamentais. Na primeira, não deu razão aos queixosos, pois considerou que o BCE não tem financiado os Estados membros do euro ao comprar dívida no âmbito do PSPP. Deste modo, não tem violado o artigo 123. Mas, em contrapartida, considerou que o BCE feriu o princípio da proporcionalidade com o programa de aquisição de dívida pública. Deste modo, o BCE estaria a violar o artigo 5 do Tratado e tem agido ilegalmente quanto ao programa de compra iniciado em 2015 e reativado em novembro do ano passado.

3 - Esta decisão do Constitucional alemão teve impacto no mercado financeiro?
- Sim, teve algum impacto, ao provocar uma subida nas taxas de juro das obrigações no mercado secundário da dívida – o mercado onde os investidores compram e vendem entre si títulos. No entanto, não se observou um disparo, como, por exemplo, quando Christine Lagarde cometeu a gaffe, em março, de dar a entender que o BCE deixaria Itália à sua sorte no caso do prémio de risco da dívida italiana disparar.
Então, aquando do erro de Lagarde, os juros das obrigações portuguesas a 10 anos chegaram a 1,6%. Agora, subiram ligeiramente de 0,875% a 4 de maio para 0,9% a 5 de maio. Mesmo, no caso de Itália, que é a economia do euro mais vulnerável a ataques especulativos no mercado da dívida, as taxas subiram para 1,87%, mas estão abaixo de 3% atingidos aquando do erro de Lagarde.
4 - A sentença pode ameaçar o programa de compra de dívida de que Portugal tem beneficiado desde 2015?
- Por enquanto, a decisão dos juízes não se aplica, pois a sentença deu três meses ao BCE para clarificar se viola o princípio da proporcionalidade. Até agora, o BCE já comprou 42,65 mil milhões de euros em obrigações portuguesas, o que representa 17% da dívida total e 31% da dívida obrigacionista. Esse montante já está muito próximo do resgate feito pelos dois fundos europeus da troika, aos quais ainda se devem 49,63 mil milhões. Mas, caso a resposta do BCE venha a ser considerada não satisfatória pelos juízes alemães, o impacto nos mercados financeiros poderá ser muito grave e afetar o custo de financiamento da dívida portuguesa que tem estado em mínimos históricos.
5 - A decisão abrange o programa de emergência lançado pelo BCE em março que prevê a compra adicional de 750 mil milhões de euros de ativos, da qual Portugal também beneficia?
- Não. A sentença diz respeito apenas ao programa lançado em 2015. Não sentencia sobre o que foi aprovado para responder à atual pandemia, que é designado pelo acrónimo PEPP, e que está em curso desde 26 de março, tendo já comprado cerca de 100 mil milhões de euros, de que não se sabe ainda a repartição nacional. Se for aplicada a chave de capital ajustada correspondente a Portugal (2,34%), o BCE comprará, este ano, mais cerca de 18 mil milhões de euros em ativos portugueses, dos quais, 14 a 15 mil milhões em dívida pública, que servirá para cobrir o disparo do défice das contas portuguesas, se este não ultrapassar os 8,4%. Ou seja, o BCE cobre uma derrapagem acima da previsão de 7,1% do Fundo Monetário Internacional e de 6,5% da Comissão Europeia.
6 - Mas é provável que sejam apresentadas também queixas contra o programa especial lançado em março?
- Sim. Vários economistas e juristas têm apontado que essa pode ser a nova fase de ataque ao BCE na Alemanha. Vítor Constâncio, ex-vice-presidente do BCE, já avisou que essa vai ser a próxima etapa. No entanto, as queixas, mesmo que apresentadas em breve, levarão tempo a ser apreciadas pelo Constitucional alemão, pelo que o efeito prático em relação a esta resposta de emergência será nulo, pelo menos a curto prazo.
7 - O que é o princípio da proporcionalidade alegado pelos juízes alemães?
- O Tribunal alemão entende que o programa está a “ignorar os efeitos económicos” indesejáveis no plano económico e está a tornar-se prisioneiro politicamente dos estados membros. Os efeitos económicos negativos, listados pelo Tribunal, fazem sentir-se sobretudo nos aforradores privados que vêem as poupanças cada vez mais deterioradas e na manutenção de empresas inviáveis em virtude do financiamento barato do crédito à economia real. Por outro lado, quanto mais tempo durar o programa de compra de dívida (já vai em cinco anos) e quanto maior for o seu volume financeiro (já soma 2,2 biliões de euros, perto de 40% do PIB da zona euro), maior o risco do BCE se tornar “dependente da política dos estados membros” que poderão dificultar a descontinuidade do programa, pois sempre se poderá argumentar que esta poderá “colocar em risco a estabilidade do sistema monetário”.
