sábado, abril 25, 2020

20 perguntas e respostas para se tornar um especialista em coronabonds


Os líderes europeus discutem esta quinta-feira o que vai ser o Fundo de Recuperação para financiar os estragos no dia seguinte ao fim da pandemia. Bruxelas avançou esta manhã com uma proposta técnica de um Fundo de €1,6 biliões. Não se espera que haja já fumo branco sobre se vamos ter obrigações europeias com o risco partilhado por todos, seja qual for o nome de batismo que se lhe der, ou mesmo se não se tiver etiqueta nenhuma. O braço de ferro político deverá continuar até à cimeira de junho. O Expresso explica-lhe tudo o que está em causa. O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, em videoconferência com dirigentes da Europa.
Para um país que viveu, nos últimos 200 anos, três crises de dívida pública, qualquer debate sobre emissão de obrigações europeias deve ser seguido com o máximo de atenção. Nestas três crises (1837-1852; 1892; 2011), Portugal teve cinco bancarrotas e reestruturações de dívida e, no caso mais recente, um resgate da troika. Saber, por isso, com que linhas se vão financiar os estragos de uma das maiores recessões de sempre, é um assunto crucial. A discussão que esta quinta-feira os chefes de Estado e de governo vão continuar na reunião informal do Conselho Europeu é de particular importância para Portugal, cujo prémio de risco da dívida face à Alemanha multiplicou por quatro em apenas dois meses. A batalha política deverá continuar até à cimeira de junho.
O que voltou a estar em causa é a necessidade de um mecanismo financeiro europeu de emissão de dívida conjunta com o risco partilhado por todos. Eurobonds é o nome de guerra deste tipo de dívida coletiva que tem pairado sobre a União Europeia há décadas e que agora foi rebatizado como Coronabonds. Há nove anos, a proposta da Comissão Europeia, então presidida por Durão Barroso, para o lançamento de obrigações europeias, batizadas então de Stability Bonds, para enfrentar a crise das dívidas dos periféricos foi para o caixote do lixo. O português comprou uma guerra com a chanceler alemã e perdeu-a. Ficou célebre a frase de Angela Merkel: “Não, enquanto eu for viva”. Desta vez, pela primeira vez, um grupo de nove estados membros do euro defendeu publicamente a necessidade da emissão deste tipo de dívida para financiar a saída da maior crise económica desde a Grande Depressão do século passado. Chamaram-lhe Coronabonds por causa do coronavírus. O nome já ficou pelo caminho, mas os proponentes conseguiram, na última reunião do Eurogrupo, uma meia vitória, o lançamento de um Fundo para a Recuperação. Um instrumento financeiro novo que, por agora, não passa de um nome. Falta dar-lhe o miolo, o “como” financiar e o “como” usar. No entanto, o passo dado esta quinta-feira pela própria Comissão ao avançar para a reunião com um documento técnico com uma proposta de um Fundo de Recuperação de 1,6 a 2 biliões de euros, com os primeiros financiamentos a ocorrerem ainda até final do ano, é mais uma evolução importante. Este guia não pretende antecipar o futuro nem adivinhar o que os líderes europeus poderão acordar até ao verão. Apenas permitir ao leitor saber o que está em jogo, que posições mais importantes se confrontam e quais as implicações dos vários cenários em Portugal.
1 - POR QUE RAZÃO EM MOMENTOS DE CRISES GRAVES NA UNIÃO EUROPEIA REAPARECE SEMPRE A PROPOSTA DOS EUROBONDS?
Porque emitir dívida conjunta, através de obrigações europeias (eurobonds), garantidas por todos, incluindo aqueles que têm rating máximo, permite ir ao mercado em melhores condições do que cada país em isolado tentar financiar volumes anormais de endividamento gerado por circunstâncias extraordinárias. A maioria dos títulos conjuntos, emitidos pela Comissão Europeia ou por veículos conjuntos (como o Mecanismo Europeu de Estabilidade desde 2012) tem notação máxima, de triplo A, são procurados pelos investidores como valores seguros. O juro a pagar não é penalizado pelo prémio de risco mais alto que os investidores sempre exigem quanto compram dívida dos países sobreendividados e economicamente mais frágeis. Em momentos de crise, que se repercutem sempre de um modo desigual (assimétrico, como dizem os especialistas) no seio da União, os países com nível de endividamento mais alto são mais sensíveis às mudanças súbitas do 'sentimento' dos investidores.
2 - O QUE SÃO OS CORONABONDS?
