terça-feira, setembro 16, 2014

Porque é Guterres o desejado (Visão)



“Em 1995, António Guterres ganhava, pela primeira vez, as eleições legislativas. No mesmo ano, a banda Da Weasel cantava, num dos temas do álbum Dou-lhe com a alma: "De volta ao ataque frontal/Tentando dar um abanão em Portugal." A música chamava-se Adivinha quem voltou. Por estes dias, quase duas décadas volvidas, esta é uma frase de ressonância política. De novo com Guterres.
Mas recuemos ainda mais: estamos em 1991 e o PS entra em polvorosa, a poucas semanas da campanha eleitoral. O secretário-geral, Jorge Sampaio, revela total inabilidade na composição das listas de candidatos a deputados. Manuel Alegre vê-se relegado da liderança da lista por Coimbra, a favor do médico sampaísta e quase desconhecido João Rui Almeida. O poeta queixa-se, nas páginas do semanário O Jornal: "O PS tratou-me pior do que a PIDE!" - e é repescado, num processo que é entendido como uma demonstração de fraqueza e má consciência da direção do partido. Sampaio promete, sem o revelar, um último trunfo para as listas. Saber-se-á, depois, que o "senhor x" não é o prestigiado Sousa Franco, como chegou a ser noticiado, mas o incógnito João de Menezes Ferreira. No meio da turbulência, António Guterres, discreto, faz um único pedido a Sampaio: que meta nas listas o até ali quadro do Governo de Macau, Jorge Coelho, então com 40 anos e um percurso profissional na difícil gestão da Carris. A princípio, ninguém percebe a importância de Jorge Coelho para Guterres. Um pouco bisonho, sem grande imagem, vagamente desconhecido, o ex-gestor acaba por se transformar no principal pivô do guterrismo, no futuro: pau para toda a obra, inteligência arguta e intuitiva, de faro político apurado, popularidade crescente e talento de "organizador implacável", foi mesmo o obreiro da vitória eleitoral de 1995. Repare-se nas "estrelas" de um e de outro: Ribeiro de Menezes acaba por tornar-se realmente conhecido pela sua participação (com Santana Lopes...) no polémico programa de entretenimento de Artur Albarran, A Cadeira do Poder. Coelho será o mais poderoso e influente ministro.
A própria queda do guterrismo está diretamente associada à queda de Jorge Coelho. Foi pelo empalidecer da sua boa estrela, com o colapso da Ponte Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios, Castelo de Paiva, em março de 2001, que Guterres começou a cair. Coelho, então ministro do Equipamento, decretou que a culpa não morreria solteira e demitiu--se. Guterres  demitir-se-ia, poucos meses depois, após a maior derrota de sempre do PS em autárquicas, anunciando: "Faço-o para que o País não caia num pântano político."
Como entender que, depois de perder mais de 60 câmaras, incluindo as de Lisboa e Porto, deixando o País de "tanga" (nas palavras de Durão Barroso, seu sucessor em São Bento) e tendo "fugido", na interpretação da então generalidade dos portugueses, Guterres surja, sem ter dito uma palavra ou mostrado qualquer intenção de regressar à política, como o mais forte, consensual e - palavra de Santana - "estimulante" candidato presidencial da área socialista? Ah, é verdade: Jorge Coelho voltou, recentemente, à ação e é o presidente da Comissão Eleitoral das primárias do PS. Pero que las hay, hay.
Guterrismo sem Guterres
Para começar, quem disse que Guterres esteve desaparecido? A tese é defendida pelo politólogo José Adelino Maltez, catedrático de Ciência Política: "Não é propriamente um regresso, já que ele esteve sempre presente por interpostas pessoas. Foi um dos criadores destes meninos e o inspirador de determinada elite que está no poder." Hoje, com o PS dilacerado numa rija disputa interna, Jorge Coelho regressa, aos 60 anos, como figura consensual, no partido. Ganhe Costa ou Seguro, ele já estagia como distribuidor de jogo para a putativa candidatura de António Guterres, 65 anos. Afinal, o ex-primeiro-ministro, que fez anúncio de abandono definitivo da política, está mais presente do que nunca, através dos antigos sub-40 que trouxe para os seniores, em 1991. Um deles, António José Seguro, foi o seu protegido e, com Sócrates, um dos favoritos. António Costa, depois dos anos de sampaísmo, foi relançado por ele, para uma carreira que o pode guindar à liderança do partido e do País. Ambos o apoiam, sob a batuta de Jorge Coelho, agora discretamente regressado, depois de um período de vários anos na privada (à frente da Mota Engil). Na verdade, os braços do guterrismo estendem-se a todas as tendências do partido: de Sócrates a Seguro, de Costa a Mário Soares que, ao que apurámos, o apoiará "incondicionalmente". Faz o pleno, sem mexer uma palha. Como é possível?
Não é bem assim. Guterres continua calado, mas "mexe as suas palhas". Fontes próximas do antigo primeiro-ministro mostram-se prudentes: "Tem todas as condições para se candidatar e ganhar, mas só ele sabe o que decidiu, se é que já decidiu alguma coisa", dizem-nos. Reconhecem, porém, que "a máquina está preparada". Mais: "Depois desta ausência da política e do País, ele só teria desvantagens em começar, a ano e meio das presidenciais, a desgastar-se. A sua figura é suficientemente forte para aparecer no último momento e impor-se."
