Os líderes europeus discutem esta quinta-feira
o que vai ser o Fundo de Recuperação para financiar os estragos no dia seguinte
ao fim da pandemia. Bruxelas avançou esta manhã com uma proposta técnica de um
Fundo de €1,6 biliões. Não se espera que haja já fumo branco sobre se vamos ter
obrigações europeias com o risco partilhado por todos, seja qual for o nome de
batismo que se lhe der, ou mesmo se não se tiver etiqueta nenhuma. O braço de
ferro político deverá continuar até à cimeira de junho. O Expresso explica-lhe
tudo o que está em causa. O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, em
videoconferência com dirigentes da Europa.
Para um país que viveu, nos últimos 200 anos,
três crises de dívida pública, qualquer debate sobre emissão de obrigações
europeias deve ser seguido com o máximo de atenção. Nestas três crises
(1837-1852; 1892; 2011), Portugal teve cinco bancarrotas e reestruturações de
dívida e, no caso mais recente, um resgate da troika. Saber, por isso, com que
linhas se vão financiar os estragos de uma das maiores recessões de sempre, é
um assunto crucial. A discussão que esta quinta-feira os chefes de Estado e de
governo vão continuar na reunião informal do Conselho Europeu é de particular
importância para Portugal, cujo prémio de risco da dívida face à Alemanha
multiplicou por quatro em apenas dois meses. A batalha política deverá
continuar até à cimeira de junho.
O que voltou a estar em causa é a necessidade
de um mecanismo financeiro europeu de emissão de dívida conjunta com o risco
partilhado por todos. Eurobonds é o nome de guerra deste tipo de dívida
coletiva que tem pairado sobre a União Europeia há décadas e que agora foi
rebatizado como Coronabonds. Há nove anos, a proposta da Comissão Europeia,
então presidida por Durão Barroso, para o lançamento de obrigações europeias,
batizadas então de Stability Bonds, para enfrentar a crise das dívidas dos
periféricos foi para o caixote do lixo. O português comprou uma guerra com a
chanceler alemã e perdeu-a. Ficou célebre a frase de Angela Merkel: “Não,
enquanto eu for viva”. Desta vez, pela primeira vez, um grupo de nove estados
membros do euro defendeu publicamente a necessidade da emissão deste tipo de dívida
para financiar a saída da maior crise económica desde a Grande Depressão do
século passado. Chamaram-lhe Coronabonds por causa do coronavírus. O nome já
ficou pelo caminho, mas os proponentes conseguiram, na última reunião do
Eurogrupo, uma meia vitória, o lançamento de um Fundo para a Recuperação. Um
instrumento financeiro novo que, por agora, não passa de um nome. Falta dar-lhe
o miolo, o “como” financiar e o “como” usar. No entanto, o passo dado esta
quinta-feira pela própria Comissão ao avançar para a reunião com um documento
técnico com uma proposta de um Fundo de Recuperação de 1,6 a 2 biliões de
euros, com os primeiros financiamentos a ocorrerem ainda até final do ano, é
mais uma evolução importante. Este guia não pretende antecipar o futuro nem adivinhar
o que os líderes europeus poderão acordar até ao verão. Apenas permitir ao
leitor saber o que está em jogo, que posições mais importantes se confrontam e
quais as implicações dos vários cenários em Portugal.
1 - POR QUE RAZÃO EM MOMENTOS DE CRISES GRAVES
NA UNIÃO EUROPEIA REAPARECE SEMPRE A PROPOSTA DOS EUROBONDS?
Porque emitir dívida conjunta, através de
obrigações europeias (eurobonds), garantidas por todos, incluindo aqueles que
têm rating máximo, permite ir ao mercado em melhores condições do que cada país
em isolado tentar financiar volumes anormais de endividamento gerado por
circunstâncias extraordinárias. A maioria dos títulos conjuntos, emitidos pela
Comissão Europeia ou por veículos conjuntos (como o Mecanismo Europeu de
Estabilidade desde 2012) tem notação máxima, de triplo A, são procurados pelos
investidores como valores seguros. O juro a pagar não é penalizado pelo prémio
de risco mais alto que os investidores sempre exigem quanto compram dívida dos
países sobreendividados e economicamente mais frágeis. Em momentos de crise,
que se repercutem sempre de um modo desigual (assimétrico, como dizem os
especialistas) no seio da União, os países com nível de endividamento mais alto
são mais sensíveis às mudanças súbitas do 'sentimento' dos investidores.
2 - O QUE SÃO OS CORONABONDS?
O nome é uma variante dos eurobonds, mas
adaptada à circunstância da crise atual provocada pela pandemia do coronavírus.
