“Em 1995, António Guterres ganhava, pela primeira vez, as eleições
legislativas. No mesmo ano, a banda Da Weasel cantava, num dos temas do álbum
Dou-lhe com a alma: "De volta ao ataque frontal/Tentando dar um abanão em
Portugal." A música chamava-se Adivinha quem voltou. Por estes dias, quase
duas décadas volvidas, esta é uma frase de ressonância política. De novo com
Guterres.
Mas recuemos ainda mais: estamos em 1991 e o PS entra em polvorosa, a
poucas semanas da campanha eleitoral. O secretário-geral, Jorge Sampaio, revela
total inabilidade na composição das listas de candidatos a deputados. Manuel
Alegre vê-se relegado da liderança da lista por Coimbra, a favor do médico
sampaísta e quase desconhecido João Rui Almeida. O poeta queixa-se, nas páginas
do semanário O Jornal: "O PS tratou-me pior do que a PIDE!" - e é
repescado, num processo que é entendido como uma demonstração de fraqueza e má
consciência da direção do partido. Sampaio promete, sem o revelar, um último
trunfo para as listas. Saber-se-á, depois, que o "senhor x" não é o
prestigiado Sousa Franco, como chegou a ser noticiado, mas o incógnito João de
Menezes Ferreira. No meio da turbulência, António Guterres, discreto, faz um
único pedido a Sampaio: que meta nas listas o até ali quadro do Governo de
Macau, Jorge Coelho, então com 40 anos e um percurso profissional na difícil
gestão da Carris. A princípio, ninguém percebe a importância de Jorge Coelho
para Guterres. Um pouco bisonho, sem grande imagem, vagamente desconhecido, o
ex-gestor acaba por se transformar no principal pivô do guterrismo, no futuro:
pau para toda a obra, inteligência arguta e intuitiva, de faro político
apurado, popularidade crescente e talento de "organizador
implacável", foi mesmo o obreiro da vitória eleitoral de 1995. Repare-se
nas "estrelas" de um e de outro: Ribeiro de Menezes acaba por
tornar-se realmente conhecido pela sua participação (com Santana Lopes...) no
polémico programa de entretenimento de Artur Albarran, A Cadeira do Poder.
Coelho será o mais poderoso e influente ministro.
A própria queda do guterrismo está diretamente associada à queda de
Jorge Coelho. Foi pelo empalidecer da sua boa estrela, com o colapso da Ponte
Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios, Castelo de Paiva, em março de 2001, que
Guterres começou a cair. Coelho, então ministro do Equipamento, decretou que a
culpa não morreria solteira e demitiu--se. Guterres demitir-se-ia, poucos meses depois, após a
maior derrota de sempre do PS em autárquicas, anunciando: "Faço-o para que
o País não caia num pântano político."
Como entender que, depois de perder mais de 60 câmaras, incluindo as de
Lisboa e Porto, deixando o País de "tanga" (nas palavras de Durão
Barroso, seu sucessor em São Bento) e tendo "fugido", na
interpretação da então generalidade dos portugueses, Guterres surja, sem ter dito
uma palavra ou mostrado qualquer intenção de regressar à política, como o mais
forte, consensual e - palavra de Santana - "estimulante" candidato
presidencial da área socialista? Ah, é verdade: Jorge Coelho voltou,
recentemente, à ação e é o presidente da Comissão Eleitoral das primárias do
PS. Pero que las hay, hay.
Guterrismo sem Guterres
Para começar, quem disse que Guterres esteve desaparecido? A tese é
defendida pelo politólogo José Adelino Maltez, catedrático de Ciência Política:
"Não é propriamente um regresso, já que ele esteve sempre presente por
interpostas pessoas. Foi um dos criadores destes meninos e o inspirador de
determinada elite que está no poder." Hoje, com o PS dilacerado numa rija
disputa interna, Jorge Coelho regressa, aos 60 anos, como figura consensual, no
partido. Ganhe Costa ou Seguro, ele já estagia como distribuidor de jogo para a
putativa candidatura de António Guterres, 65 anos. Afinal, o
ex-primeiro-ministro, que fez anúncio de abandono definitivo da política, está
mais presente do que nunca, através dos antigos sub-40 que trouxe para os
seniores, em 1991. Um deles, António José Seguro, foi o seu protegido e, com
Sócrates, um dos favoritos. António Costa, depois dos anos de sampaísmo, foi
relançado por ele, para uma carreira que o pode guindar à liderança do partido
e do País. Ambos o apoiam, sob a batuta de Jorge Coelho, agora discretamente
regressado, depois de um período de vários anos na privada (à frente da Mota
Engil). Na verdade, os braços do guterrismo estendem-se a todas as tendências do
partido: de Sócrates a Seguro, de Costa a Mário Soares que, ao que apurámos, o
apoiará "incondicionalmente". Faz o pleno, sem mexer uma palha. Como
é possível?
Não é bem assim. Guterres continua calado, mas "mexe as suas
palhas". Fontes próximas do antigo primeiro-ministro mostram-se prudentes:
"Tem todas as condições para se candidatar e ganhar, mas só ele sabe o que
decidiu, se é que já decidiu alguma coisa", dizem-nos. Reconhecem, porém,
que "a máquina está preparada". Mais: "Depois desta ausência da política
e do País, ele só teria desvantagens em começar, a ano e meio das
presidenciais, a desgastar-se. A sua figura é suficientemente forte para
aparecer no último momento e impor-se."