Os tesourinhos deprimentes
O que é que Guterres tem? O antigo chefe do Governo foi um político suave e dialogante, figura ideal para fazer o contraste com o seu sucessor, José Sócrates, ou com o atual Presidente da República, Cavaco Silva, com um perfil mais distante, crispado e menos cosmopolita. Mesmo a fama de despesista está diluída pela ação de José Sócrates, como explica o politólogo e historiador António Costa Pinto: "Atribuiu-se o colapso económico do País a Sócrates e será difícil transpor isso para dez anos antes." E acrescenta o analista: "Guterres cumpre os requisitos de personalidade e carreira que favorecem a candidatura. Tem uma imagem já afastada da governação, que alia à de estar fora da política ativa, o que joga a seu favor. Mais importante é o facto de ser centrista e católico."
Apesar de ausente, António Guterres aparece nas fotos das agências internacionais associado às ações humanitárias que representa enquanto diretor da ACNUR (Agência da ONU para os Refugiados), um dos organismos que movimenta um dos maiores orçamentos nas Nações Unidas. As suas aparições com Angelina Jolie, embaixadora da ACNUR, ajudam a compor a imagem de figura de prestígio internacional que os portugueses gostam de ver refletida nos seus compatriotas. Como diz Adelino Maltez, o afastamento de Guterres "foi positivo", pois "não interferiu no PS, absteve-se sempre de produzir comentário e terá muito a dizer sobre muita gente". Já Costa Pinto corrobora: "A dimensão humanista e o conhecimento internacional colam bem com a imagem de Presidente. Tem o caminho aberto." Outros apontam-lhe o perfil hesitante, a dificuldade em provocar ruturas, características indesejáveis no momento em que o País precisa de um Presidente forte e personalizado. Embora integrador, Guterres notabilizou-se como algo trapalhão nos mais infelizes processos de remodelação de que há memória em Portugal. Incapaz de dizer não ou de despedir os ministros, chegou a permitir que um deles discursasse, em nome do Governo, no Parlamento, encontrando-se já substituído. E foi mesmo Jorge Sampaio quem impôs a demissão do então ministro Armando Vara, responsável pelo insustentável caso dos dinheiros para a Prevenção Rodoviária, com Guterres a resistir. Ficou também célebre a forma como tentou segurar um secretário de Estado da Justiça de António Costa, Ricardo Sá Fernandes, obrigando o ministro a dizer "ou eu ou ele".  A forma como habituou o País ao espetáculo público da desastrada gestão de conflitos internos pode bem, diz-nos um responsável do PSD, vir a ser lembrada por um adversário como Marcelo, que comentava, semana a semana, cada caso do seu Governo e que, portanto, "deve ter uma pastinha cheia de tesourinhos deprimentes do guterrismo para abrir na hora certa".
Atento a Portugal
António Guterres continua a seguir, com interesse, a política nacional. Continua a falar com os seus amigos de sempre e está frequentemente em Lisboa, onde aparece, muitas vezes na companhia da mulher, Catarina Vaz Pinto (vereadora de António Costa em Lisboa), em espetáculos públicos de âmbito cultural. Jorge Coelho é um dos seus interlocutores, no partido, mas também fala com Seguro, Sócrates, António Vitorino (também na Comissão eleitoral do PS...) ou António Costa. A título de curiosidade, diga-se que, para além da mulher, também a sua "histórica" secretária no Parlamento, no partido e no Governo, Conceição Ribeiro, é uma próxima colaboradora de Costa, na Câmara de Lisboa. Mais, foi António Costa quem sugeriu Jorge Coelho para presidente da Comissão Eleitoral e do autarca de Lisboa saíram palavras de incentivo à candidatura de Guterres, em recente entrevista aoPúblico. Em política, o que parece, é...
Em 2009, António Guterres foi o único português a constar da lista dos 100 mais influentes da revista Forbes, em 64.° lugar, o que demonstra, não apenas a inerência do importante cargo que ocupa mas a própria dimensão internacional do ocupante. Logo na sua primeira missão no terreno, como responsável do ACNUR, no Uganda, em 2005, ele era solicitado por cadeias de televisão como a CNN, para entrevistas em direto. As suas boas relações internacionais, bem como o conhecimento dos dossiês europeus, fazem dele um concorrente temível.
A falta de alternativas credíveis do PS para enfrentar um dos vários fortes candidatos à direita - Santana Lopes, Durão Barroso, Rui Rio ou Marcelo Rebelo de Sousa - contribuem para o lançamento de Guterres. Ele é capaz de oferecer tantas garantias de pleno à esquerda como António Sampaio da Nóvoa ou Carvalho da Silva. O primeiro seria bem aceite no PS, mas tem o handicap de não ser uma figura óbvia para o comum do cidadão. O segundo, garantem vários setores socialistas, teria fortes anticorpos no PS e não mobilizaria a máquina partidária. António Guterres leva o PS inteiro, pode ir buscar votos ao centro e fará pontes com os partidos à esquerda. O antigo primeiro-ministro levou do País a mágoa de nunca ter conseguido a maioria absoluta da qual se julgava merecedor. Para Belém, terá a sua oportunidade: só é eleito quem tiver mais de 50% dos votos...
Irónico seria se, para isso, tivesse de ultrapassar Marcelo, o rival de uma vida, desde o tempo em que ambos eram uma espécie de enfants térribles do padre Vítor Melícias, na ação social da Igreja, pela periferia de Lisboa. Como nos diz Adelino Maltez, "tal confronto seria uma ironia do destino...". O confronto final entre duas mentes brilhantes bem podia fazer o script de uma fita de Hollywood, com ou sem... Angelina Jolie. E banda sonora dos Da Weasel que, em Adivinha quem voltou, já garantiam: "Vou arrasar, enxertar, dissecar, não vou parar." (texto dos jornalistas Filipe Luís e Sara Rodrigues, da Visão, com a devida vénia)