A proposta avançada a 25 de março por nove estados membros do euro – entre eles
Portugal – pretendia a emissão de dívida comum para financiar especificamente o
endividamento adicional de recuperação da economia que os estados membros vão
ter de fazer depois de terminar a pandemia.
3 - OS CORONABONDS, NA IDEIA INICIAL,
DESTINAVAM-SE A FINANCIAR O QUÊ?
Esses títulos não se destinavam a financiar
dívida do passado, nem mesmo as necessidades de financiamento, elevadíssimas,
deste ano. Mas o endividamento futuro depois da pandemia. Para as necessidades
de curto prazo, o Eurogrupo avançou com um pacote de três linhas de
financiamento, através do Mecanismo Europeu de Estabilidade (o fundo de resgate
sediado no Luxemburgo), do Banco Europeu de Investimentos, e do programa
especial da Comissão Europeia batizado de SURE, para apoiar os custos elevados
que os lay off vão provocar.
4 - A SITUAÇÃO ATUAL EXIGIRIA ESSE TIPO DE
DÍVIDA EUROPEIA?
No momento atual ainda não. Os países membros
ainda conseguem ir ao mercado financiar-se a juros relativamente baixos, mesmo
que já não estejam em mínimos históricos. Até a Grécia, que tem rating de
dívida altamente especulativa (notação B), consegue financiar-se a taxas ainda
comportáveis. No entanto, desde março que os juros têm subido e que os prémios
de risco estão a aumentar à medida que a dimensão dos estragos desta crise pandémica
se avoluma.
5 - QUANDO É QUE O PROBLEMA SE PODE COLOCAR?
Segundo os analistas financeiros, a situação
crítica pode surgir quando as agências de rating começarem a cortar nas notações
das economias com maior nível de endividamento depois do disparo dos défices
orçamentais que se esperam para 2020. Se hoje são apenas três os países do euro
com dívida acima de 100% do PIB – Grécia, Itália e Portugal -, no final do ano
serão sete – entram Bélgica, Chipre, Espanha e França, segundo as previsões do
Fundo Monetário Internacional. A dívida portuguesa deverá atingir 135% do PIB,
um máximo histórico. A economia com o rating na corda bamba é a Itália. As
notações são similares à portuguesa, mas tem uma perspetiva negativa por parte
da Fitch e da S&P. Esta última revê a situação italiana já na próxima
sexta-feira. No entanto, o Banco Central Europeu (BCE), desde março, que está a
comprar dívida especulativa helénica nos dois programas de compra que tem em
curso, e decidiu, esta semana, que títulos públicos e privados que possam vir a
ter notação de lixo financeiro no futuro, mas que não tinham até agora, serão
elegíveis para as compras do BCE.
6 - A EMISSÃO DE EUROBONDS SERIA UMA NOVIDADE?
Não. A Comunidade Económica Europeia (CEE),
antecessora da União Europeia, aprovou a emissão deste tipo de obrigações em
fevereiro de 1975 para responder ao impacto dramático da crise petrolífera nas
balanças de pagamentos. Em termos reais, o preço do barril subiu 20% em 1975 e
15% em 1976. Criou um instrumento financeiro que batizou com o nome de
Community Loan Mechanism. A iniciativa deste tipo de obrigações europeias foi
da Alemanha, pela mão do chanceler social-democrata Helmut Schmidt. A Comissão
Europeia contraiu dívida junto de investidores privados e os primeiros empréstimos
em 1976 para a Irlanda e Itália foram feitos pelo Banco de Pagamentos
Internacional. O mecanismo funcionou até aos anos 90 do século passado.
Portugal beneficiou de empréstimos deste tipo em 1987 no valor de 2,6% do PIB,
já depois de ter aderido à CEE.
7 - QUANDO FOI A ÚLTIMA VEZ QUE HOUVE POLÉMICA
NA UNIÃO EUROPEIA SOBRE EUROBONDS?
Em novembro de 2011. Quando a Comissão
Europeia então liderada por Durão Barroso propôs a criação de obrigações para a
estabilidade (stability bonds) para responder conjuntamente à crise das dívidas
dos periféricos do euro, entre eles Portugal. Ainda em novembro de 2012, já
depois de Mario Draghi ter assegurado que o BCE faria tudo para segurar o euro,
Barroso defendeu a introdução deste tipo de obrigações progressivamente, “passo
a passo”, por maturidades. das mais curtas para as mais longas. Ficou célebre a
oposição liminar de Merkel: “Não, enquanto eu for viva”.
8 - DESDE ESSA ALTURA TÊM SURGIDO PROPOSTAS DE
DÍVIDA MUTUALIZADA EUROPEIA?
