sábado, agosto 05, 2023

PAPA CHICO, IGREJA…

Esta semana, goste-se ou não, Portugal rendeu-se às Jornadas Mundiais da Juventude mas sobretudo rendeu-se ao Papa Chico, um Papa que prometeu trazer mudança a uma instituição secular, no seio da qual ficamos com a sensação de que muita coisa parou no tempo, o que explica uma certa crise da Igreja e um afastamento de muitos sectores da sociedade perante, repito, uma estrutura religiosa que se banalizou e deixou de dar respostas a uma sociedade em contínua evolução e modernidade.

Recebemos em Portugal um Papa do povo, um Papa vindo dos confins do mundo, como ele próprio afirmou no dia em que foi eleito para a liderança da Igreja Católica, um Papa que enfrentou inúmeros problemas estruturais e funcionais internos, no Vaticano, que pretendeu sacudir hábitos velhos e caducos que, em vez de aproximarem, distanciaram todos os Papas das pessoas. Recebemos um Papa que, mais abertamente que os antecessores, enfrentou o escândalo dos abusos sexuais que sacudiram a instituição, mesmo que todos saibamos, e sabemos, que essa chaga asquerosa e nojenta, não se limita à Igreja mas que, por terem acontecido no universo da Igreja e do catolicismo institucional em geral, assumiu uma outra amplitude que não se compadeceu com uma Igreja silenciosa e de costas voltadas para uma realidade incontornável e que a foi minando irreversivelmente.

O facto é que o Papa Chico esteve lá, na primeira fila, dando a cara, enfrentando adversidades, incluindo no próprio Vaticano. E fê-lo mais do que os seus antecessores, porque, verdade seja dita, este tema dos abusos sexuais e de todos os comportamentos doentios denunciados nos subterrâneos vaticanistas, nunca antes como agora, atingiu a amplitude mediática que obrigou a que a Igreja assumisse uma outra postura que não a que era costume, a de virar-se para o lado perante as denúncias, como se nada se passasse.

Eu não sei se o Papa Chico vai ficar muito tempo entre nós, devido à sua doença e à fragilidade que evidencia. Não sei como e qual será a Igreja depois do Papa Chico, se ela vai evoluir, se ela se vai renovar, apesar de todos os esforços de Francisco, a começar pelo Colégio Cardinalício, se ela vai retroceder, se ela vai assumir as suas fragilidades e preparar as respostas mais adequadas. Não sei se o Papa Chico será capaz de continuar as mudanças internas que paulatinamente, mesmo enfrentando as habituais resistências internas e os interesses e o conservadorismo institucional, incluindo os financeiros e económicos de uma instituição universal e rica.

Apenas sei que o Papa Chico quer uma Igreja cada vez mais junto das pessoas, sobretudo dos mais desfavorecidos e mais carenciados e que tem um discurso que valoriza o primado do humanismo, da justiça social, do respeito entre as pessoas, pela observância de rendimentos dignos para todos, do respeito pelo trabalho e de apelos constantes à solidariedade humana, etc

Admito que uma das maiores frustrações do Papa Chico, se não mesmo a maior, esteja relacionada com a guerra na Ucrânia e com a impotência do Vaticano, pelo menos até hoje constatável, pese todos os esforços de mediação realizados, em encontrar um entendimento entre Moscovo e Kiev para um cessar-fogo que suspenda o sofrimento, a destruição e a morte e para a abertura de negociações sérias entre todos os protagonistas, incluindo os que se dizem apologistas da paz mas que lucram milhões de milhões vendendo armas e incentivando a guerra.

Hoje parece-me mais do que evidente - perante a crise de vocações, o envelhecimento do sacerdócio e a galopante redução de fiéis - que os problemas de afirmação e de modernização da Igreja são maiores, diria mesmo decisivos. A Igreja paga a pesada factura de ter parado no tempo durante demasiado tempo, em grande medida devido às resistências conservadoras do próprio Vaticano e aos múltiplos interesses que por lá se cruzam, para os quais qualquer mudança é olhada como uma “ameaça” passível de colocar em causa esses interesses acomodados e ainda influentes no processo de decisão vaticanista.

Penso que a Igreja acreditou na imutabilidade dos dogmas em que assenta toda a sua doutrina e praxis e que, por isso, o seu mundo estaria imune ao impacto de crescentes pressões ou à demanda de mutações, apesar de muitos sectores reclamarem essa modernidade em todo o edifício católico liderado pelo Vaticano. Mas a verdade é que a pressão externa vinda de todos os lados, e por inúmeros motivos, a natureza das pressões sociais, a falta de resposta dos governos particularmente aos jovens, cada vez mais a braços com incertezas e poucas respostas, uma nova realidade social que denuncia muitas desigualdades e injustiças, o aparecimento de novos grupos religiosos, incluindo seitas que perceberam que a religião pode ser um negócio altamente lucrativo, assente num discurso populista e pseudo-religioso, a ciência e as descobertas que ela propicia, o questionamento decorrente da conjugação de todas essas realidades, etc, tudo isso pressiona a Igreja para que ela sem se descaracterizar, se adapte aos novos tempos, a novas mentalidades, a novas prioridades sociais, a novas ideias, a uma mudança do seu discurso social, actualizando-o, adaptando-o aos novos problemas sociais, à realidade do mundo num tempo aceleradamente em mudança e carregado de incertezas, de novas exigências das sociedades, etc. Daí a incerteza quanto ao futuro da Igreja se o caminho de mudança e de modernidade for abandonado (LFM, texto de opinião publicado no Tribuna da Madeira de 4.8.2023)

Sem comentários: