“O primeiro-ministro assinou hoje uma carta em branco
de demissão. Uma carta que ainda não está escrita mas já está assinada. Restam
dois desfechos, em função do resultado das investigações ao caso Tecnoforma: ou
rasga a carta e fica, ou escreve o resto do texto e sai.
As personalidades públicas criam ou deixam criar sempre
perceções que se generalizam. As pessoas e as personas. As ações e as reputações.
E a comunicação social faz sempre parte do mecanismo, quer de transmissão da
imagem, quer da contestação a essa imagem. A principal arma de defesa pública
de Cavaco Silva às notícias sobre o seu envolvimento no BPN foi a sua própria
reputação (“é preciso nascer duas vezes para ser mais sério do que eu”, disse).
A principal arma de defesa de José Sócrates ao envolvimento no caso Freeport
foi a perseguição (as “campanhas negras”, repetiu). A imagem pública de Miguel
Relvas ajudou à verosimilhança do caso do curso superior tirado na secretaria.
Mas a imagem pública de Passos Coelho é ao contrário: a sua reputação é de um
homem sério. As duas suspeitas encadeadas que nasceram na semana passada, e que
se agravaram sucessivamente ao longo dos dias, contrastam com essa imagem. E
nada mais acelerou a credibilidade das suspeitas do que as resposta de Passos
Coelho que falou quase todos os dias na última semana e nada esclareceu. Não
desmente, mantém convicções. Nem nega, apenas não tem presente. Se forem
confirmadas as suspeitas que ainda não foram desmentidas, Pedro Passos Coelho
violou a lei nos anos 90. Se violou o estatuto de incompatibilidades da Assembleia
da República, recebeu então mais dinheiro do Parlamento do que devia no
subsídio de reintegração.
Se recebeu dinheiro da Tecnoforma que não declarou,
então pior: fugiu aos impostos. E não só não é possível ter um primeiroministro
que praticou evasão fiscal, como o próprio Passos Coelho tirou já essa ilação
quando, na declaração de hoje, diz que assumirás as consequências da investigação.
Passos Coelho pediu a intervenção da Procuradoria-Geral
da República e assim subiu a parada. Fez bem. Fica-lhe bem. Mas se houver
sombra de culpa, vai acabar mal. É uma jogada arriscada, tendente à absolvição
ou à condenação. Mas o caso, a existir, já prescreveu e não há outra
investigação neste momento que não seja jornalística. Da Sábado e do Público,
para começar. De vários outros órgãos de comunicação, para continuar. Vai a Procuradoria
investigar? Vasculhar contas bancárias? Fluxos de pagamento da Tecnoforma e dos
fundos comunitários? Ou dizer que tudo está prescrito pelo que não há matéria?
Ou vai a justiça prosseguir a sua toada recente, depois das condenações do Face
Oculta, da condenação de Maria de Lurdes Rodrigues e das investigações Luís
Filipe Menezes?
A investigação jornalística dirige-se a Passos Coelho mas
já fez outra vítima: a credibilidade da Assembleia da República. No mesmo dia em
que tornou público que Passos Coelho não tinha pedido estatuto de exclusividade
de aquando era deputado, dois jornalistas do Público descobriram que Passos recebeu
um subsídio de reintegração por ter pedido esse mesmo estatuto. É uma vergonha.
A Assembleia da República não é uma pessoa, é uma
instituição. E neste caso, ou foi incompetente e não se protegeu ou, o que
seria gravíssimo, quis proteger Passos.O comunicado de hoje, confuso e
inapreensível, só agravou essa perceção. Não é possível confiar numa
instituição assim. Mas tem de ser possível confiar no primeiro-ministro. Não é
crível que alguém se esqueça ao fim de 15 anos de receber cinco mil euros
durante vários meses.Isso não existe, ou Pasos recebeu ou não recebeu. Se
recebeu, não basta pedir desculpa, Passos tem de demitir-se. Esperemos que não.
Esperemos que sejam apenas incongruências que vão ser explicadas. Há de ser
possível haver gente séria. E o primeiro de todos tem de ser o primeiro de
todos” (texto de Pedro Santos Guerreiro, Expresso Diário, com a devida vénia)