O nome é uma variante dos eurobonds, mas adaptada à circunstância da crise atual provocada pela pandemia do coronavírus. A proposta avançada a 25 de março por nove estados membros do euro – entre eles Portugal – pretendia a emissão de dívida comum para financiar especificamente o endividamento adicional de recuperação da economia que os estados membros vão ter de fazer depois de terminar a pandemia.
3 - OS CORONABONDS, NA IDEIA INICIAL, DESTINAVAM-SE A FINANCIAR O QUÊ?
Esses títulos não se destinavam a financiar dívida do passado, nem mesmo as necessidades de financiamento, elevadíssimas, deste ano. Mas o endividamento futuro depois da pandemia. Para as necessidades de curto prazo, o Eurogrupo avançou com um pacote de três linhas de financiamento, através do Mecanismo Europeu de Estabilidade (o fundo de resgate sediado no Luxemburgo), do Banco Europeu de Investimentos, e do programa especial da Comissão Europeia batizado de SURE, para apoiar os custos elevados que os lay off vão provocar.
4 - A SITUAÇÃO ATUAL EXIGIRIA ESSE TIPO DE DÍVIDA EUROPEIA?
No momento atual ainda não. Os países membros ainda conseguem ir ao mercado financiar-se a juros relativamente baixos, mesmo que já não estejam em mínimos históricos. Até a Grécia, que tem rating de dívida altamente especulativa (notação B), consegue financiar-se a taxas ainda comportáveis. No entanto, desde março que os juros têm subido e que os prémios de risco estão a aumentar à medida que a dimensão dos estragos desta crise pandémica se avoluma.
5 - QUANDO É QUE O PROBLEMA SE PODE COLOCAR?
Segundo os analistas financeiros, a situação crítica pode surgir quando as agências de rating começarem a cortar nas notações das economias com maior nível de endividamento depois do disparo dos défices orçamentais que se esperam para 2020. Se hoje são apenas três os países do euro com dívida acima de 100% do PIB – Grécia, Itália e Portugal -, no final do ano serão sete – entram Bélgica, Chipre, Espanha e França, segundo as previsões do Fundo Monetário Internacional. A dívida portuguesa deverá atingir 135% do PIB, um máximo histórico. A economia com o rating na corda bamba é a Itália. As notações são similares à portuguesa, mas tem uma perspetiva negativa por parte da Fitch e da S&P. Esta última revê a situação italiana já na próxima sexta-feira. No entanto, o Banco Central Europeu (BCE), desde março, que está a comprar dívida especulativa helénica nos dois programas de compra que tem em curso, e decidiu, esta semana, que títulos públicos e privados que possam vir a ter notação de lixo financeiro no futuro, mas que não tinham até agora, serão elegíveis para as compras do BCE.
6 - A EMISSÃO DE EUROBONDS SERIA UMA NOVIDADE?
Não. A Comunidade Económica Europeia (CEE), antecessora da União Europeia, aprovou a emissão deste tipo de obrigações em fevereiro de 1975 para responder ao impacto dramático da crise petrolífera nas balanças de pagamentos. Em termos reais, o preço do barril subiu 20% em 1975 e 15% em 1976. Criou um instrumento financeiro que batizou com o nome de Community Loan Mechanism. A iniciativa deste tipo de obrigações europeias foi da Alemanha, pela mão do chanceler social-democrata Helmut Schmidt. A Comissão Europeia contraiu dívida junto de investidores privados e os primeiros empréstimos em 1976 para a Irlanda e Itália foram feitos pelo Banco de Pagamentos Internacional. O mecanismo funcionou até aos anos 90 do século passado. Portugal beneficiou de empréstimos deste tipo em 1987 no valor de 2,6% do PIB, já depois de ter aderido à CEE.
7 - QUANDO FOI A ÚLTIMA VEZ QUE HOUVE POLÉMICA NA UNIÃO EUROPEIA SOBRE EUROBONDS?
Em novembro de 2011. Quando a Comissão Europeia então liderada por Durão Barroso propôs a criação de obrigações para a estabilidade (stability bonds) para responder conjuntamente à crise das dívidas dos periféricos do euro, entre eles Portugal. Ainda em novembro de 2012, já depois de Mario Draghi ter assegurado que o BCE faria tudo para segurar o euro, Barroso defendeu a introdução deste tipo de obrigações progressivamente, “passo a passo”, por maturidades. das mais curtas para as mais longas. Ficou célebre a oposição liminar de Merkel: “Não, enquanto eu for viva”.
8 - DESDE ESSA ALTURA TÊM SURGIDO PROPOSTAS DE DÍVIDA MUTUALIZADA EUROPEIA?