Sim. Da parte de académicos e especialistas. A
proposta politicamente mais relevante foi avançada pelo Conselho de Peritos
Económicos alemães, que apontava para a criação de um Fundo de Redenção da
dívida pública europeia, que juntasse os títulos de dívida dos diversos países
do euro acima de um montante equivalente a 60% do PIB de cada país. Esse
patamar é o limite máximo de endividamento permitido pelos Tratados da União,
apesar de não ser cumprido por muitos. No final do ano passado, eram oito os em
incumprimento, entre eles Portugal. Tratava-se de refinanciar coletivamente uma
parte do stock de dívida dos países acima desse limiar. Não é o mesmo do que os
coronabonds ou os eurobonds propostos pela Comissão Barroso.
9 - OS CORONABONDS AINDA ESTÃO DE PÉ?
Já ninguém fala neles. Os proponentes aceitaram
a criação de um Fundo de Recuperação para depois do fim da pandemia. A proposta
foi avançada pelos franceses antes da última reunião do Eurogrupo e acabaria
por reunir o consenso como “quarto pilar” do pacote de medidas anunciado por
Mário Centeno depois da maratona da última reunião de 9 de abril. O ministro
gaulês Bruno Le Maire considerou, então, a inclusão deste quarto instrumento
financeiro como uma “vitória”, como “um passo verdadeiramente grande”.
10 - O FUNDO DE RECUPERAÇÃO É PARA DIMINUIR A
DÍVIDA CRÓNICA DOS SOBREENDIVIDADOS?
Não. O Fundo de Recuperação não se destina a
apoiar as necessidades de financiamento de combate à pandemia em curso, mas tem
por missão apoiar o dia seguinte ao fim desta crise. De modo a que as economias
mais frágeis do euro não defrontem um ataque especulativo no mercado da dívida
e não se volte a correr o risco de uma série de incumprimentos como em 2010 a
2013.
11 - O QUE SERÁ O FUNDO DE RECUPERAÇÃO?
Ainda não se sabe. O seu miolo ainda está por
definir e é precisamente o centro da batalha política em curso. Mas é, desde
já, uma alternativa clara ao mini fundo de 20 mil milhões proposto pela Holanda
para a atribuição de subsídios ao financiamento dos custos da crise sanitária,
certamente uma “fisga” na classificação do primeiro ministro português António
Costa. As propostas para o montante do Fundo de Recuperação variam entre 1
bilião sugerido pelos franceses e 1,5 biliões, proposto formalmente pelo
executivo de Pedro Sánchez. Centeno já disse que será um número na ordem de
“doze zeros” (bilião). Esta quinta-feira, conheceu-se um documento técnico da
Comissão Europeia com uma proposta até €2 biliões.
12 - QUAL A BASE LEGAL PARA ESSE FUNDO?
Tal como o programa SURE já aprovado no
Eurogrupo, o Fundo de Recuperação pode basear-se no parágrafo 2 do artigo 122
do Tratado de funcionamento da União. Onde se lê: “Sempre que um Estado-Membro
se encontre em dificuldades ou sob grave ameaça de dificuldades devidas a
calamidades naturais ou ocorrências excecionais que não possa controlar, o
Conselho, sob proposta da Comissão, pode, sob certas condições, conceder ajuda
financeira da União ao Estado-Membro em questão”. A situação de pandemia é uma
ocorrência excecional que, além do mais, abrange todos os estados membros.
13 - COMO SERÁ FINANCIADO?
Esse é o primeiro ponto da discórdia. As
propostas francesa e espanhola pressupõem que será financiado por emissão de
dívida conjunta no mercado, com o risco garantido por todos, e que deverá estar
relacionado com o Quadro Financeiro Plurianual (QFP) da União Europeia que
deveria garantir aos investidores o pagamento dos encargos da dívida através de
recursos adicionais. A maioria dos proponentes quer que a dívida emitida seja
de muito longo prazo, posição que parece recolher, também, o apoio da Comissão
Europeia. Os espanhóis querem mesmo que seja perpétua, isto é, que só se paguem
os juros aos investidores que ficariam em carteira com os títulos.
14 - A ALEMANHA JÁ DEU LUZ VERDE?
A chanceler alemã mostrou esta semana, num
encontro com jornalistas em Berlim, abertura a “imaginar” o uso de tal tipo de
instrumentos financeiros “mais adiante”. Mas nada está assente. O confronto
mais agudo corporizado pelas posições extremas da Holanda, feroz opositor à
emissão de dívida conjunta, e a Itália, que só aceita coronabonds, parece ter
sido ultrapassado com a procura de uma solução de compromisso por parte da
Alemanha, França e Espanha.
15 - QUE PROBLEMAS SE COLOCAM AO FINANCIAMENTO?
As questões que se colocam são várias, e há, à
partida, divergências ou nuances no seio dos estados membros sobre esse
financiamento. Quem deverá emitir essa dívida no mercado, a Comissão Europeia
através de um veículo específico criado propositadamente para o efeito, ou
outra entidade já existente – Banco Europeu de Investimentos ou mesmo Mecanismo
Europeu de Estabilidade - em nome da União? A garantia do risco é assumida por
todos, a dívida é totalmente mutualizada, ou cada um só responde por uma parte?
Em que moldes é feita a “ligação” entre o Fundo e o QFP?
16 - COMO É ASSEGURADO O PAGAMENTO DOS JUROS
DA DÍVIDA EMITIDA?
É mais um ponto de polémica. Será por recursos
próprios do Fundo ou através da margem de recursos adicionais que o orçamento
da União dispõe? Vão ser criados, para esse feito, novos impostos à escala europeia,
como propõe o executivo espanhol, para aumentar esses recursos adicionais do
orçamento que atualmente se baseiam nos direitos alfandegários e numa parte do
IVA? O rascunho da proposta que a Comissão Europeia esteve a trabalhar
implicaria elevar o teto atual do orçamento comunitário de 0,97% para 1,3% do
Rendimento Bruto Nacional e somar-lhe em recursos adicionais uma margem de mais
seis décimas para a fase mais aguda da recuperação até 2022.
17 - E COMO VAI EMPRESTAR O DINHEIRO AOS
PAÍSES NECESSITADOS?
A grande divisão política situa-se entre os
que acham que o dinheiro não deve ser emprestado, mas sim concedido através de
subsídios (como noutras intervenções da Comissão Europeia), de transferências a
fundo perdido, como explicitamente defende Pedro Sánchez. O objetivo é que esse
apoio não conte para o aumento da dívida pública de cada país que a ele
recorre. Os países que vão registar um disparo de dívida em 2020 para muito
acima de 100% (como será o caso de oito membros do euro, entre eles Portugal), pretendem
reduzir a dívida em 2021 e não aumentá-la ainda mais. Mas muitos outros
defendem, que o dinheiro deve ser emprestado, ainda que com maturidades longas,
de modo aos encargos dessa dívida se distribuírem por um período, o mais longo
possível, dando margem à geração de excedentes orçamentais para os pagar com
folga. O problema é que esses empréstimos transmitirão a carga negativa de mais
um resgate. A proposta da Comissão Europeia inclina-se para uma solução mista,
em que parte das ajudas seja reembolsável.
18 - E COMO SERÁ APLICADO ESSE DINHEIRO?
Os critérios de onde aplicar esse dinheiro
poderão, também, gerar conflito político. A proposta espanhola entende que
deverá ser destinado ao financiamento da transição ecológica e digital, de um
programa para a autonomia estratégica da indústria e das tecnologias europeias,
e para investimentos no transporte e da recuperação do turismo.
19 - QUAL O PAPEL DO BANCO CENTRAL EUROPEU?
A proposta de mutualização dessa nova dívida
conjunta pressupõe que, depois, no mercado secundário, o BCE a irá comprar e
que a manterá em carteira pelo período mais longo possível, dando, deste modo,
garantia aos investidores que uma parte desses títulos tem um comprador no
final. O que isso exige é que o BCE prossiga em 2021 e eventualmente em anos
seguintes com algum programa de aquisição de dívida no mercado secundário,
depois de terminarem, em princípio no final deste ano, o programa especial de compra
em virtude da pandemia começado em março, e o programa normal de aquisição relançado
no ano passado. Implica, ainda, a manutenção do plano de reinvestimentos do BCE
num montante similar ao que vai vencendo.
20 - ATÉ QUE MONTANTE PODE O BCE COMPRAR ESTE
TIPO DE DÍVIDA CONJUNTA?
Até 50% da linha de obrigações, pois a dívida
que possa ser emitida por este Fundo é equiparável à dívida emitida por
entidades supranacionais, que, atualmente, o BCE já adquire ainda que numa
percentagem global que não ultrapassa os 11% do total de dívida pública que tem
em carteira. Apesar de tecnicamente a aquisição de dívida pública no mercado
secundário não ser proibida pelos Tratados da União - que apenas interditam a
compra direta dos títulos aos Estados - programas de aquisição de ativos (vulgo
QE, de quantitative easing) durante períodos tão prolongados são considerados,
por alguns especialistas, como financiamento de facto ao endividamento dos
países. E não uma situação excecional. No caso da zona euro, os programas de compra
de dívida pública estão em vigor desde 2015. Os especialistas mais críticos consideram
este mecanismo como monetarização de facto da dívida contraída pelos governos
(Expresso, texto do jornalista JORGE NASCIMENTO RODRIGUES)
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