Escreve o Sol, num
texto das jornalistas Catarina Guerreiro e Sónia Balasteiro que “dois milhões
de portugueses têm reformas inferiores a 364 euros. Racionam os remédios e há
alturas em que têm de escolher: a saúde ou a comida. Muitos ainda ajudam os
filhos desempregados. Por sofrer de graves problemas nos intestinos, Ana
Vitorino, de 79 anos, tem de tomar um pó que a farmácia da sua residência manda
vir do estrangeiro. Devia consumir um pacote por dia, mas para poupar divide-o
ao meio e dá-lhe para dois dias. E assim consegue que a embalagem que compra
por 15 euros chegue a durar um mês e meio. Racionar alguns medicamentos é um
dos métodos que Ana usa para sobreviver, pois está entre os dois milhões de
portugueses que, segundo a Segurança Social, recebem menos de 364 euros de
reforma por mês. No seu caso ainda conta com bastante menos. “Pode ver”, diz,
mostrando o recibo do IRS, que guarda embrulhado num pano azul escuro. “Até
tenho vergonha”, desabafa, referindo-se aos 259,36 euros da sua pensão.
Reformou-se aos 50 anos devido a problemas de saúde, mas sempre deu no duro.
“Fui empregada doméstica e trabalhei muito, não falhava nem sábados nem
domingos”, conta Ana, que só muito recentemente descobriu que, por a sua
reforma ser tão baixa (4.733 euros por ano), pode beneficiar do Complemento
Solidário de Idoso - uma ajuda financeira mensal para os que têm rendimentos
anuais inferiores a 4.909 euros e que desde 2008 também se destina a pessoas
com mais de 65 anos (em 2007, foi para maiores de 70 e em 2006 só para os com
mais de 80). “Entreguei agora
os papéis na Segurança Social”, revela, satisfeita por imaginar que em breve
poderá ter mais alguns euros que prometem aligeirar a sua ginástica financeira.
Só nas contas da água, luz e telefone vai parte do orçamento. “E às vezes, na
farmácia, ainda gasto duas notas de vinte e uma de dez”, explica, lembrando que
ainda tem de pagar a comida - que se resume a sopa e, algumas vezes, bacalhau.
“Há anos que é
raro comprar algo para mim”, recorda. O kispo que traz vestido foi dado por
familiares que “vivem longe, na terra”. O que lhe vale é que a casa onde
reside, em Lisboa, no Beato, é sua - pois comprou-a há 40 anos com ajuda de um
familiar a quem foi pagando. Como a família está longe, tem de viver sozinha. Uma solidão que,
segundo os Census de 2011, afecta 400 mil idosos, sendo Lisboa uma das regiões
com maior percentagem de pessoas mais velhas a viver sozinhas (22%), seguida do
Alentejo (22%). O que tem minorado
a solidão de Ana é o projecto da Associação Médicos do Mundo, que lhe permite
conviver com outras pessoas do bairro e fazer ginástica com uma fisioterapeuta. E o facto de nunca
ter casado nem ter descendência acaba por poupá-la de viver um drama que está a
ser partilhado por muitas das suas amigas, que têm reformas semelhantes e não
sabem como ajudar os filhos desempregados.
O gosto de ajudar
os filhos
Conceição, de 72
anos, recebe 303,34 euros de reforma, e parte vai para a filha desempregada, de
50 anos, e a neta, de 20 e poucos, que acabou o curso mas não consegue
trabalho. Esta costureira
não tem tido uma vida fácil desde que ficou viúva, há quase 40 anos, com uma
filha pequena. “Todos os dias, há 38 anos, escrevo numa agenda o que gasto. A
meio do mês, faço contas para ver o que ainda posso gastar. Há coisas que têm
de ficar para o mês seguinte”, afirma, explicando que, além da reforma, recebe
a pensão de viuvez, de 152 euros. Mas tudo junto não chega para as despesas. Vive numa casa situada
numa subcave sem janelas, onde cai chuva na zona onde tem a máquina de costura,
o frigorífico e uma mesa de refeições. Paga 40 euros de renda, mais água, luz,
gás e comida, sem contar com os custos que tem com a saúde. Por causa dos
cancros que sofreu - na língua e no pescoço - tem uma série de problemas que
todos os meses lhe pesam no bolso. “No IPO, onde as pessoas são maravilhosas,
não pago nada. Mas depois há muita coisa que preciso e não é comparticipada”,
diz falando do gel (seis euros) e das gotas (oito euros por frasco) que põe nos
olhos “por ter ficado sem lágrimas, devido à radioterapia”. “A isto soma-se os
medicamentos para a tiróide, os lorenin, os lexotan e o omeprazol” - descreve,
confessando que muitas vezes o que lhe vale são as pequenas ajudas em géneros
que recebe das pessoas para quem faz trabalhos de costura “sem levar nada”,
como as freiras de um lar. “Quando me dão alguma coisa, guardo e tenho um
miminho para a minha filha”. Apesar das
dificuldades, há uma coisa que Conceição está ansiosa por escrever na agenda
diária dos seus gastos. “Quero comprar o livro daquele senhor Manuel Forjaz”,
diz, referindo-se ao antigo gestor de 50 anos que tem dado várias entrevistas a
falar da forma 'feliz' como lida com o cancro que tem no pulmão. “Sou como
ele”, garante Conceição, que agora voltou a ir às segundas-feiras ao IPO fazer
tratamentos na coluna. “De três em três anos, o cancro diz: 'Olá, estou aqui'“.