Sim. Da parte de académicos e especialistas. A proposta politicamente mais relevante foi avançada pelo Conselho de Peritos Económicos alemães, que apontava para a criação de um Fundo de Redenção da dívida pública europeia, que juntasse os títulos de dívida dos diversos países do euro acima de um montante equivalente a 60% do PIB de cada país. Esse patamar é o limite máximo de endividamento permitido pelos Tratados da União, apesar de não ser cumprido por muitos. No final do ano passado, eram oito os em incumprimento, entre eles Portugal. Tratava-se de refinanciar coletivamente uma parte do stock de dívida dos países acima desse limiar. Não é o mesmo do que os coronabonds ou os eurobonds propostos pela Comissão Barroso.
9 - OS CORONABONDS AINDA ESTÃO DE PÉ?
Já ninguém fala neles. Os proponentes aceitaram a criação de um Fundo de Recuperação para depois do fim da pandemia. A proposta foi avançada pelos franceses antes da última reunião do Eurogrupo e acabaria por reunir o consenso como “quarto pilar” do pacote de medidas anunciado por Mário Centeno depois da maratona da última reunião de 9 de abril. O ministro gaulês Bruno Le Maire considerou, então, a inclusão deste quarto instrumento financeiro como uma “vitória”, como “um passo verdadeiramente grande”.
10 - O FUNDO DE RECUPERAÇÃO É PARA DIMINUIR A DÍVIDA CRÓNICA DOS SOBREENDIVIDADOS?
Não. O Fundo de Recuperação não se destina a apoiar as necessidades de financiamento de combate à pandemia em curso, mas tem por missão apoiar o dia seguinte ao fim desta crise. De modo a que as economias mais frágeis do euro não defrontem um ataque especulativo no mercado da dívida e não se volte a correr o risco de uma série de incumprimentos como em 2010 a 2013.
11 - O QUE SERÁ O FUNDO DE RECUPERAÇÃO?
Ainda não se sabe. O seu miolo ainda está por definir e é precisamente o centro da batalha política em curso. Mas é, desde já, uma alternativa clara ao mini fundo de 20 mil milhões proposto pela Holanda para a atribuição de subsídios ao financiamento dos custos da crise sanitária, certamente uma “fisga” na classificação do primeiro ministro português António Costa. As propostas para o montante do Fundo de Recuperação variam entre 1 bilião sugerido pelos franceses e 1,5 biliões, proposto formalmente pelo executivo de Pedro Sánchez. Centeno já disse que será um número na ordem de “doze zeros” (bilião). Esta quinta-feira, conheceu-se um documento técnico da Comissão Europeia com uma proposta até €2 biliões.
12 - QUAL A BASE LEGAL PARA ESSE FUNDO?
Tal como o programa SURE já aprovado no Eurogrupo, o Fundo de Recuperação pode basear-se no parágrafo 2 do artigo 122 do Tratado de funcionamento da União. Onde se lê: “Sempre que um Estado-Membro se encontre em dificuldades ou sob grave ameaça de dificul­dades devidas a calamidades naturais ou ocorrências excecionais que não possa controlar, o Conse­lho, sob proposta da Comissão, pode, sob certas condições, conceder ajuda financeira da União ao Estado-Membro em questão”. A situação de pandemia é uma ocorrência excecional que, além do mais, abrange todos os estados membros.
13 - COMO SERÁ FINANCIADO?
Esse é o primeiro ponto da discórdia. As propostas francesa e espanhola pressupõem que será financiado por emissão de dívida conjunta no mercado, com o risco garantido por todos, e que deverá estar relacionado com o Quadro Financeiro Plurianual (QFP) da União Europeia que deveria garantir aos investidores o pagamento dos encargos da dívida através de recursos adicionais. A maioria dos proponentes quer que a dívida emitida seja de muito longo prazo, posição que parece recolher, também, o apoio da Comissão Europeia. Os espanhóis querem mesmo que seja perpétua, isto é, que só se paguem os juros aos investidores que ficariam em carteira com os títulos.
14 - A ALEMANHA JÁ DEU LUZ VERDE?
A chanceler alemã mostrou esta semana, num encontro com jornalistas em Berlim, abertura a “imaginar” o uso de tal tipo de instrumentos financeiros “mais adiante”. Mas nada está assente. O confronto mais agudo corporizado pelas posições extremas da Holanda, feroz opositor à emissão de dívida conjunta, e a Itália, que só aceita coronabonds, parece ter sido ultrapassado com a procura de uma solução de compromisso por parte da Alemanha, França e Espanha.
15 - QUE PROBLEMAS SE COLOCAM AO FINANCIAMENTO?
