quarta-feira, dezembro 20, 2017

Um terço da Orquestra Simón Bolívar já saiu da Venezuela e Dudamel não deverá voltar

A repressão do regime de Maduro e a crise que faz com que os salários rondem os dez dólares levaram 40 músicos a sair da Venezuela, deixando a orquestra que é hoje o símbolo do Sistema. O seu maestro superstar também não regressou ao país desde os protestos da Primavera – tem medo de represálias. Cerca de 40 dos 120 músicos da Orquestra Sinfónica Simón Bolívar já optaram pelo exílio devido à crise económica que atinge a Venezuela e ao clima ditatorial protagonizado pelo Presidente Nicolás Maduro. A notícia é dada pelo diário espanhol El País, que escreve ainda que Gustavo Dudamel também não deverá regressar ao país, pelo menos tão cedo. Dudamel, um dos mais influentes directores de orquestra do mundo, é o maestro titular desta formação que é tida como a jóia do Sistema Nacional de Orquestras (El Sistema, assim é conhecido), a grande bandeira da cultura venezuelana, que há mais de 40 anos combina música e integração social, colhendo elogios e servindo de inspiração a programas educativos e a projectos de desenvolvimento comunitário em todo o mundo. O músico não voltou a pisar o seu país desde que se intensificaram os protestos nas ruas contra o regime de Maduro, na Primavera, optando por permanecer em Los Angeles, onde dirige a Filarmónica (este violinista de 36 anos que assumiu a titularidade da Simón Bolívar aos 18 é ainda o maestro principal da Sinfónica de Gotemburgo, na Suécia). Segundo o jornal espanhol, e apesar do tom público de Maduro em relação a Dudamel ser relativamente brando, o maestro não regressou ainda à Venezuela por temer represálias.
Alguns dos seus colegas na orquestra receiam até que, se voltar, perca o passaporte e venha a ser preso. Garantem colegas e amigos que, apesar de longe do seu país, Dudamel se mantém em contacto com a Simón Bolívar e com todo El Sistema, de que é aliás produto (foi nele que começou a sua formação musical). Um deles, optando pelo anonimato, disse ao País que o músico jamais será capaz de abandonar a orquestra: “Tocamos juntos desde os dez anos. A Simón Bolívar é a nossa vida, não a podemos deixar.” Segundo o diário, são muitos os músicos da orquestra que optaram pelo exílio a estabelecer uma ligação directa entre o seu desejo de sair e a situação económica e política do país. Se é verdade que a maioria dá como primeira justificação a necessidade de assegurar a sua subsistência e a da suas famílias – feita a conversão, o salário mensal de um músico não atinge hoje os dez dólares mensais –, também é verdade que muitos se opõem ao regime de Maduro, falando de censura e repressão. Dudamel é, naturalmente, um exemplo para muitos no que toca à carreira, mas também no que diz respeito à contestação frontal ao regime.
A carta que mudou tudo
Gustavo Dudamel, considerado um dos melhores maestros da actualidade, foi um declarado apoiante do Presidente Hugo Chávez, que morreu em 2013, e, numa primeira fase, deu o benefício da dúvida a Nicolás Maduro. Evoluiu, depois, para uma posição de opositor relativamente discreto que se concentrava em apelar ao diálogo entre as partes em conflito até que em Abril, reagindo à morte de um jovem músico em Caracas, durante uma manifestação anti-regime em Caracas, resolveu publicar nos jornais The New York Times e El País uma carta aberta em que responsabilizava o Presidente pela violência nas ruas. Armando Cañizales, um violinista de 17 anos criado no Sistema, caiu com um tiro no pescoço, quando enfrentava a Guarda Bolivariana com pedras, de máscara na cara e capacete na cabeça. Nessa carta Dudamel acusava Maduro de lançar um novo golpe contra as instituições venezuelanas e levantava a sua voz “contra a violência e a repressão”. “Dediquei a minha vida inteira à música e à arte como forma de transformar o mundo. […] Nada pode justificar o derramamento de sangue. Já basta de não ouvir o justo clamor de um povo sufocado por uma crise intolerável”, escrevia. Falando da urgência de ter como armas do desenvolvimento apenas pincéis, livros e instrumentos musicais, o jovem maestro aproveitava este texto aberto para dizer ao regime que o povo venezuelano se limitava a lutar pela satisfação das suas necessidades básicas, aludindo assim à falta de alimentos e de medicamentos, e que uma democracia sã exige respeito e um diálogo verdadeiro. “A democracia não se pode construir à medida de um governo em particular. O exercício democrático implica ouvir a voz da maioria como baluarte último da verdade social. Nenhuma ideologia pode sobrepor-se ao bem comum.” E se dúvidas houvesse de que aquelas palavras de destinavam a Maduro, elas dissipar-se-iam no fim da carta: “Faço um apelo urgente ao Presidente da República e ao Governo nacional a que rectifiquem a sua postura e ouçam o povo venezuelano. Os tempos não podem ficar marcados com o sangue da nossa gente.”
“Tocar e lutar”
Dudamel, que sempre o viu El Sistema como um símbolo de liberdade, a mesma que sabe estar agora seriamente comprometida, fora até aí muito criticado por permanecer em silêncio quando a deriva autoritária de Maduro há já muito fazia prever um cenário como o que hoje se vive naquele país da América Latina. Depois da carta aberta, o maestro voltou a falar contra o regime em Agosto. Foi aí que a primeira digressão de uma das orquestras do Sistema com Dudamel a dirigir – a Orquestra Nacional Juvenil deveria ter ido no Verão a várias cidades nos Estados Unidos – foi cancelada, lembram os diários venezuelanos El Universal  e El Nacional. Mais recentemente, em Outubro, o regime pôs fim a uma série de concertos da Orquestra Simón Bolívar agendados para a Ásia (China e Taiwan). Os previstos para Espanha em 2018 também estão suspensos. Em Outubro, o maestro escreveu na rede social Twitter: “Deixa-me profundamente triste que, mais uma vez, o Governo venezuelano tenha cancelado uma digressão de uma orquestra do Sistema. […] Continuarei a defender a liberdade de expressão e os valores de uma sociedade justa. A música alimentará para sempre os nossos desejos de um futuro melhor.”
Nicolás Maduro respondeu-lhe no seu programa que passa semanalmente na rádio e televisão nacionais, pedindo a Deus que perdoasse o maestro que se deixou “enganar”, julgando o Presidente culpado da situação a que chegou o país, escreve a agência de notícias EFE. Todos sabem que a Orquestra Simón Bolívar é a expressão mais elevada do Sistema e que cancelar as suas digressões internacionais é transformar numa arma “o maior bem de exportação da Venezuela – o seu programa de educação musical”, escreveu no Verão no diário britânico The Guardian Marshall Marcus, o presidente executivo da Orquestra de Jovens da União Europeia. O regime tem justificado os cancelamentos com a falta de dinheiro devido aos baixos preços do petróleo, recurso em que assenta a economia do país, mas no meio da música e na oposição eles são vistos como uma represália contra Dudamel, por este ter passado a criticar abertamente Maduro e as suas políticas. Mas o maestro, que ainda não falou em público sobre as razões que o têm mantido afastado da Venezuela, não parece fazer tensões de se calar. Para já, parece apostado em viver seguindo o lema do Sistema que o criou e que ele ajudou a crescer como poucos – “Tocar e lutar” (texto da jornalista Lucinda Canelas, do Público)

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