Os tesourinhos deprimentes
O que é que Guterres tem? O antigo chefe do Governo foi um político
suave e dialogante, figura ideal para fazer o contraste com o seu sucessor,
José Sócrates, ou com o atual Presidente da República, Cavaco Silva, com um
perfil mais distante, crispado e menos cosmopolita. Mesmo a fama de despesista
está diluída pela ação de José Sócrates, como explica o politólogo e
historiador António Costa Pinto: "Atribuiu-se o colapso económico do País
a Sócrates e será difícil transpor isso para dez anos antes." E acrescenta
o analista: "Guterres cumpre os requisitos de personalidade e carreira que
favorecem a candidatura. Tem uma imagem já afastada da governação, que alia à
de estar fora da política ativa, o que joga a seu favor. Mais importante é o
facto de ser centrista e católico."
Apesar de ausente, António Guterres aparece nas fotos das agências
internacionais associado às ações humanitárias que representa enquanto diretor
da ACNUR (Agência da ONU para os Refugiados), um dos organismos que movimenta
um dos maiores orçamentos nas Nações Unidas. As suas aparições com Angelina
Jolie, embaixadora da ACNUR, ajudam a compor a imagem de figura de prestígio
internacional que os portugueses gostam de ver refletida nos seus compatriotas.
Como diz Adelino Maltez, o afastamento de Guterres "foi positivo", pois
"não interferiu no PS, absteve-se sempre de produzir comentário e terá
muito a dizer sobre muita gente". Já Costa Pinto corrobora: "A
dimensão humanista e o conhecimento internacional colam bem com a imagem de
Presidente. Tem o caminho aberto." Outros apontam-lhe o perfil hesitante,
a dificuldade em provocar ruturas, características indesejáveis no momento em
que o País precisa de um Presidente forte e personalizado. Embora integrador,
Guterres notabilizou-se como algo trapalhão nos mais infelizes processos de remodelação
de que há memória em Portugal. Incapaz de dizer não ou de despedir os
ministros, chegou a permitir que um deles discursasse, em nome do Governo, no
Parlamento, encontrando-se já substituído. E foi mesmo Jorge Sampaio quem impôs
a demissão do então ministro Armando Vara, responsável pelo insustentável caso
dos dinheiros para a Prevenção Rodoviária, com Guterres a resistir. Ficou
também célebre a forma como tentou segurar um secretário de Estado da Justiça
de António Costa, Ricardo Sá Fernandes, obrigando o ministro a dizer "ou
eu ou ele". A forma como habituou o
País ao espetáculo público da desastrada gestão de conflitos internos pode bem,
diz-nos um responsável do PSD, vir a ser lembrada por um adversário como
Marcelo, que comentava, semana a semana, cada caso do seu Governo e que,
portanto, "deve ter uma pastinha cheia de tesourinhos deprimentes do
guterrismo para abrir na hora certa".
Atento a Portugal
António Guterres continua a seguir, com interesse, a política nacional.
Continua a falar com os seus amigos de sempre e está frequentemente em Lisboa,
onde aparece, muitas vezes na companhia da mulher, Catarina Vaz Pinto
(vereadora de António Costa em Lisboa), em espetáculos públicos de âmbito
cultural. Jorge Coelho é um dos seus interlocutores, no partido, mas também
fala com Seguro, Sócrates, António Vitorino (também na Comissão eleitoral do
PS...) ou António Costa. A título de curiosidade, diga-se que, para além da
mulher, também a sua "histórica" secretária no Parlamento, no partido
e no Governo, Conceição Ribeiro, é uma próxima colaboradora de Costa, na Câmara
de Lisboa. Mais, foi António Costa quem sugeriu Jorge Coelho para presidente da
Comissão Eleitoral e do autarca de Lisboa saíram palavras de incentivo à
candidatura de Guterres, em recente entrevista aoPúblico. Em política, o que
parece, é...
Em 2009, António Guterres foi o único português a constar da lista dos
100 mais influentes da revista Forbes, em 64.° lugar, o que demonstra, não
apenas a inerência do importante cargo que ocupa mas a própria dimensão
internacional do ocupante. Logo na sua primeira missão no terreno, como
responsável do ACNUR, no Uganda, em 2005, ele era solicitado por cadeias de
televisão como a CNN, para entrevistas em direto. As suas boas relações
internacionais, bem como o conhecimento dos dossiês europeus, fazem dele um
concorrente temível.
A falta de alternativas credíveis do PS para enfrentar um dos vários
fortes candidatos à direita - Santana Lopes, Durão Barroso, Rui Rio ou Marcelo
Rebelo de Sousa - contribuem para o lançamento de Guterres. Ele é capaz de
oferecer tantas garantias de pleno à esquerda como António Sampaio da Nóvoa ou
Carvalho da Silva. O primeiro seria bem aceite no PS, mas tem o handicap de não
ser uma figura óbvia para o comum do cidadão. O segundo, garantem vários
setores socialistas, teria fortes anticorpos no PS e não mobilizaria a máquina
partidária. António Guterres leva o PS inteiro, pode ir buscar votos ao centro
e fará pontes com os partidos à esquerda. O antigo primeiro-ministro levou do País
a mágoa de nunca ter conseguido a maioria absoluta da qual se julgava
merecedor. Para Belém, terá a sua oportunidade: só é eleito quem tiver mais de
50% dos votos...
Irónico seria se, para isso, tivesse de ultrapassar Marcelo, o rival de
uma vida, desde o tempo em que ambos eram uma espécie de enfants térribles do
padre Vítor Melícias, na ação social da Igreja, pela periferia de Lisboa. Como
nos diz Adelino Maltez, "tal confronto seria uma ironia do
destino...". O confronto final entre duas mentes brilhantes bem podia
fazer o script de uma fita de Hollywood, com ou sem... Angelina Jolie. E banda
sonora dos Da Weasel que, em Adivinha quem voltou, já garantiam: "Vou
arrasar, enxertar, dissecar, não vou parar." (texto dos jornalistas Filipe
Luís e Sara Rodrigues, da Visão, com a devida vénia)