As questões que se colocam são várias, e há, à partida, divergências ou nuances no seio dos estados membros sobre esse financiamento. Quem deverá emitir essa dívida no mercado, a Comissão Europeia através de um veículo específico criado propositadamente para o efeito, ou outra entidade já existente – Banco Europeu de Investimentos ou mesmo Mecanismo Europeu de Estabilidade - em nome da União? A garantia do risco é assumida por todos, a dívida é totalmente mutualizada, ou cada um só responde por uma parte? Em que moldes é feita a “ligação” entre o Fundo e o QFP?
16 - COMO É ASSEGURADO O PAGAMENTO DOS JUROS DA DÍVIDA EMITIDA?
É mais um ponto de polémica. Será por recursos próprios do Fundo ou através da margem de recursos adicionais que o orçamento da União dispõe? Vão ser criados, para esse feito, novos impostos à escala europeia, como propõe o executivo espanhol, para aumentar esses recursos adicionais do orçamento que atualmente se baseiam nos direitos alfandegários e numa parte do IVA? O rascunho da proposta que a Comissão Europeia esteve a trabalhar implicaria elevar o teto atual do orçamento comunitário de 0,97% para 1,3% do Rendimento Bruto Nacional e somar-lhe em recursos adicionais uma margem de mais seis décimas para a fase mais aguda da recuperação até 2022.
17 - E COMO VAI EMPRESTAR O DINHEIRO AOS PAÍSES NECESSITADOS?
A grande divisão política situa-se entre os que acham que o dinheiro não deve ser emprestado, mas sim concedido através de subsídios (como noutras intervenções da Comissão Europeia), de transferências a fundo perdido, como explicitamente defende Pedro Sánchez. O objetivo é que esse apoio não conte para o aumento da dívida pública de cada país que a ele recorre. Os países que vão registar um disparo de dívida em 2020 para muito acima de 100% (como será o caso de oito membros do euro, entre eles Portugal), pretendem reduzir a dívida em 2021 e não aumentá-la ainda mais. Mas muitos outros defendem, que o dinheiro deve ser emprestado, ainda que com maturidades longas, de modo aos encargos dessa dívida se distribuírem por um período, o mais longo possível, dando margem à geração de excedentes orçamentais para os pagar com folga. O problema é que esses empréstimos transmitirão a carga negativa de mais um resgate. A proposta da Comissão Europeia inclina-se para uma solução mista, em que parte das ajudas seja reembolsável.
18 - E COMO SERÁ APLICADO ESSE DINHEIRO?
Os critérios de onde aplicar esse dinheiro poderão, também, gerar conflito político. A proposta espanhola entende que deverá ser destinado ao financiamento da transição ecológica e digital, de um programa para a autonomia estratégica da indústria e das tecnologias europeias, e para investimentos no transporte e da recuperação do turismo.
19 - QUAL O PAPEL DO BANCO CENTRAL EUROPEU?
A proposta de mutualização dessa nova dívida conjunta pressupõe que, depois, no mercado secundário, o BCE a irá comprar e que a manterá em carteira pelo período mais longo possível, dando, deste modo, garantia aos investidores que uma parte desses títulos tem um comprador no final. O que isso exige é que o BCE prossiga em 2021 e eventualmente em anos seguintes com algum programa de aquisição de dívida no mercado secundário, depois de terminarem, em princípio no final deste ano, o programa especial de compra em virtude da pandemia começado em março, e o programa normal de aquisição relançado no ano passado. Implica, ainda, a manutenção do plano de reinvestimentos do BCE num montante similar ao que vai vencendo.
20 - ATÉ QUE MONTANTE PODE O BCE COMPRAR ESTE TIPO DE DÍVIDA CONJUNTA?
Até 50% da linha de obrigações, pois a dívida que possa ser emitida por este Fundo é equiparável à dívida emitida por entidades supranacionais, que, atualmente, o BCE já adquire ainda que numa percentagem global que não ultrapassa os 11% do total de dívida pública que tem em carteira. Apesar de tecnicamente a aquisição de dívida pública no mercado secundário não ser proibida pelos Tratados da União - que apenas interditam a compra direta dos títulos aos Estados - programas de aquisição de ativos (vulgo QE, de quantitative easing) durante períodos tão prolongados são considerados, por alguns especialistas, como financiamento de facto ao endividamento dos países. E não uma situação excecional. No caso da zona euro, os programas de compra de dívida pública estão em vigor desde 2015. Os especialistas mais críticos consideram este mecanismo como monetarização de facto da dívida contraída pelos governos (Expresso, texto do jornalista JORGE NASCIMENTO RODRIGUES)

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