8 - Quais as consequências imediatas da decisão tomada em Karlsruhe?
- Os juízes alemães deram 90 dias para o BCE realizar uma avaliação em que “demonstre que o programa não tem efeitos desproporcionais na política orçamental”. O Tribunal determina que o governo de Angela Merkel e o parlamento alemão “tomem medidas” para garantir que o BCE clarifica a questão levantada. A sentença considera que os governos de Merkel e o Parlamento alemão “violaram” o dever de terem tomado medidas que impedissem o BCE de infringir o princípio da proporcionalidade.
9 - O que vai fazer o BCE?
- O BCE respondeu, no próprio dia, que tomou “nota” da decisão do Tribunal alemão, mas reafirmou que atua no quadro do seu mandato e que essa legitimidade foi reafirmada pela decisão de dezembro de 2018 do Tribunal de Justiça da União Europeia. Já o presidente do Bundesbank, o banco central alemão, Jens Weidmann, declarou que “apoiará todos os esforços [do BCE] para responder ao requisito”.
10 - Se o BCE não convencer os juízes alemães, o que acontece?
- O tribunal determinou que, passado o período transitório de três meses, o Bundesbank deverá deixar de participar no programa de aquisição de dívida lançado em 2015 e que foi reativado em novembro passado e reforçado recentemente com um envelope de mais 120 mil milhões de euros. O programa prevê uma aquisição de cerca de 30 mil milhões de euros por mês de dívida pública ao longo de 2020. E, além disso, decidiu que o Bundesbank planeie com o BCE um processo “possivelmente de longo prazo” para vender no mercado os títulos de dívida alemã que tem em carteira e que somam, à data, cerca de 534 mil milhões de euros, quase um quarto do total do programa.
11 - Uma saída do Bundesbank afeta o programa?
- Alguns analistas consideram que o fere de morte, pois a principal economia do euro - a Alemanha - e o principal banco central nacional - Bundesbank - detentor de dívida pública são forçadas a abandonar o programa deixando de comprar um quarto da injeção global pretendida e colocando um problema adicional de inundação do mercado – mesmo que faseada – da dívida alemã que está na carteira do Bundesbank. Mas outros analistas entendem que o BCE pode decidir que os restantes bancos centrais nacionais do sistema do euro devem assumir a parte até então comprada pelo Bundesbank, alterando a regra de que cada banco central nacional adquire o grosso da dívida do seu país e assume o risco por ela. Decisão politica e tecnicamente complexa.
12 - O Tribunal alemão pode ir contra uma decisão do Tribunal de Justiça europeu?
- Segundo a Comissão Europeia, numa resposta imediata do seu porta-voz, as decisões do Tribunal europeu sediado no Luxemburgo têm primazia sobre as instituições nacionais e têm de ser acatadas. Para os juízes alemães isso não se aplica quando o Tribunal europeu extravasa as suas competências e decide incorretamente à luz dos próprios princípios do Tratado europeu. Os juízes de Karlsruhe entendem que é o caso. Referem que pode haver “algumas tensões” entre órgãos judiciais a resolver de “modo cooperante” e que, acima de tudo, a União Europeia “não evoluiu para um estado federal” e que são os estados membros os “donos dos Tratados”.
13 - A decisão dos alemães afeta a independência do BCE?
- Muitos analistas acham que sim. Clemens Fuest, presidente do instituto económico alemão Ifo, considerou até que a sentença de Karlsruhe é uma "declaração de guerra" ao BCE, tornando-o, a partir de agora, prisioneiro de ultimatos de um Tribunal constitucional nacional e da pressão direta dos governos e dos parlamentos nacionais respetivos obrigados a atuar pelas decisões dos seus tribunais constitucionais. Lucas Guttenberg, diretor de investigação no Instituto Jacques Delors em Berlim, considera que o Constitucional alemão resolveu "usar a arma nuclear" em relação às bazucas do BCE (Expresso, pelo jornalista Jorge Nascimento Rodrigues)

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