Mas Conceição não desiste: “Se Deus me deixou viver, vou aproveitar”. Mais chorosa é
Maria Augusta, de 84 anos, que também dá parte da reforma ao filho Armando, que
trabalhou na construção civil e está desempregado. “Recebo só 370 euros e quase
metade é para pagar a conta que gasto com este aquecedor. Se não, morro de
frio”, relata a antiga empregada de pastelaria, embrulhada numa manta e sentada
no sofá da sua sala, onde passa horas a fio: não sai à rua por ter colocado uma
prótese no joelho e estar dependente de canadianas. “Olhe, vejo novelas”,
desabafa. Com graves
problemas cardíacos, Maria Augusta toma muitos medicamentos. Mas conseguiu ser
um dos 25 idosos que recebem ajuda do projecto da Médicos do Mundo, patrocinado
pela Segurança Social. “Pagam-me os medicamentos e vêm cá a casa ajudar-me.
Limpam isto, trocam a cama...”, descreve, aproveitando para contar um dos
episódios que mais a marcou nos últimos anos. “Andava a sentir-me mal, mas o
médico de família nunca me auscultava. Só me dizia: 'O que você tem é velhice e
isso não tem cura'“. Pouco depois da última consulta, foi internada no Hospital
Curry Cabral com líquido nos pulmões. “Fiquei revoltada”. Foram os problemas
de saúde que a obrigaram a reformar-se aos 67 anos, recebendo agora mais 99
euros pelo complemento de dependência. Se pudesse, tinha continuado mais tempo
a trabalhar como cozinheira: “Ainda faço a minha sopa. Apoio-me nas bancadas da
cozinha e deslizo por ali fora”.
Trabalhar sem
parar
A muitos
quilómetros de distância de Lisboa, a situação dos idosos é idêntica. E muitos,
apesar de reformados, continuam a trabalhar. Manuel, um
alentejano de 73 anos e antigo motorista que se reformou há oito, ainda hoje
trabalha como negociante de lenha. Apesar de ser um trabalho duro - e de ter
tido um ataque cardíaco há três anos, tendo descoberto que sofre de diabetes -
não tem outra opção. Com os 200 euros da reforma da mulher, Maria, ficam com
pouco mais de 700 euros por mês. “Há meses em que
tenho de escolher que medicamentos compro, se os meus, se os dele”, explica
Maria, esclarecendo que os dois gastam 300 euros por mês só em remédios. “As
coisas não estão fáceis. Trabalhámos tanto, a vida inteira, e nunca pensámos
chegar à velhice nas condições em que estamos”, desabafa, enquanto o marido
aproveita para dizer que não querem é ir para um lar: “Gostamos de viver juntos
na nossa casa, à nossa maneira”. Além disso, também têm de ajudar um dos seis
filhos que está desempregado e vive com eles. Os problemas do
desemprego dos filhos estão a afectar cada vez mais idosos. Segundo dados de
Novembro passado, todos os dias são penhorados 125 mil euros em pensões, parte
porque os idosos foram fiadores dos seus descendentes que ficaram desempregados
e não pagam as dívidas. À Associação de
Aposentados, Pensionistas e Reformados (APRE) não param, por isso, de chegar
situações de desespero, conta a presidente, Maria do Rosário Gama: “Temos um
associado que recebe 292 euros de reforma. A Caixa Geral de Aposentações deixou
de pagar-lhe durante meses e, quando veio tudo junto, cerca de 4.000 euros,
cobraram-lhe o IRS”.
A comida ou os
remédios
A grande 'guerra'
da associação, agora, é a Contribuição Extraordinária de Solidariedade, que
será aplicada a reformas de 1.300 euros, mesmo que resultem de complementos de
pensão. “O corte é brutal. Há idosos obrigados a escolher entre o alimento e a
medicação”, denuncia a responsável, acrescentando que a APRE vai tentar travar
a medida com uma providência cautelar. E deixa um alerta: “Os suicídios em
idosos, na Grécia, aumentaram 7% por causa das medidas de austeridade. Não
tenho dúvida de que o mesmo está a acontecer cá”. Os números mostram
que Portugal não é neste momento um país fácil para idosos: mais de 90% dos que
têm acima de 65 anos recebe menos de 500 euros por mês. Abílio, de 75
anos, e Maria Teresa, de 74, residem na Nazaré. Os dois acumulam cerca de 700
euros de reforma, 400 dele e 300 dela. “Não chega”, atalha Maria Teresa. Por
isso, ainda trabalha na livraria que abriram há 50 anos. O que também é uma
ocupação: “Vou-me entretendo”, diz. Já António, em
Castelo Branco, gostaria de parar, se pudesse. Tem 78 anos, começou a aprender
o ofício de sapateiro aos 12 e agora, mais de 60 anos depois, mantém aberta a
oficina. Tem como reforma cerca de 300 euros e a mulher 200: pouco sobra depois
de comprarem os medicamentos, que custam “300 euros, todos os meses”. Mas para
ele a crise tem um lado bom, que é levar mais pessoas à sua oficina, pois “têm
menos dinheiro para gastar em sapatos novos”.
“Este país não
está para velhos”, conclui António, para logo de seguida emendar: “Nem para
velhos nem para novos”.